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A concepção no Manifesto Comunista

2.2 A teoria da crise em Marx

2.2.2 A concepção no Manifesto Comunista

A concepção de crise de Marx e Engels condensada no Manifesto Comunista de 1848 expressa, em linhas gerais, uma articulação conceitual mais ampla que as desenvolvidas em seus trabalhos anteriores. Ela é apresentada como termo que exprime a contradição histórica entre forças produtivas e relações de produção no curso da existência humana, nas relações metabólicas do homem com a natureza e entre si. Estas relações de produção, determinadas pelas relações de propriedade, mediatizam a unidade entre as estruturas econômicas, sociais e políticas e ordenam a relação entre as forças produtivas – a força de trabalho e meios de produção – que se desdobram, economicamente, nas categorias capital e trabalho, socialmente, nas classes burguesa e proletariado, e, politicamente, em contrarrevolucionários e revolucionários. Quando a forma histórica dessas relações de produção perde sua funcionalidade de propiciar o desenvolvimento harmônico das forças produtivas, obstaculizando ambas, à uma ou outra, apresentam-se crises singulares nas esferas econômica, social e política da sociedade, expressando a contradição histórica que, sob o influxo da luta de classes, conduz à transição de caráter revolucionário entre modos de produção, ou à contra-revolução e barbárie.

A análise histórica no Manifesto inicia com a descrição do processo de crise e transição entre modos de produção, que tem por pressuposto a contradição histórica entre as forças produtivas e as relações de produção, sob o aspecto da luta de classes:

[...]A história de toda a sociedade até aquié a história de lutas de classes.

[Homem] livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo [Leibeigener], burgueses de corporação [Zunftbürger] e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta (MARX, 2010i, p. 483).

Esta relação conceitual entre crise histórica e crise particular ou geral na sociedade é deduzida da descrição do papel revolucionário que a burguesia desempenhou no desenvolvimento das forças produtivas em relação às demais classes dirigentes que precederam a sociedade burguesa. Nesta descrição, Marx e Engels estabelecem uma metáfora entre este papel desempenhado pela burguesia e o do feiticeiro que desperta com suas fórmulas forças superiores a que pode controlar. Continua a analogia apresentando, por um lado, o desenvolvimento das forças produtivas sob as relações de produção e intercâmbio capitalistas, na esfera nacional e mundial, como feito que ultrapassa as obras faraônicas, e o desenvolvimento da grande indústria revolucionando, pela incorporação da ciência e da técnica, a base produtiva anterior e as indústrias nacionais, submetendo-as à nova divisão internacional do trabalho e reconfigurando as classes sociais no desdobramento sintético entre burgueses e proletários; em síntese, “transformando o mundo a sua imagem e semelhança” (Marx, 2010i). Por outro lado, o resultado de todo este processo de expansão e acumulação do capital, que se consuma em grandes crises que, periodicamente, se manifestam no comércio e na indústria, em escalas cada vez maiores, expressa a contradição histórica entre as forças produtivas e as relações de produção como se observa na passagem seguinte:

De decênios para cá, a história da indústria e do comércio é apenas a história da revolta das modernas forças produtivas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que são as condições de vida da burguesia e da sua dominação. Basta mencionar as crises comerciais que, na sua recorrência periódica, põem em questão, cada vez mais ameaçadoramente, a existência de toda a sociedade burguesa (pp. 490-491).

Os autores apontam os efeitos destas crises do comércio sobre as forças produtivas já desenvolvidas, como a aniquilação de grande parte destas. Mas, nesta formulação, deve-se compreender forças produtivas não apenas como mercadorias ou produtos de consumo imediatos (alimentos, vestuários, calçado, entre outros), mas também meios de produção (máquinas, equipamentos, matérias-primas e auxiliares) e, sobretudo,

força de trabalho. Os autores chegam a estabelecer a analogia entre o fenômeno social da “superprodução”, que se apresenta nas crises, e as “epidemias” mais terríveis do passado, chegando ao “contrassenso” se comparada à peste negra, por exemplo. Qualificam este processo como uma regressão momentânea da sociedade ao estado de barbárie: “parece-lhe que uma fome, uma guerra de aniquilação universal lhe cortaram todos os meios de subsistência: a indústria, o comércio, parecem aniquilados” (p. 491).

Diante deste quadro, os autores passam da descrição da aparência e dos efeitos superficiais do fenômeno social da crise à determinação de sua essência, revelando como tal a contradição histórica entre forças produtivas sociais e as relações de produção, ou o que não é mais que sua expressão jurídica: a propriedade privada capitalista. Esta, chegando ao limite de seu desenvolvimento pela supressão da propriedade individual, já não é mais capaz de acompanhar o desenvolvimento das forças produtivas – os meios de produção condensados na grande indústria, nas conquistas da ciência e da técnica; e a força de trabalho, cujo crescimento enquanto classe proletária em si, para atender à acumulação ampliada do capital, aumenta sua luta pela reprodução da prole – e passa a impedi-las, constituindo assim um momento de crise histórica do modo de produção, por trás das crises gerais ou particulares que se manifestam na superfície da sociedade burguesa. Os autores formulam assim o problema:

E porquê? Porque ela possui demasiada civilização, demasiados meios de vida, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas que estão à sua disposição já não servem para promoção das relações de propriedade burguesas; pelo contrário, tornaram-se demasiado poderosas para estas relações, e são por elas tolhidas; e logo que triunfam deste tolhimento lançam na desordem toda a sociedade burguesa, põem em perigo a existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas gerada (p. 491).

Os autores, seguindo a mesma lógica de diálogo, indicam não apenas a forma racional como a burguesia supera as crises, mas sobre tudo a tendência histórica em que se consumará finalmente este processo:

E como triunfa a burguesia das crises? Por um lado, pela aniquilação forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda de antigos mercados. De que modo, então? Preparando crises mais omnilaterais e mais poderosas, e diminuindo os meios de prevenir as crises (p. 491).

Marx e Engels, a partir desta concepção da contradição essencial do desenvolvimento tendencial do sistema capitalista, demonstram como tal contradição se expressa na esfera social, em termos da constituição objetiva das classes sociais e interesses de classes, e na passagem da consciência de classe de classe em si para si. O mesmo desenvolvem na análise da esfera política, na luta pelo poder político e na organização tática e estratégica da luta de classes. Finalizam com o exame da literatura socialista contemporânea, classificando-a ideologicamente segundo o projeto de classe ou fração de classe que o formula.