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Capítulo I. MATIÇÃO E AS MULHERES DO MATIÇÃO

1.5 A questão quilombola

Como vimos por meio dos depoimentos das mulheres de Matição, elas reinstauram o mito de origem da comunidade em torno do processo de escravidão em continuidade do racismo. Através das narrativas, nas quais há vários episódios que demonstram como a ausência de direitos, as dificuldades de acesso à saúde, educação, trabalho e terra ― elementos que demarcam uma fronteira entre os grandes e nós, os de fora e nós, a rua e o Matição ―, é possível perceber a perspectiva que elas têm da comunidade: se perceberem enquanto não pertencentes à sociedade. Nesse sentido, a questão quilombola opera em duas esferas: a princípio, negam-se a uma identificação que possa fazer com que eles retrocedam nos direitos que já haviam conquistados. Quilombola como sinônimo de cavar pedra, de voltar a uma

situação de opressão que, de certa maneira, já estava sendo reelaborada. Depois, ao perceberem que o registro possibilita a garantia desses direitos, passaram a aceitá-la e a manejá-la para a garantia de direitos. Os deslocamentos de sentido se dão ao negarem que se trata de um quilombo por terem medo ao retrocesso da escravidão, e entenderem e se afirmarem enquanto quilombo como algo para impedir esse retrocesso.

Essa dinâmica de aceitação e de atualização da identidade negra e quilombola, de ora negá-la, ora acioná-la, é uma negociação é um caminho encontrado para sair de uma situação de subalternidade a que estavam submetidos há muitas gerações. Nesse contexto, passam a falar com orgulho dos avanços sociais e políticos, além das próprias manifestações culturais, como o candombe, as rezas, as festas, já que entenderam que essas manifestações também são uma forma de operar com a diferença para lutar pelos direitos. A partir dessa ressignificação, a diferença que demarca a fronteira entre os daqui e os de fora passa a ser artefato político. A cultura escrita, aí, ganhou um novo sentido: novos usos, novos contornos e novas significações. O acesso à escola, a atuação das lideranças políticas, a possibilidade participação em diversos contextos institucionais, dentre outros, são elementos que influenciaram nessa passagem e nessa nova significação aos deslocamentos de sentido na conjugação da comunidade. Dessa forma, a escrita é um dispositivo que está a serviço dessa identidade que conjuga gênero raça e ancestralidade e de uma ação afirmativa de se dizer, se posicionar e se afirmar.

O processo de obtenção da certificação quilombola, aberto por iniciativa dos mais novos em parceria e diálogo com movimentos sociais e com pessoas de fora, como pesquisadores, vereadores e prefeitos, implicou a criação de uma nova associação43, denominada Associação Quilombola do Mato do Tição, em 2004. Nesse momento, as reuniões que se seguiam sob liderança de Lindomar João dos Santos (mais conhecido na comunidade como Dó) destinaram-se ao processo de regularização fundiária e de retomada do território tradicional. Em 2006, a comunidade obteve a certificação da Fundação Cultural Palmares, como já mencionado neste estudo, mas o processo de regularização fundiária ainda não foi iniciado pelo INCRA. Em uma conversa entre D. Nilse e Juliana44, D. Nilse nos contou, brevemente, a história da associação, desde antes de ser uma associação quilombola:

Juliana: Antes de virar quilombo não tinha associação não?

43Anteriormente, existia uma associação, criada por D. Divina, mas ela estava com muitas dívidas e muitos

problemas jurídicos. Assim, foi necessário fundar outra associação com um novo Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), e não apenas mudar o nome.

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D. Nilse: Tinha uma associação ai, mas ela não ia aguentar, foi bom que segurou, foi uma das primeiras associações, logo quando saiu esse negocio de associação que teve a associação. Então o nome dela era... Comunidade Negra do Mato do Tição, que ela era registrada. Aí ficou. Enquanto era ela registrada comunidade negra vinha muito visitante da África, vinha esse coronel que foi prefeito aí, na casa da Dona Divina tem a foto dele com aquele homem lá do Rio. Trazia deputado... E foi andando, aí já veio a coisa que a EMATER já pegou a coisa que podia ser comunidade quilombola, quilombo, aí que trocou de presidente e registrou a associação como quilombola.

Eu: Era você a presidente?

Nilse: Quem era a presidente era a Divina. Aí trocou. Ela foi a primeira presidente, coitada, penou demais, imagina, mulher naquela época, cabou que ficou uns vinte anos! Até Lindomar... quando ela pegou essa associação o Lindomar tinha sete anos, o Lindomar cresceu, estudou, e quando ele formou no quarto ano do colégio que ele estudou um bocado desse negocio de quilombo, mexia com as coisas do movimento...do movimento negro...e aí ele já tomou conta. Pra nós adquirir esse pedacinho que nós temos aqui, demorou quase uns 20 anos. Porque quem tomou essa terra nossa também tomou os outros que veio... quem tomou não foi esses que tomaram nós não. Porque eles tavam passando de um pro outro, de um pro outro, ai o outro viu que os antigos tomou e queria tirar nós daqui pra fora. Aí foi que a gente entrou na justiça. E não é só essa, é tudo pra cima. Tá no INCRA, mas o INCRA nunca solta.

Juliana: E a D. Divina gostou na mudança do nome?

Nilse: Ela que foi a primeira a não gostar! (risos) O Dante velho também não queria: “Cês vai, bobo! Num instantinho vai por nóis para cavar pedra, pra essas coisas, ninguém é liberto pra ficar igual era, você penou tanto!” Então ficou nós na balança muitos anos, e muitos anos depois que Lindomar estudou, foi ver o que era, e foi conversar na associação e todo mundo aceitou.

Juliana: Como que a D. Divina chegou a ser presidente?

Nilse: Ela foi presidente assim: o Coronel Valério, ele era coronel da polícia, não era aqui não. Ele trabalhava na bandeira do Brasil, porta bandeira... aí nele aposentar ele quis vim pra terra dele, e ele ganhou aí para prefeito. Aí nele ganhar para prefeito ele continuou a reunião toda a semana, e falou que ele queria era associação em todo local que fosse afastado da cidade. Aí pegou Divina pra ser, mas Divina sem saber de nada! Valeu porque viu muita gente, ficou conhecendo o presidente presentemente, o Newton Cardoso teve aí na

comunidade, vinha de várias pessoas. Mas ficou assim, Divina já velha assim já pegou uma coisa “ah, você vai ser a presidente!”, e ela não sabia, coitada. Ela não entendeu porque, e ficou sem entender até hoje.

Segundo D. Nilse e D. Bina, essa mudança para o registro quilombola se deve a Lindomar, que estudou e sempre foi militante do Movimento Negro. Como elas nos mostram, hoje a mudança é encarada como uma conquista que envolveu múltiplas alianças com movimentos sociais, com pessoas vinculadas ao Estado, com pesquisadores e com outras pessoas de fora. Claramente, essa adesão não só foi agenciada por práticas mediadas pela escrita quanto favoreceu a aproximação do grupo com as culturas do escrito. Essas novas relações possibilitaram para a comunidade uma nova criação de sentido quilombola, composta por avanços políticos, sociais e por garantia (eventual) de direitos. Novos sentidos compostos também por outras experiências, diferentes daquelas de costume.

A questão quilombola foi entendida, pelos mais novos, como sinônimo de ligações mais facilitadas com o Estado na luta por garantia de direitos, e pelos velhos, foi compreendido como sinônimo de cavar pedra, como fizeram com a Tança. A palavra quilombola provocou, na história de Matição, cisões e adesões. Hoje, as mulheres, tanto as mais velhas quanto as mais jovens que passaram por essa mudança, falam com orgulho de ser quilombola. Inclusive, como diz Marilene, a esse orgulho se deve o envolvimento cada vez maior na organização da festa da Consciência Negra no Matição. Ser quilombola é saber de onde a gente veio, é saber onde estamos e para onde vamos, ela diz frequentemente em situações de fala pública. Acionar essa categoria, para essas mulheres, não só orienta como dá significado às ações e às interações (motivadas tanto por forças de dentro da comunidade quanto por forças externas a ela). Ser quilombola, para elas, portanto, não é uma base na qual se constrói uma identidade. É, antes, uma base com a qual se ressignifica as identidades em jogo no tecido das relações. Quilombola nomeia agenciamentos territoriais, políticos, jurídicos, burocráticos, culturais, semióticos, sociais, etc.. Nesse sentido, a acepção de identidade quilombola construída e colocada por elas vai ao encontro da teoria de Hall:

[...] conceito estratégico e posicional. Isto é, de forma diretamente contrária àquilo que parece ser sua carreira semântica oficial, esta concepção de identidade não assinala aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história.(HALL, 2000, p. 108).

Desde a diáspora africana, foram constantes as negociações do povo negro na luta pelo direito à existência. O deslocamento de sentido em relação a „ser quilombola‟ relatados em depoimentos registrados neste capítulo mostram-nos que a potência da resistência está em saber renovar as informações, tanto aquelas que provém da comunidade como aquelas que chegam de fora dela, conjugando-as. As interações sociais, assim como as relações com os novos atores sociais que entram em cena, não são garantidas por um princípio identitário unificador que a todos sujeita de forma homogênea. Isso reitera o fato de que a identidade quilombola está em constante agência por vários atores.

Atualmente, a Associação Quilombola do Mato do Tição é presidida por Jairnei. No entanto, Marilene ainda atua como liderança. Ela explica: A Jairnei entrou porque eu já cumpri dois anos de mandato, é o máximo, mas quem continua [a orientar]sou eu. Ela assina, a situação dela tá se regularizando, mas ela tá aprendendo, outro dia eu até me surpreendi que ela leu, releu, pensou, viu que aquilo ali tinha uma coisa errada e disse assim, ó, num vou assinar isso aqui não, tem muita coisa esquisita nisso aqui. Trata-se de uma organização institucional, autônoma, que, hoje, se estabelece além da questão quilombola. A interlocução dos integrantes, particularmente de Marilene, com pesquisadores, com membros de movimentos sociais, de ONGs ou com integrantes do Município via EMATER, como Mariângela (que me foi apresentada como o anjo da guarda do Matição), potencializa e otimiza as ações e os recursos.

Entretanto, a possibilidade de aquisição de direitos especiais, possibilitados pela autodefinição, trouxe, por outro lado, outros tipos de exploração e de abuso, para os quais as lideranças quilombolas estão cada vez mais preparadas e atentas. Quando propus a realização deste trabalho à Marlene, por exemplo, como já foi exposto neste estudo, ela foi objetiva quanto aos problemas enfrentados pela comunidade, relacionados à colonialidade do poder, e também me pediu objetividade a respeito da contrapartida e de como apresentaria o trabalho às mulheres.

Novas territorialidades, assim, são definidas a partir de uma ação particular dos quilombolas e a partir de sua forma de agir e de interagir politicamente. As ações, interações e intervenções das mulheres do Mato do Tição criam maneiras próprias de constituírem-se enquanto quilombolas, enquanto mulheres, enquanto lideranças. As fronteiras categóricas entre as dinâmicas locais e as dinâmicas globais, dos daqui e dos de fora, são ora acionadas ora desfeitas. Ora mobilizadas, ora diluídas. As redes constituídas são fluidas e atravessam inúmeras possibilidades, fruto de negociações constantes que possibilitam sua existência

política, territorial, cultural. Esse arranjo torna ainda mais ofensivo o fato de os saberes de Matição serem tratados como crenças, a fé como folclore, a existência como museu (inclusive nas escolas que atendem às crianças da comunidade).

Os últimos anos representaram mudanças nas quais novos sujeitos sociais ― recentemente escolarizados, submetidos a novas dinâmicas de terra, de trabalho e políticas ― influenciam e ressignificam a comunidade, o devir Mato do Tição e até as práticas tradicionais, sem, no entanto, transformá-la em uma comunidade quilombola com muitas atribuições jurídicas externas e sem considerar as atribuições internas. O território Matição, assim, vai sendo, aos poucos, redesenhado e redemarcardo a partir das múltiplas, porém, fluidas, fronteiras categóricas. Como diz Oliveira e Silva (2013, p. 21, grifos da autora), Matição

se trata de um território físico e existencial constituído por povoações, migrações, ocupações, expulsões, parcerias e rivalidades. Um território

centrado em questões próprias ―a cidade Matição, conforme diz Divina ― que, continuamente atravessado e recomposto por „um fora‟, se conecta

criativamente e sob diferentes modalidades de relação com questões outras não previstas pela tradição.

Nesse território “centrado em questões próprias”, mas “atravessado e recomposto por um fora”, é interessante trazermos aqui o papel da oralidade nessa composição. Não queremos dizer que há uma cisão entre a oralidade e a escrita. Ao contrário, como veremos no capítulo seguinte, a construção e a negociação da identidade quilombola atrelada à oralidade colabora para que eles reposicionem a cultura escrita a seu favor. Mesmo quando não se escreve, é possível manejar a escrita, fato que não reduz a importância que tem a oralidade na constituição das tradições em uma comunidade dita tradicional. Dessa forma, parece-nos interessantes trazer as maneiras como as mulheres manejam a língua em suas múltiplas possibilidades de interação e agência.