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Capítulo III. MODOS DE PARTICIPAÇÃO NAS CULTURAS DO ESCRITO

3.5 Escrita e escola

Conforme explicitado, a presença da escrita na vida das pessoas do Matição está ligada também à da sala de aula. Os materiais da cultura escolar ― não só nos tempos atuais como também nos tempos antigos, conforme relatado pelos velhos ― são importantes meios que fazem a escrita circular na comunidade. As mulheres relembram as cartilhas e os cadernos antigos, a forma como usavam o lápis até ele ficar bem pequeno. Apesar de essa instituição estar mais presente para a geração atual, a escola faz parte das lembranças dos idosos, que a colocam num lugar de importância social, ligada às mudanças sociais importantes. O apreço pela escola está ligado a uma valorização da cultura escrita do ponto de vista simbólico. Apresentam, em seus depoimentos, uma valorização do saber escolar, entretanto, as observações em campo, como o episódio acima relatado a propósito do MOVA, mostra-nos uma relação ambígua, marcado por posicionamentos que variam, conforme veremos nos relatos.

Em uma ocasião, enquanto conversávamos, eu, D. Nilse e Rosaura, a respeito do MOVA, elas aparentaram muito entusiasmo em relação à experiência. Rosaura, além de ter falado que começou a aprender a falar sem chorar, como já vimos anteriormente, disse ter ficado mais autoconfiante em se posicionar: aprendi muito com o MOVA, com o MOVA que eu dei coragem de começar a venda do pastel. Antes eu num tinha coragem de sair pra nada. D. Nilse disse que também gostou da experiência. Havia uma dificuldade de organizarem as aulas e os prazos, pois, por exemplo, no mês de Maio, no qual há rezas todos os dias, não havia condições de ter aula. Quando recomeçava em abril, os alunos já tinham desacostumado com a escola. E como é que nós ia ficar sem fazê a reza? Ela questiona.

Outra resposta interessante de D. Nilse, que me remeteu também a uma declaração que ela já me havia feito e que trazemos no início do capítulo II foi a respeito de um outro português, que é aquele aprendido na Escola, aquele ligado às instâncias e grupos hegemônicos, e que não assimila as singularidades do modo de falar no Matição (ao qual, ela atribui ignorância). Em suas palavras: No MOVA, a gente aprendia aquelas coisas de escola mesmo, é importante, né, mas era difícil, que ela ficava passando no quadro aquela coisa da palavra que é o outro Português, mas nós são ignorante mesmo com as coisa errada que a gente fala... aí faltava muito de aula, as pessoas que ainda não tinha o beabá, e outras que inda tinha, era bom, eu gostei muito da época do MOVA, mas aquilo ali que a gente aprendia a gente já gastou de aprender de outro jeito, né. Ni quando nós era pequeno e papai ensinava. Na escola era diferente também, parece que o português mudou. Quando vem Luan me perguntar umas coisas eu posso dizer que tá tudo errado, conforme eu aprendi na escola de antigamente. Aí agora, que nós já acostumou com o jeito que é nosso, pra aprender outro jeito pra nós que é velho fica difícil. Mas é importante, tinha gente aqui que não conhecia bê mais a e agora conhece. E na capela fazia muito calor, agora é que Dó arrumou aí de entrar um ar. O conhecimento trabalhado ali, para D. Nilse, era exclusivamente escolar e relativo à escrita: aquelas coisas de escola mesmo referente ao bê mais a. Não pude deixar de associar essa fala à outra, também dela, quatro anos antes, antes de ter a experiência no MOVA.

Ocê pode ver que nós irmandade não são todos que falam português direitinho, nenhum. Por que nós aprendemos a falar com a Tança! Aí depois é que papai viu que a coisa ia mudar... O Português...Então papai tirou nós de ficar aprendendo conversar como ela... Ensinando nós o outro

português. Foi por isso que a gente ficou de meia língua. (D. Nilse apud

D. Nilse já me falou diversas vezes que o pai dela era um letrado, que ensinou todo esse Matição ao redor a ler e a escrever, a hora que fosse, ia ele com o lápis desse tamanho ― demonstrando, com os dedos, o quão pequeno era o lápis. Na fala transcrita acima, ela faz referência a dois ancestrais, ao pai e à Tia Tança. O pai, da parte índio, foi levado ainda criança para Taquaraçu de Cima, onde trabalhava como sacristão de um padre. Ali, ele aprendeu a ler e a escrever e também a rezar em latim. Já Tia Tança, que é a Constantina, é a ex-escrava africana, analfabeta, que lhes ensinava o outro português.

Se o pai era letrado, era porque era índio ninguém mandava nele, ao contrário de sua mãe africana, como D. Nilse diz: Papai saía por esse mato afora caçando ensinar os outros a ler. Quando a gente foi pra aula a gente já sabia escrever que ele ensinava a gente, tinha caderno nem nada, ensinava às vezes até riscando na terra com pedaço de pau, ele alfabetizou um tanto de gente, os mais velhos, por que não sabia ler nada, queria... antigamente, falava qualificar, né, tirar título pra votar, queria casar, e não sabia ler nada, ai meu pai fervia com eles, mandava eles comprar caderno e dava aula pra eles ai até eles aprender o A E I O U e fazer o nome... ele foi o guerreiro aqui. Herói. (...) Minha mãe não sabia ler não, minha mãe coitada, africana, filha de africano, filha de escravo, meu pai, do lado do meu pai é índio, índio eles mesmo manda neles, né... do lado do meu pai é índio, o povo da mata, e o lado da minha mãe é africano, filho de escrava, não sabia nada mesmo, ele deu conta de ensinar minha mãe assentar o nome e saber ler alguma coisa... Saber ao menos assinar o nome pra ter um nome pra falar nesse mundo fora.

Se ter um nome significa ser alguém e, para ter um nome, é necessário escrevê-lo, mais uma vez percebemos o valor simbólico atribuído à escrita. O curioso aqui também é o fato de que, ao trazer a ancestralidade indígena, livre e letrada, o efeito que se dá é o distanciamento da imagem dos quilombolas como algo criminalizável, ligado à escravidão e à ignorância.

D. Divina também fala com orgulho que o pai detinha o acesso a um português correto, sabia ler e escrever e ensinava aos filhos ― era empoderado do outro português, o que era raro naquele território. Se ele tinha essa oportunidade era porque era índio, e índio, eles mesmos manda neles, já os africanos descendentes dos escravos já não tinham essa oportunidade. O outro Português ― ensinado pelo pai, na escola e no MOVA ― não era o português da Tia Tança, da mãe, da parte africana. As mais velhas sempre relatam que o pai não gostava que os filhos falassem como a Tança e a Josefa. Mas não tem jeito, né, ela criou nós irmãos, fica o dia inteiro, a gente acaba aprendendo, né.

Ela também conta um pouco de sua trajetória com a escola. O interessante é que ela começou essa história quando lhe perguntei a respeito de sua trajetória como liderança política. Sua resposta foi direta: Começou na escola. Nesse momento, pensei em três possibilidades: ela sabia que estava respondendo a pergunta a uma pesquisadora que também é professora; ela estava se referindo à escola, pois foi lá que começou sua amizade com o Coronel Valério, figura importantíssima na constituição da associação, ou ela considerava a importância da leitura e da escrita mediadas pela cultura escolar para os entendimentos necessários na constituição de uma associação quilombola. D. Divina teve de largar a escola, onde ficou por poucos anos, pois o pai não gostava que ela fosse sozinha, tinha ponte, cachorro bravo, onça. Conta também que depois apareceu uma dona, uma professora que ia nas casa ensinar os menino, juntava os menino, ensinava eles a ler, aqui pra esses lado vindo lá da Fazenda de Baixo. Mas depois a dona sumiu e ela parou de estudar. Disse que se dependesse dela, teria continuado e demonstra estar feliz com a presença da nova geração na escola. Coincidência ou não, foi ela a responsável por conseguir transporte escolar para o Matição na década 1990. Até então, o principal motivo pelo qual as pessoas da comunidade desanimavam dos estudos eram as dificuldades no trajeto (assim como acontecia nas décadas de 1930, 1940 e 1950, 1970, 1980...).

As mulheres mais velhas também associam a escrita e a escola às condições materiais, e a maior acessibilidade à escola faz parte de um conjunto de avanços e de melhoras pelas quais a comunidade passou. Trago aqui um depoimento de D. Nilse que me chamou a atenção. Primeiro, por ela se considerar analfabeta diante das mudanças ocorridas no português padrão ou, como ela mesmo o conceitua, no outro português. Além disso, ela demonstra o apreço que ela e seus irmãos tinham pela escola e, ainda com as péssimas condições materiais, sem recursos básicos como lápis e pastas, eles ainda ficaram motivados a estudar. Se não o fizeram, foi por falta de acessibilidade, mais uma das maneiras de se produzir invisibilidades ao povo negro e de se legitimar a meritocracia (que, curiosamente, pertence ao povo não negro). Por isso, a presença das crianças na escola é muito importante para as mulheres mais velhas, pois representa a insurgência como sujeitos de direito e a possível saída de uma condição de subalternidade. Outro fator é o fato dela ter guardado por muito tempo os materiais pelos quais ela estudou ― isso significa consideração e estima pela escola, consequentemente, pela palavra escrita. Trago, enfim, a fala de D. Nilse na íntegra. Ainda que não tenhamos fôlego para fazer uma análise de todos os elementos que ela traz em

seu discurso, não fragmentá-lo possibilita novos entendimentos e novas reflexões por parte da leitora ou do leitor desta dissertação.

Eu sou analfabeta, porque a gente sabe alguma coisa, que ainda assim mesmo, o português antigo do tempo que agente estudou era muito errado. Alguma coisa era certo, hoje eu tô vendo pelos meus filhos que eu criei e pelos meus neto que eu tô vendo passando pelas minhas mãos e pelo MOVA mesmo que a gente estudou, o português que a gente estudou era muito errado, até o ABC. Cê já viu ao abc antigo da Cartilha? No tempo que... eu até que sou custosa de por na cabeça e até essa menina (apontando para Emily) já tá compreendendo melhor do que eu. No tempo que eu estudei era abcdefghijklmnopqrstuvxz, agora entrou o k, entrou o iplon, dablio, entrou tudo no ABC. Eu tava falando com Luan, ele disse: Uai vó, essa coisa errada? A senhora que fazia errada! Mais não é não... Ainda achei um caderno do tempo que eu estudava que a gente guardava tudo e mostrei ele como. Muitas palavras que punha Z no meio da palavra, hoje o S vale z. Escrevia com Z! Aí sai... como a gente num estudou, essa parte então mudou muito o português...

Eu guardei (o caderno) pra mostrar pra meus filhos o tipo que eu falava, eu sempre tive isso na ideia, as coisas vai consertar ainda, por que quando eu conto pra eles, eles fica rindo, eles ri mesmo de mim, hoje leva lápis de cor, é giz, é tudo, caderno de desenho, tudo pra...nós não, nós num tinha, coitado de papai, inda comprava pra nós era um caderno...cês nem conhece...era de três periquito... mas ruiuuuuuuuuuuuuuuuim mesmo, ele era uma cor mais esquisita, xedreizim, muito ruim de folha, todo moleco, moleco... quando dava desenho na sala de aula, tudo quanté desenho que dava eu coloria de preto. O lápis que eu tinha era o de escrever, eu não tinha outros lápis... Eu sempre pensava em ter uma família pra poder mostrar pra eles como que era o tempo. Eu só pensava no tempo consertá, porque eu não desejava pra minha família a pobreza que fui criada, a dificuldade. Então eu desejava que pra eles ia ser uma coisa melhor, e foi. E pros netos...e agora pra eles tá sendo melhor de que pros meus ainda. La vai é... evoluindo cada vez mais, aperta de um lado, mas eles têm aquele ensinamento, tem tudo... que dia nóis escrevia com lápis até pequenininho. Quando não dava tamanho mais pra segurar, o povo usava aquela casca de bala pra amentar nós punha pra nós acabar com ele. Agora quando o lápis fica assim... joga ele fora que ta pequeno! Pasta, de ir na aula, é...minha mãe fazia a pasta pra nóis de saco que antigamente usava o saco de carregar sal pra boi, aí ela costurava aquela palha e emendava, embainhava, punha uma tira, um cordão, e punha na boca pra franzir. Ali que nos levava os cadernos. Depois quando usou o plástico, as meninas e os meninos que eu criei, Genaro, Maria mãe de Lena, Matilde,

que fui eu que criei eles, então, pra eles já teve o plástico, vinha aquelas sacolas de arroz, e aquilo era o melhor que tinha pra levar caderno pra aula, pra num moiá, e hoje já é... cada uma... tem a parte de por nas costas, já não quer mais de rodinha...cada uma tem uma...

É importante lembrar que não foi a escola que trouxe a cultura escrita para a comunidade. A escola foi, antes, um elemento que a aproximou e trouxe novas significações às culturas do escrito. Antes de irem à escola, os velhos, segundo D. Nilse, já tinham aprendido a ler com o ele. Quando o MOVA veio pro Matição, não foi ideia nossa não, o pessoal do Luiz e da Daya é que trouxe e a gente gostou da ideia, contou-me Marilene. Assim, quando eu me propus a dar aulas, não foi iniciativa de ninguém da comunidade ― como eu já relatei, era uma proposta que fazia ressonância com as minhas ideologias. Sei que há pessoas adultas analfabetas em Matição. Quando eu escrevo, mas quero colocar uma adversativa que parte dos meus pressupostos ― não existe um movimento das lideranças mais jovens, como Marilene, no sentido de fazer com o que os mais velhos participem da escolarização.

Um dos pressupostos que deu origem ao meu objeto de pesquisa foi a leitura da tese Os projetos sociais do povo indígena Xacriabá e a participação dos sujeitos: entre o “desenho da mente”, a “tinta no papel” e a “mão na massa”, defendida em 2012 pela Faculdade de Educação da UFMG. Nessa pesquisa, a autora Suzana Escobar80 também reflete sobre a relação da escolarização e da cultura escrita na terra indígena. Ela retoma a fala de uma das lideranças anciãs que havia entrevistado em sua pesquisa de mestrado e conclui:

D. Ercina estabelece a relação entre leitura, escrita e escola, mas ela levanta suspeitas a respeito da função que exercem no processo de configuração dos sujeitos Xacriabá. A boa formação a qual se refere D. Ercina foi vivenciada por seu filho [...]. Narrando sobre seu processo de formação, ele esclareceu que seu pai lhe ensinara a rezar, respeitar a irmandade e o valor da amizade e o valor dos trabalhos internos das devoções. Em suas palavras, é flagrante a

80

Também articulando contextos de liderança e culturas do escrito, considerei este trabalho relevante por trazer

importantes contribuições foi a tese de Suzana Alves Escobar, de 2012: “Os projetos sociais do povo indígena Xacriabá e a participação dos sujeitos: entre o “desenho da mente”, a “tinta no papel” e a “mão na massa””,

orientada pelas professoras Ana Maria Rabelo Gomes e Ana Maria de Oliveira Galvão. O objetivo dessa tese é descrever e analisar as práticas de associativismo do Povo Indígena Xacriabá, focalizando a participação dos sujeitos na elaboração, implantação e gestão dos projetos sociais, processo mediado pelas práticas da oralidade e da linguagem escrita. Assim como aquelas das comunidades quilombolas, as associações que foram objeto da pesquisa referenciada acima são entidades reconhecidas pelo estado nacional, e para garantir sua legitimidade, supõe um processo burocrático de escrita formal. Nesse contexto, Suzana Escobar definiu três tipos de usos e funções da escrita pelos sujeitos: uso simbólico (pelas lideranças ― mesmo analfabetas ― em atividade na associação), uso político (como a utilização de algum material escrito para dar vazão a assuntos determinados por meio da oralidade) e uso técnico (baseado na função oriunda da interpretação do código alfabético nas situações relacionadas aos projetos sociais).

ausência da escola e da relação com a leitura e escrita. (ESCOBAR, 2012, p. 161).

Escobar também convoca Gomes (2006) ao dar continuidade a sua análise:

Os novos atores sociais, construídos pela mediação da prática escolar e pelo domínio da linguagem escrita, se legitimam intervindo em procedimentos culturais importantes para a vida do grupo, modificando sensivelmente as práticas tradicionais realizadas pelos mais velhos (analfabetos), definindo os contornos do processo de letramento em curso. (GOMES, 2006, p. 01 apud ESCOBAR, 2012, p. 162).

Antes de iniciar a pesquisa de campo, considerei ser essa uma hipótese provável: de que a escolarização e a escrita teriam modificado significativamente as práticas tradicionais dos mais velhos. Apesar do aumento da escolarização com o passar das gerações, as práticas dos velhos, segundo Marilene, seguem os passos dos ancestrais, e, mesmo muitas vezes os mais velhos apontando o desinteresse dos mais jovens, não se pode dizer que os novos atores sociais, como é o caso de Marilene e Lindomar, construídos pela mediação da prática escolar, pelos inúmeros pesquisadores e universitários que fazem pesquisa em Matição, pelas pessoas que realizam projetos de ONGs e pelo domínio da linguagem escrita, modificam “sensivelmente as práticas tradicionais realizadas”.

Ao contrário, a escrita é, muitas vezes, uma tecnologia que ajuda na luta, na aquisição e na manutenção dos direitos sociais ― como veremos no próximo capítulo. Se ocorrem mudanças sensíveis nas “práticas tradicionais” ― o curto prazo de minha pesquisa não me permitiu percebê-las ― não podemos dizer que é agência apenas da escola e do outro português por ela engendrado. As mudanças ocorrem com as entradas e saídas de atores, de acordo as novas demandas, interesses. A cada momento, os elementos se associam de múltiplas maneiras com as circunstâncias e com configurações sociais.

Faz-se necessário, portanto, considerar que a importância ou não da escola, bem como seu potencial de transformação e de mudança, deve ser analisado considerando os múltiplos atores e as maneiras como se configuram esse coletivo. Se no caso dos Xacriabá, ela agencia uma transformação, “intervindo em procedimentos culturais importantes para a vida do grupo”, levanto suspeitas ao afirmar o mesmo na Comunidade Quilombola do Mato do Tição, à maneira como preconizou D. Ercina na tese de Suzana Escobar. O que ocorre é uma transformação a favor da agência de uma identidade quilombola, portanto, em prol da resistência dos valores, das tradições (ainda que sejam tradições inventadas). Mais um pressuposto inicial desfeito!

Temos vários exemplos que nos fazem refletir sobre as maneiras como os quilombolas se apropriam das funções da escrita sendo afetados pelo diálogo e pelas trocas com pessoas e eventos da universidade. Por exemplo, a realização da Semana da Consciência Negra. Marilene, que idealizou e organizou a celebração, apropriou-se do formato acadêmico: apresentação de palestras e de monografias realizadas na comunidade. Essas apresentações foram seguidas de rodas de batuque, gira de preto velho, rodas de capoeira e samba de raiz ― ou no diálogo com minha mãe recorrendo a palavras médicas. Além desse, podemos trazer aqui outro uso da escrita com função de agência e de autonomia. Um grupo de cinema realizou um filme na comunidade amparado por recursos financeiros da Fundação Palmares. Nesse processo, houve brigas e desconfianças, segundo Marilene, não houve respeito aos combinados e às hierarquias. A liderança teve a iniciativa de enviar uma carta à Fundação explicando os motivos da comunidade não ter sido contemplada com os recursos adquiridos no projeto. A carta possibilita o acesso a outros editais do órgão e legitima denúncias de abusos por parte de alguns grupos.

Se a escrita e a escola forem concebidas como um processo de imposição de uma cultura sobre a outra e de modificação das práticas culturais específicas, estaremos negando a agência e a autonomia dos povos de reelaborarem os processos sociais, políticos, e econômico da forma como lhes é conveniente: saber ao menos assinar o nome pra ter um nome pra falar nesse mundo fora. Não estamos, com isso, isentando o Estado de ações simbolicamente violentas sobre os povos, mas tentando afirmar que a interação com ela implica agência e resistência, e não aculturação. Um dia, em uma conversa com D. Divina ― ela me trouxe uma ponderação, quando perguntei a ela sobre a questão quilombola, que vai em direção da