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Algumas reflexões sobre a escrita do ponto de vista simbólico

Capítulo III. MODOS DE PARTICIPAÇÃO NAS CULTURAS DO ESCRITO

3.2 Algumas reflexões sobre a escrita do ponto de vista simbólico

É comum, infelizmente, o fato de que, ao chegar a um grupo “de tradição oral” atribui- se a ele apenas duas possibilidades: o não uso da escrita ―marcado pela forte desigualdade social que culmina no analfabetismo de determinado grupo ― ou um uso adaptado à sociedade grafocêntrica, sem personalidade, vazio do que lhe é próprio, sem especificidade ― apenas traços adestrados que apagam os resquícios últimos das tradições preservadas pela oralidade de uma cultura exótica em extinção, marginal em relação a um saber que vem de fora. Esse binarismo, consequentemente, reduz também a análise do próprio social, reafirmando as dicotomias caras às ciências humanas: natureza e cultura, tradicional e moderno, escrito e oral, nativo e estrangeiro. O que queremos dizer com isso é que se trata de dinâmicas muito mais complexas para serem analisadas, interações que não podem ser descoladas de seus contextos. Na área de estudos em que este trabalho se insere, isso fica explícito, como afirma Graff (1990, p.41-42), citado na introdução deste estudo (p. 13), que propõe que as dicotomias não são capazes de descrever de forma útil as circunstâncias atuais, elas só obstaculizam a compreensão.

Antes de dar sequência ao relato dos acontecimentos em Matição que retratam a participação das mulheres nas culturas do escrito, permito-me um intervalo para pontuar um evento clássico aos estudos da Antropologia estrutural, e, de certa forma, aos estudos das culturas do escrito. Começo com uma citação de Claude Lévi-Strauss. Mesmo que se trate de um texto de 1955, não se pode desconsiderar que ainda reverbera com certo peso nos estudos contemporâneos.

A escrita fizera, pois, sua aparição entre os Nambiquara; mas não, como se poderia imaginar, ao termo de um trabalhoso aprendizado. Seu símbolo fora imitado, ao passo que sua realidade continuava a ser desconhecida. E assim, com vistas a uma finalidade mais sociológica do que intelectual. Não se tratava de conhecer, reter ou compreender, mas de aumentar o prestígio e a autoridade de um indivíduo – ou de uma função – às custas de outrem. Um indígena ainda na idade da pedra adivinhara, à falta de compreendê-lo, que o

grande meio de compreender podia, pelo menos, servir para outros fins. (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 283).

Em 1938, uma liderança indígena Nambikwara pegou um pequeno pedaço de papel e rabiscou alguma coisa diante do antropólogo francês ― que, por sua vez, interpretou a atitude do indígena “ainda na idade da pedra” como o gesto da escrita. Uma escrita, contudo, sem sentido. Sem texto. Traços para impressionar o pesquisador e para demonstrar poder. Essa foi a interpretação do antropólogo francês, que apareceu no capítulo “Lição de Escritura”, em Tristes Trópicos, publicado em 1955. O encontro entre o estrangeiro e o nativo foi marcado por uma troca de presentes na qual o chefe indígena demandou por um bloco de papel. A partir de então,

ele não me comunica verbalmente as informações que lhe peço, mas traça sobre o seu papel linhas sinuosas, mas apresenta, como se ali devesse ler a sua

resposta. […] está tacitamente entendido entre nós que os seus riscos possuem

um sentido que eu finjo decifrar; o comentário verbal segue-se quase imediatamente, e me dispensa de pedir os esclarecimentos necessários. (LÉVI- STRAUSS, 1996, p. 190)

Lévi-Strauss atribuiu à chegada da escrita profundas mudanças nas condições de vida dos diversos grupos sociais, tanto no que se refere à consolidação de conhecimentos como a instrumento de dominação. A cena, segundo ele, revelou-lhe uma função oculta da modalidade escrita da linguagem: dominação, sujeição à Lei e ao Estado, manutenção da escravidão e da proletarização. Escrever, diz o antropólogo, “parece ter favorecido mais a exploração de seres humanos do que sua iluminação intelectual”. Jacques Derrida, a partir do relato de Lévi-Strauss, reinterpretou a cena em De la Grammatologie, publicado em 1967. Segundo ele, o pesquisador entendeu aqueles traços apenas como “imitação de escritura”, e que a escrita do indígena também tem, tanto quanto uma escrita alfabética, uma escritura ― que não pôde ser percebida pelo antropólogo. É nítido que tanto o antropólogo estruturalista quanto o filósofo pós-estruturalista estavam criticando sua cultura de origem ― concordando com Marília Librandi-Rocha (2012, p. 180): “usando distintas estratégias, o objetivo era criticar o domínio colonial europeu, no caso de Lévi-Strauss, e a metafísica europeia dominante, no caso de Derrida”. Aonde foi parar, entretanto, a percepção do próprio indígena sobre sua escrita? O que a “lição de escritura” nos diz sobre o ponto de vista nativo? A questão continua em aberto e pode ser transposta para esta pesquisa.

Se a lição da escritura de Levis-Strauss a partir do encontro com os Nambikwara ensina que a função primeira da escrita é subordinar e sujeitar ― pude também perceber, eventualmente, essa função no contexto Mato do Tição ― podemos repensar outras lições de escritura a partir não de uma cópia falha e sem propriedade, mas como uma produção criativa com inscrições, potências e lógicas próprias e específicas ― cujo acesso se dá exclusivamente pelo ponto de vista nativo. Assim, esforço que aqui nos cabe é o de descolonizar o próprio pensar, estruturado pela escrita da sociedade hegemônica grafocêntrica, e se inserir no regime de conceitos próprios do Matição. Este regime próprio impede de adotarmos uma perspectiva teórica única e buscá-la nos e com os próprios sujeitos, sem tomar os modelos “de dentro” e “de fora” ou oralidade e escrita como excludentes e opostos, e sim, como elementos que se interagem dialeticamente.

Nesse sentido, concordamos com Marshall Sahlins (1997) em “O Pessimismo Sentimental e a Experiência etnográfica ― por que a cultura não é um objeto em via de extinção.”. Segundo o antropólogo, os povos tradicionais não perdem as especificidades cultuais ― as modificações ocorrem no sentido de intensificá-las. As sociedades/culturas reelaboram os conteúdos culturais disseminados pelos processos de colonização e de globalização. Dessa forma, no processo de interação dos povos com a sociedade capitalista― hegemônica e fortemente marcada pela globalização ―, com o Estado e suas instituições está em jogo a autonomia cultural dos “povos primitivos”, e não a extinção de uma cultura (vista aqui, como um operador classificatório). Tal constatação é bem explicada na citação feita por Sahlins de Bruno Latour76 (1996):

As culturas supostamente em desaparecimento estão, ao contrário, muito presentes, ativas, vibrantes, inventivas, proliferando em todas as direções, reinventando seu passado, subvertendo seu próprio exotismo, transformando a antropologia tão repudiada pela crítica pós-moderna em algo favorável a

elas, „reantropologizando‟, se me permitem o termo, regiões inteiras da Terra

que se pensava fadadas à homogeneidade monótona de um mercado global e de um capitalismo desterritorializado [...]. Essas culturas, tomadas de um novo ímpeto, são fortes demais para que nos demoremos sobre nossas infâmias passadas ou nosso atual desalento. O que se carece é de uma antropologia disposta a assumir seu formidável patrimônio e a levar adiante suas muitas e valiosas intuições. (LATOUR, 1996, p. 52 apud SAHLINS, 1997).

Não se trata, portanto, de perder a especificidade cultural, e sim, de modificá-la, tornando-a anda mais intensa, já que os processos de resistência não contornados por relações

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que não são unidirecionais, e envolvem a incorporação de outras lógicas e outros sistemas na reelaboração da própria tradição. O uso da escrita, nesse sentido, atravessa todo o processo de luta pelos direitos territoriais e étnicos, desde o processo de reconhecimento quilombola ― vista como uma categoria heteronomeada assinalada por uma placa e o registro por antropólogos da “cultura local” ― até a forma de manejar a própria tradição, no sentido de situarem a própria cultura a seu favor por meio de práticas envolvendo a escrita.