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Capítulo I. MATIÇÃO E AS MULHERES DO MATIÇÃO

1.3 Ancestralidade e Tradição

Ao considerarmos as condições históricas das quilombolas e dos quilombolas do Mato do Tição, em sua emergência como sujeitos de direito, é possível conceber a diferença como um elemento político que é agenciado nas negociações em prol da conquista de direitos territoriais e da identidade étnico-racial. Essa diferença é pautada pela noção de ancestralidade, que funciona como um dispositivo que orienta as performances das mulheres e dos homens do quilombo na sustentação de uma tradição. Assim, as práticas tradicionais, como o candombe, o batuque, a culinária, as curas, o reinado, as rezas e as festas, passados de geração em geração, qualificam a identidade quilombola e fundamentam a luta pelos direitos. Para o povo do Matição, os ancestrais são os parentes que já morreram. Apesar de terem morrido, ainda estão presentes em muitas atividades no quilombo. Pude vivenciar algumas dessas situações: nas curas realizadas por D. Divina, por exemplo, vem a voz dos ancestrais e dos pretos-velhos. Outro exemplo que vivenciei foi no dia da Festa de Santa Cruz, no momento em que o candombe foi interrompido. Isso aconteceu porque, segundo Marilene, alguma coisa não tinha agradado os ancestrais. Eles têm que agora negociar com eles pra seguir batendo. Os candombeiros fizeram uma pausa, uma reza e retornaram ao candombe. Ademais, as mulheres trazem os ancestrais como uma maneira de resistência ao justificarem as atividades que são essenciais na formação e na manutenção da comunidade: as rezas, as festas, os encontros, as formas de se fazer artesanato, as curas e as habilidades na cozinha.

A ancestralidade, dessa forma, não é apenas algo que organiza as experiências na comunidade, é também um recurso discursivo engajado em uma luta social, fornecendo as bases emocionais, políticas e legítimas para as ações de luta pelos direitos. Ao considerarmos as condições históricas a que foram sujeitados os quilombolas, podemos conceber que a diferença étnico-racial, pautada pela ancestralidade, é um elemento político. Em outras palavras, as marcas da “diferença”, como as rezas, as danças, os rituais e a culinária estão articulados ao direito ao território e à identidade.

Uma das referências para as mulheres da comunidade é a Tia Tança, uma mulher, escrava africana, que nasceu em 1828 e morreu aos 135 anos. Segundo as moradoras do quilombo, a Tia Tança foi uma das responsáveis pela fundação e pela formação da comunidade. Ao se referirem a ela, lembram-se de uma mulher muito forte que ajudou a criar os filhos de Benjamim e de Josefa, uma mulher trabalhadora e dedicada que ensinou nós muita das coisas que nós sabe hoje. Com a Tia Tança, os velhos aprenderam muitos ofícios, e uma língua que papai não gostava que a gente falava, porque era a língua dos escravos .Ela é lembrada pelas vestes africanas, pelas habilidades no candombe e pela devoção à Nossa Senhora do Rosário. Foi a Tia Tança que trouxe os saberes africanos e as experiências da diáspora africana. No processo de negociação com as novas “africanidades”, a Tia Tança começou a ser um elemento chave que, de alguma maneira, traz veracidade e legitimidade ao quilombo. Benjamim e, com menos frequência, a Josefa também são ancestrais fundadores evocados em eventos importantes para o quilombo, como a devoção aos santos, a Folia de Reis e o Mês de Maria.

Assim, as mulheres quilombolas são herdeiras de uma ancestralidade ancorada na luta, na força feminina de mulheres guerreiras (como a Tia Tança), e como guardiãs dos interesses da comunidade. Sabemos que elas não são as únicas nessa função, já que os homens também têm seu papel delimitado da manutenção e na transmissão da tradição. Entretanto, o que interessa-nos discutir aqui é a forma como a ancestralidade, ao compor a prática discursiva do quilombo, está imbricada nas relações de poder e nas maneiras de mobilizar, negociar, aceitar ou negar a identidade quilombola em constante agência.

As mulheres mais velhas ― filhas do casal Benjamim de Siqueira e Josefa ― D. Nilse, D. Divina e D. Bina sempre reafirmam que elas são da mistura de índio com africano, ou índio com escravo, como gostam de dizer. A essa ancestralidade, deve-se o fato de que, segundo elas, as pessoas da comunidade fazem práticas indígenas, como a utilização de raízes e ervas nas curas, e práticas africanas, como o candombe. A parte indígena é do pai,

Benjamin de Siqueira: ninguém mandava nele não, era dos índio, né, e ninguém manda nos índio. Ele foi um guerreiro aqui ajudando o povo dessa terra aqui tudo. Às vezes ele pegava cavalo, burro, ou a pé mesmo, viajava lá pra Caeté, que aqui as coisas era pra resolver lá em Caeté, atravessando esses rios, dormindo no mato, só pra ajudar o povo tirar título, trazer isso, trazer aquilo. Disse-me D. Nilse: Papai era raizero, aí eu acompanhava ele nesses mato buscando remédio, que ele aprendeu com os povo dele, e eu aprendi com ele. Contou-me D. Divina. Papai ele era dos índio, né, aí ele sabia muito das coisa no mato, dos remédio, aí eu faço os remédio até hoje, é ruim eu sair daqui pra ir no médico, disse-me D. Bina.

A mãe, Josefa Basílio dos Santos: minha mãe, coitada, africana, descendentes do escravos. Minha mãe, a Catita, ela fazia de tudo, rapadura, doce de laranja, doce de talo de mamão, doce de mamão, doce da base do pé de mamão, doce de batata doce, doce de figo, doce de laranja, queijo, tudo quanto é coisa que ocê imaginar, doce de leite, o povo vinha era de longe atrás das coisa da Catita, e ela fazia pra todo mundo, gostava de agradar todo mundo, trabalhava dia e noite, é por isso que a Tança ajudou a criar nóis. Meu pai ensinou ela a escrever pelo menos o nome, mas coitada, era analfabeta de tudo, africana, né.

É interessante destacar aqui essa conjugação da ancestralidade da Comunidade Quilombola do Mato do Tição de negros africanos e indígenas. Quando ela é mobilizada, cria- se um efeito de distanciamento da imagem do quilombo como algo criminalizável, marcado pelo estigma da escravidão. É por isso que trazer a parte índio, livre, do pai está atrelada a uma resistência que foge da opressão sofrida pelo povo negro. É uma maneira de dar contornos ao racismo e ao legado da escravidão que traz consequências tão graves na comunidade.

Os relatos das mulheres remetem, frequentemente, à ancestralidade ligada à tradição. Falam de pegar esse compromisso, de honrar os antigos. A fala de D. Nilse a respeito das rezas ilustra esse comprometimento: das três coisas mais antigas que têm é a Folia de Reis, e mês e Maria e São João. A Folia de Reis tem mais de 400 anos. E vai passando de geração em geração... Seu Jair era o capitão, passou pra Wando que agora é o capitão do candombe e o Dante velho em vida já passou pra ele o reinado também. Porque ele disse que já está velho, e Wando dança reinado desde os sete anos, aí ele está passando a Wando ... O São João era o sogro da Divina que era o responsável pelo São João, pelo São João e pelo São Pedro. Toda vida, desde que eu me entendo por gente, ele que fazia. Então ... Porque tinha o filho que chamava João, mesmo nome do santo, ele tinha o compromisso de levantar bandeira de São João. Aí esse ficou crescendo, crescendo e quando ele casou, ele já levou a

bandeira para casa dele. Então aí ficou tomando conta da reza. Aí a Divina honrou o compromisso dele. E Marcolino deve seguir. Nessas falas, confirma-se também a participação dos homens na transmissão do legado dos ancestrais.

As mulheres quilombolas trazem, na voz e no corpo, por meio da performance, as narrativas que ecoam a ancestralidade. As matrizes corporais que articulam a memória e a expressão é o elo da tradição com a contemporaneidade. O corpo, para Leda Martins (2002, p.89), “é um portal que, simultaneamente, inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local, ambiente e veículo da memória”. O corpo traz a experiência da diáspora, e, ao mesmo tempo, permite manter o vínculo das tradições com as novas gerações. A voz dos ancestrais perpetua-se no próprio eco, passando de geração em geração, honrando os antigos e cumprindo os compromissos. O corpo e a voz de cada uma delas manifestam o saber ancestral que habita as rezas, as curas, as danças, o batuque, o congado, o candombe. Assim, é a ancestralidade que impulsiona as performances corporais das mulheres e que permite entrever o fato de que o corpo também é um meio com o qual e pelo qual se produzem os significados e se operam os sentidos do que é ser quilombola.

Por serem as mulheres portadoras da voz que carrega e mantêm viva a memória ressignificada e a voz dos ancestrais, elas são também as vozes, ainda que essas vozes sejam contingentes, responsáveis pela narrativa de uma comunidade quilombola chamada Mato do Tição. Elas são, portanto, guardiãs de saberes e produtoras de práticas discursivas que constituem, produzem e atualizam o quilombo. Nesse sentido, cada uma, com suas funções dentro do quilombo, contribui na trama narrativa que o constitui. A seguir, apresentaremos aquelas que compuseram conosco também a trama narrativa desta dissertação e foram os sujeitos que nos ajudaram a compreender a relação entre as mulheres quilombolas e culturas do escrito.