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Escrita arrumada, conversa fiada: (des)entendimentos e outros tropeços metodológicos.

Capítulo II. A ORALIDADE EM MATIÇÃO

2.1 Escrita arrumada, conversa fiada: (des)entendimentos e outros tropeços metodológicos.

Pode anotar, uai... aí cê arruma as palavra, arruma aí tudo direitinho, né? Aquele negócio de palavra errada! Eu não sei falar direito não... Diz Rosaura, diante do gravador, diante de mim, a entrevistadora. Não me surpreendi. Eu não sei falar direito não precedeu muitas das longas conversas possibilitadas pela minha estada em campo. Na cozinha de D. Nilse, porém, onde sempre as singularidades aparecem, dela ouvi, certa vez, o desmentir: É que a nossa língua que a gente fala aqui é a língua nossa, o modo de falar, é a língua que veio junto da nossa criação da mistura dos índios e dos escravo, dos africano...nós, irmãos, a gente fala como papai falava e mamãe, muita coisa na língua mudou, a gente vê pelo jovem que mudou, mas esse jeito da gente falar é mais pra essas coisas que só a gente aqui entende.

Num tem outro jeito de dar entendimento. Aí, os menino vão pra escola e aprende, Graças a Deus aprende a escrever e falar certo, se a gente tivesse ido também...mas nós não tinha condição...eles aprende, vem, mostra, é bom...mas aí parece que não consegue mais ouvir os velho, o que nós tem pra contar, eles até escuta, mas num interessa em aprender nossa língua...

As falas apresentadas neste tópico demonstram a consciência de que mesmo no falar há hierarquizações simbólicas, e isso traz implicações e consequências. Existe um falar certo que é o falar aprendido na escola, uma escrita arrumada, que vem com a pesquisadora (que, por acaso, também é professora de Português), um padrão de linguagem trazido pela maior aproximação dos sujeitos com as culturas do escrito. Assim, quando D. Nilse nos traz o fato de que muita coisa na língua mudou, ela aponta também para mudanças significativas de padrão social e cultural e para a emergência de novos atores sociais no quilombo. O que implica também novas maneiras em transmitir conhecimento entre as gerações. A partir dessa diferença, que ali me foi colocada, fui começando a entender o meu lugar nas interações que estava construindo.

Pede-se sempre perdão quando se escreve, registrou Jacques Derrida. Afinal, escrever é como uma traição. É ainda mais difícil quando se trata da escrita acadêmica, uma escrita arrumada, regida por um fundamento que apaga as diferenças e, portanto, as multiplicidades. A traição parte do fato de que a experiência de hospitalidade de quem ouve o contar daquelas mulheres e não pode ser manifesta neste tipo de texto. É, nesse sentido, que justifico a necessidade de um esforço de transcriação em vez de um esforço de tradução, sobretudo porque se trata de línguas iguais, mas diferentes. Explico a aparente contradição: todas nós, dentro do mesmo registro da Língua Portuguesa, orientadas, no entanto, por diferentes conceitos dentro de uma mesma língua. Como nos lembrou D. Nilse, não tem outro jeito de dar entendimento.

No papel, as palavras são ainda mais ardilosas. Elas podem se tornar, no registro, independentes do contexto. Por isso, o desafio dessa pesquisa foi o de manejá-las para compor com as histórias e estórias, tantas, trazidas por essas mulheres da Comunidade Quilombola do Mato do Tição ― que, por vezes, afirmam: Eu não sei falar direito não, mas... Frase que antecedeu longas conversas, trajetórias riquíssimas em uma profusão de memórias, vivências e saberes. Eu não sei falar direito não é precaver aquela ― que se apresentou como professora de Português, disposta a dar aulas, mais uma pesquisadora da universidade e que veio estudar culturas do escrito ― de que saber ouvir é, muitas vezes, saber se despir de todas

essas adjetivações. Saber, assim, se deixar levar pela hospitalidade e pelos afetos daquele contar. Compartilhamos com as palavras de Martins (1997, p. 20) ao dizer:

Queria eu desenhar uma melopeia que traduzisse na letra escrita (impossível desejo!) o fulgor da performance oral, os matizes de uma linguagem sinestésica que conjugasse as palavras, os gestos, as músicas, e os comportamentos imanentes na materialidade sígnica e significante [...]; uma dicção que não elidisse o sujeito e o objeto, o sopro e o estilete, o ritmo e a cor. Mas a escrita recobre de outros matizes e modulações e, mesmo quando recobre a sinestésica performance da oralidade, desvela-nos outras diferentes possibilidades de fruição.

Sentada à mesa da cozinha de D. Nilse ― onde, quase sempre, Seu João e Miro chegavam do mato pela porta de trás e as demais pessoas entravam, sem muitas cerimônias, pela porta da frente ― é a forma como mais ouvi as narrativas das pessoas do Matição. Ouvi a boa prosa também sentada nas muretas que circundam as varandas, encostada na parede da capela, caminhando no mato com D. Bina, abrindo massa de pastel com Rosaura ou sentada no sofá de D. Divina. O fato é que, algumas vezes, descrente na prosa como um material de pesquisa, eu tentei mobilizar situações para criar um contexto de entrevista.

Ligar o gravador, no entanto, nesses momentos, significou tornar a conversa um fracasso, silenciar, constrangidamente, alguma história e ter que lidar com o embaraço das respostas monossilábicas. Compreendi, com isso, que dar entendimento dependia de um contexto e de uma interação entre quem fala e quem escuta: a hospitalidade daquelas pessoas estava, especialmente, na sua arte de narrar. É evidente que ser hospitaleiro, quando a conversa é agenciada por um aparelho de registro, torna-se uma tarefa bem mais difícil.

Ora, como trazer para o texto essa hospitalidade, ao considerar esta dissertação como uma modalidade (nada hospitaleira, diga-se de passagem) de uma “tradição disciplinar dominante nas ciências sociais”, e ser, por outro lado, o discurso singular dos quilombolas do Matição de uma “tradição de oralidade popular”?48

Talvez, a resposta a esse desafio seja evitar uma apropriação do discurso da alteridade. Em vez disso, deixar vir o outro ao texto, o devir do outro: esse outro que são as mulheres do Matição. Retomo a explicação de D. Nilse: É que a nossa língua que a gente fala aqui é a língua nossa, o modo de falar, é a língua que veio junto da nossa criação da mistura dos índios e dos escravo, dos africano (...) mas esse jeito da gente falar é mais pra essas coisas que só a gente aqui entende. Num tem outro jeito

48O uso das aspas: faço referência, ironicamente, à dominação discursiva e epistemológica (tratada em

Boaventura de Sousa Santos (2007) da modalidade escrita em relação à oralidade, e da ciência, em relação ao demais saberes.

de dar entendimento. Explicação cujo alcance singularmente político se aproxima do questionamento de Derrida (2002, p. 25):

[...] como cultivar a poeticidade do idioma em geral, o seu em-si, o seu oikos, como salvar a diferença linguística, seja ela regional ou nacional, como resistir ao mesmo tempo à hegemonia internacional de uma língua da comunicação [...], como opor-se ao utilitarismo instrumental de uma língua puramente ficcional e comunicativa sem com isso ceder o nacionalismo, ao estato- nacionalismo ou ao soberanismo estato-nacionalista, sem dar essas velhas armas enferrujadas à reatividade indenitária e a toda velha ideologia soberanista, comunitarista e diferencialista?

Muitos trabalhos a respeito das práticas orais em comunidades tradicionais se atêm à dimensão estética das narrativas, na qual a forma se faz mais importante que o conteúdo. A meu ver, esses trabalhos que partem de uma sociedade que registra, na escrita, todas as fontes que julgam importantes ― cometem o equívoco de tornarem exóticas as práticas de oralidade, na perspectiva do mito e da crença, reiterando, assim, a hierarquização científica do conhecimento. Essa abordagem reduz a diferença à curiosidade e ao folclore, e impede de analisá-la como uma produção de conhecimento49. É o que faz com que muitas daquelas mulheres acreditem não saber falar direito, quando esse falar é precioso lócus de saberes de um pensamento outro.

No livro História Geral da África50, a oralidade é colocada como uma tradição dos povos de origem africana, o que pode ter se perpetuado apesar da diáspora. O pesquisador que trabalha com tradições orais, segundo a metodologia proposta no livro, “[...] deve compenetrar-se da atitude de uma civilização oral em relação ao discurso, atitude essa, totalmente diferente da de uma civilização onde a escrita registrou todas as mensagens importantes”, de acordo com Jan Vasina(2010, p. 139). Além disso, destaca-se a importância de evitar a hierarquização da “sociedade letrada”:

As civilizações africanas, no Saara e ao sul do deserto, eram em grande parte civilizações da palavra falada, mesmo onde existia a escrita; como na África ocidental a partir do século XVI, pois muito poucas pessoas sabiam escrever, ficando a escrita muitas vezes relegada a um plano secundário em relação às preocupações essenciais da sociedade. Seria um erro reduzir a civilização da

49Falaremos a respeito dessa produção e manutenção de conhecimento por meio da oralidade no capítulo IV. 50

É importante dizer que a coleção História Geral da África é um grande marco no processo de reconhecimento do patrimônio cultural da África. Além de ser um dos únicos livros sobre história da África escrito por

pesquisadores africanos, “permite compreender o desenvolvimento histórico dos povos africanos e sua relação

com outras civilizações a partir de uma visão panorâmica, diacrônica e objetiva, obtida de dentro do continente” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010).

palavra falada simplesmente a uma negativa, „ausência do escrever‟, e perpetuar o desdém inato dos letrados pelos iletrados, que encontramos em tantos ditados, como no provérbio chinês: „A tinta mais fraca é preferível a mais forte palavra‟. Isso demonstraria uma total ignorância da natureza dessas civilizações orais. (VANSINA, 2010, p 139, grifos do autor).

É importante trazermos aqui também concepção de narrativa da qual partimos para o desenvolvimento desta análise. Partimos do pressuposto de que a narrativa é uma arte verbal muito presente nas culturas orais, e as histórias contadas são usadas para organizar, armazenar e comunicar o que se sabe (ONG, 1993). Segundo Lopes (2004, p.199), “se todo conhecimento humano vem da experiência processada mentalmente, é preciso vivenciar uma operação intelectual simples, como a de contar o que ocorreu, baseando-se, para tal, no fluxo de tempo vivido”. Segundo o autor, desenvolver um fio narrativo é um modo característico de lidar com o fluxo do tempo.

No entanto, a narrativa não é apenas uma maneira de lidar com o fluxo do tempo. Ela também reconstrói territorialidades e possibilita novas interações com o espaço (vivido e contado). Nesse sentido, nossa proposição vai ao encontro da concepção elaborada por Walter Benjamim (1994), de que a narrativa é um acontecimento infinito, na qual a experiência se constrói e se reconstrói na medida em que é narrada, “pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (p. 37).

Além de trazer a perspectiva de narrativa, pareceu-nos importante trazer também alguns conceitos em torno da oralidade que foram importantes ao manejarmos as análises dos dados de campo. Segundo Ong (1988), apesar de não existir, hoje, comunidades de cultura oral primária, ou seja, sem absoluto contato com a cultura escrita, a escrita não pode prescindir da oralidade. Em suas palavras,

a despeito dos mundos maravilhosos que a escrita abre, a palavra falada ainda subsiste e vive. Todos os textos escritos devem, de algum modo, estar direta ou indiretamente relacionados ao mundo sonoro, habitat natural da

linguagem, para comunicar seus significados. “Ler” um texto significa

convertê-lo em som, em voz alta ou na imaginação, sílaba por sílaba na leitura lenta ou de modo superficial na leitura rápida, comum a culturas de alta tecnologia. (ONG, 1988, p. 16).

Além disso, o autor propõe também que na oralidade, há uma conservação do passado, daquilo que se mantém importante para a sociedade na atualidade. Aquilo que não faz parte

da experiência e das condições do presente são constantemente reformuladas. Na oralidade, interessam mais os significados das palavras empregados na vida real:

As palavras adquirem significados somente de seu hábitat real sempre constante, que não consiste meramente, como num dicionário, em outras palavras, mas inclui também gestos, inflexões vocais, expressão facial e todo o cenário humano e existencial em que a palavra real, falada, sempre ocorre. Os significados da palavra nascem continuamente do presente, embora os significados passados obviamente tenham moldado o significado presente em muitos e diferentes aspectos, já não reconhecidos. (ONG, 1988, p. 58).

Nesse repertório de gestos, silêncios, inflexões, os significados e os sentidos sobre a própria identidade quilombola vão se deslocando. Nesse deslocar-se, a prosa vai tomando rumo. No próximo tópico, analisaremos como funciona esse processo. Isto é, como as histórias circulam e como esse movimento dos causos é responsável por dar contornos à conjugação da Comunidade Quilombola do Mato do Tição.