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Vêm com palavra, eu vou com as minhas: os agenciamentos da língua

Capítulo II. A ORALIDADE EM MATIÇÃO

2.4 Vêm com palavra, eu vou com as minhas: os agenciamentos da língua

As hierarquizações simbólicas em torno da fala trazem consequências, principalmente para as lideranças políticas em Matição, pois elas entram em contato constantemente com pessoas que já trazem assimetria na relação, como membros da prefeitura, do Estado, professores, pesquisadores e estudantes. Com agentes que possuem, de certa forma, credibilidade para legitimar ou não o quilombo, por meio de práticas mediadas, sobretudo, pela escrita. Por isso, existe um agenciamento da língua em direção ao falar bem, falar certo, falar direito, principalmente tratando-se da fala pública. Conforme já foi dito, as pessoas do Matição, como nos mostram os relatos das mulheres com as quais pesquisamos, entenderam que existe outro modo de falar influenciado e possibilitado pela escola e pelo maior contato com a escrita: uma oralidade sistematizada, fundamentada a partir de uma maior aproximação com as culturas do escrito. Nessa direção, este tópico tem o objetivo de compreender como essas mulheres veem e como elas mobilizam uma oralidade arrumada53, afetada pela necessidade da fala pública, pelo contato com movimentos sociais e pala circulação em diferentes contextos discursivos, nos quais a cultura escrita é prevalente.

Certa vez, fui com Marilene na prefeitura de Jaboticatubas levar um documento para a aquisição de um recurso municipal à Associação Quilombola do Mato do Tição. No caminho, ela me falava das dificuldades em dialogar com o povo da prefeitura: É sempre muito difícil, esse povo vem com uns palavreado, e eu aprendi uma vez, eles fala essas palavras políticas, eu vou e falo também, pra eles ver que não sou ignorante como eles pensa. Vêm com palavra eu vou com as minhas. Mas, num é? Eles faz de tudo pra ficar mais difícil pra gente e pro povo sem instrução.

Por meio da escolha das palavras e do conhecimento da intenção dos grandes, Marilene aprendeu a se defender desses ataques usando o mesmo artifício: as palavras. É interessante dizer que ela aprendeu essa estratégia de tanto fazer papel de boba. O recurso foi uma necessidade aprendida na prática, nos diversos contextos pelos quais ela passou, na troca com outras lideranças de diferentes comunidades quilombolas. Ao identificar essas manobras da língua, ela identifica intenções e atitudes. Ao se utilizar do mesmo recurso, por meio de um agenciamento do discurso, ela tem a intenção de fazer desaparecer a assimetria, evidenciada pela língua, que existe na relação entre os grandes e os sem instrução. É evidente que o desaparecimento da assimetria, nesse contexto, é impossível. Porém, ao se valer das palavras

53 Oralidade arrumada é, na verdade, uma leitura que fizemos a partir do conceito das quilombolas de escrita

políticas, Marilene resiste ao arranjo hierárquico e segregador presente em situações como essas.

Presenciei alguns eventos nos quais a liderança política do Matição lançou mão de suas palavras políticas: nos encontros do Grupos de Trabalho de Educação Quilombola a que fomos juntas na Secretaria de Educação do Estado, por exemplo, ou até mesmo em eventos e participação de mesas em ambientes acadêmicos. Em outro momento, no entanto, percebi como ela se apropriou bem dos agenciamentos da língua ao lançar mão também das palavras médicas54. Minha interlocutora maneja muito bem a língua ao acionar discursos jurídicos, discursos médicos e até discursos acadêmicos.

É válido trazer a este texto um relato de uma de minhas vivências no campo. Como já foi mencionado aqui, o povo de Matição adora conversar. Não só me contaram muita coisa, como também perguntaram muito a meu respeito. Marilene, assim, conheceu muito da minha vida, inclusive o fato da minha mãe ser médica. Um dia resolvi levá-la para visitar a comunidade. Como de costume, sentamo-nos na varanda e lá ficamos algumas horas conversando, falávamos dos problemas de saúde de algumas pessoas do Matição que faleceram recentemente. Marilene, em nenhum momento, hesitou em situar minha mãe, a doutora, por meio de palavras extremamente técnicas do campo da medicina, tanto no que tange ao nome de exames e de procedimentos, quanto às complicações no quadro clínico da paciente. Infelizmente, perdi-me no conteúdo daquela conversa, mas detive minha atenção (e surpresa) a sua expertise. Não me surpreendi com o fato dela conhecer os termos, mas de elegê-los e manejá-los naquela situação.

A conversa sempre diz muito sobre as relações ali implicadas. Os gestos, as palavras, as formas estão essencialmente ligadas à interlocução. Existe, para o povo do Matição, uma divisão entre o povo sem instrução e os grandes. Os grandes são aqueles que reivindicam alguma autoridade, tanto por estarem falando de um lugar legitimado de produção de conhecimento (ciência, universidade, etc.) como de ordem e controle (estado, fazendeiros, etc.). O povo sem instrução é aquelas pessoas cujos saberes são desqualificados como crenças. Vem com palavra eu vou com as minhas. Mas, num é? Vir com palavra é escancarar uma relação marcada por hierarquia, eu vou com as minhas é reconhecê-la e manipulá-la.

Nesse sentido, existe uma função-autor, que, para Foucault (1969, p. 46), “é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior da sociedade.” Aquele que fala exerce uma função no discurso, permitindo que certos

54 Mesmo que esteja em itálico, não se trata de uma expressão do povo de Matição. É um recurso linguístico

textos sejam reagrupados, delimitados ou opostos entre si, como nas relações de legitimação recíproca ou de exclusão, bem como estabelecendo um modo de ser “não cotidiano, extraordinário, não anônimo”. A função-autor não remete simplesmente a um indivíduo real; ela pode dar lugar simultaneamente a várias posições-sujeito que classes de diferentes sujeitos podem ocupar. Além disso, explica Foucault, a função autor não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações complexas e específicas.

Foucault (1969, p. 268) busca compreender as “condições de funcionamento de práticas discursivas específicas”, nas quais está inserida a função-autor. Apesar de comumente a função-autor não ser atribuída aos textos orais, mas somente aos escritos. Consideramos aqui que as práticas orais de contar causos em Matição integram um “tecido discursivo”, já que um único causo, quando chega aos meus ouvidos, traz com ele inúmeras versões. O tecido discursivo se dá pela trama formada pelas histórias ― que incorporam uma série de versões ― e por outros causos por ele despertados para traçar comparações e analogias. Ao considerar a função autor como “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (p.10), ela se transfigura à medida que se repete e se recria o causo, perpassando pela experiência de diversos ouvintes. De modo análogo ao Povo dos Buracos estudados por Ana Carneiro Cerqueira (2013, p. 204), cujos causos revestem-se de uma sucessão “infinita de narrativas pessoais reunidas em um bloco de informações e posicionamentos diversos, incluídos em uma mesma série que integra um único causo, um único fato”.

Também, muitas vezes, aquele “quem fala” em determinadas situações comunicativas opera como um ator que organiza e direciona práticas discursivas. A exemplo de D. Nilse, ao contar o caso de S. João, D. Divina, ao explicar um banho que deve ser tomado, que “exercem um certo papel em relação ao discurso” (FOUCAULT, 1969, p. 275) em curso. Assim como exercem a fala de autoridades políticas, de pesquisadores, de médicos, de outras pessoas de fora da comunidade. Fulano de tal que falou; quem disse foi o médico da rua; se a professora falou, é isso mesmo; ocê escuta sua avó que ela sabe o que tá dizendo, são falas que indicam que o discurso não é, nas palavras de Foucault (1969, p. 274), “uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma certa cultura, receber um status”.

Dessa forma, a função-autor manifesta a “ocorrência de certo conjunto de discurso”, e refere-se ao status desse discurso naquela comunidade. Assim, em Matição, representa “a característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos” (FOUCAULT, 1969, p. 274). A maneira como o discurso é manejado é o que dá o lugar às pessoas na comunidade. Entre as mulheres, isso fica muito evidente: tem-se o lugar da matriarca, da liderança política, da liderança religiosa, liderança da tradição, daquela que não é dali. Retomando Foucault (1969, p. 287):

Os modos de circulação, de valorização, de atribuição, de apropriação dos discursos variam de acordo com cada cultura e se modificam no interior de cada uma; a maneira com que eles se articulam nas relações sociais se decifra de modo, parece-me, mais direto no jogo da função autor e em suas modificações do que nos termos ou nos conceitos que eles operam.

Em Matição, a circulação e a valorização dos discursos, constituídos nas narrativas das histórias a causos, são motivadas por inúmeras situações, como os caminhos, os territórios, os encontros, sobre os quais abordaremos no tópico seguinte.