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2.2 A teoria da crise em Marx

2.2.1 As concepções em Marx e Engels

Até o momento, tem sido aceito por todos os estudiosos do marxismo que o

Manifesto Comunista de 1848 condensa, em linhas gerais, o pensamento teórico de Marx e

Engels em torno da revolução social, anterior e posterior à colaboração teórica de ambos iniciada em 1844 e 1845; logo, não é arbitrário considerar que no mesmo também se encontre a concepção sobre as crises econômicas do capitalismo destes. Os trabalhos individuais que antecedem esta colaboração entre os fundadores do Socialismo Científico são: O Esboço

Para Uma Crítica da Economia Política, escrito por Engels no final de 1843 e início de 1844,

publicado nos Anais Franco-Alemães neste último ano, que segundo estudiosos, exercem forte influência sobre o pensamento de Marx (DEUS, 2012); e os Manuscritos Econômicos e

Filosóficos, escritos por este último entre abril e agosto de 1844.

No trabalho de Engels, as “crises de superprodução”, “monetárias” e “comerciais” que se manifestam “periodicamente” são atribuídas à “propriedade privada”, “à anarquia da produção”, à “concorrência” e à “concentração de capital”, motivadas pelo “egoísmo”, o individualismo e desejo de “lucro”; portanto, uma contradição frontal às ideias de livre comércio, internacionalismo, cosmopolitismo e liberdade individual que vinculavam a economia política nascente ao iluminismo. Embora o artigo de Engels seja mais descritivo e uma condenação moral a “prática comercial”, “a especulação na bolsa”, a “adulteração de produtos”, a “exploração” e “miséria” dos “trabalhadores” e “pequenos comerciantes”, acaba por chegar aos clássicos da economia política (Smith, Ricardo, Say, Betham, Mill, Malthus, MacCulloch, Ure entre outros) e aos críticos destes (Fourier, Sismondi, entre outros) em exercício teórico mais abstrato sob a lógica hegeliana humanista; contudo, lança desafios na investigação dos fenômenos econômicos que encontram ressonância em Marx (MARX; ENGELS, 1975, pp. 418-443).

No trabalho de Marx, a situação se inverte; sua compreensão da crise deriva da sua crítica à dialética hegeliana aplicada à análise das categorias da economia política presentes nos clássicos (Smith, Ricardo, Say, Mill, Schulz, entre outros) e na crítica econômica destes (Sismondi, Proudhon, Pecqueur, entre outros). No Primeiro Manuscrito em que analisa os salários, sua concepção de crise econômica surge associada à estrutura de relações econômicas da sociedade burguesa, como tendência que acompanha o crescente processo de “acumulação”, e consequente “superprodução”, convertendo-se em desdobramento necessário deste. Tal processo resulta da “divisão do trabalho” e da “concorrência”. Estas, desdobradas da “objetivação do operário” em “produto ou máquina”, devido à relação da “propriedade privada”, conduzem ao “estranhamento” deste ao seu produto, consumando-se a contradição fundamental da sociedade entre a “riqueza do trabalho acumulado” nas mãos dos capitalistas e “pobreza” acumulada de seus produtores, os “operários” (MARX, 1989, pp. 106-118).

Neste trabalho de Marx, categorias que mais tarde serão desenvolvidas mais profundamente em sua teoria sobre o capital, tais como “trabalho abstrato”, “acumulação”, “tempo de trabalho”, “valor”, “taxa decrescente dos lucros”, “divisão do trabalho”, “superprodução”, “lei populacional” (exército industrial de reserva), “propriedade privada”, “alienação”, “estranhamento”, “exploração”, entre outras; já se apresentam articuladas como

sistema de contradições representativo da dinâmica da sociedade capitalista, cuja essência de seu “desenvolvimento”, “riqueza” e “refinamento” revela-se como “desumanização”, “pobreza” e “exploração da classe trabalhadora”. A concepção de pobreza não se resume apenas a salários abaixo das condições necessárias à existência humana dos trabalhadores, mas também a sua “redução a condição de máquina ou mercadoria”, isto é, sua redução à coisa, que é o fundamento da sociedade mercantil (passim).

No trabalho que marca o início da colaboração teórica entre Marx e Engels, A

Ideologia Alemã, a concepção de crise econômica aparece primeiramente como parte do

universo de problemas vivido pelos burgueses, seja na França ou na Inglaterra, diferenciando- a da falta de mercados (débouchés), (MARX e ENGELS, 2007, pp. 121 e 122). Também é possível identificar neste trabalho a concepção implícita de crise que transcende a determinação econômica, seja superprodução, financeira ou comercial, chegando à dimensão histórica: o “desaparecimento do Império romano, do feudalismo, do Império alemão e do domínio de Napoleão”. Estas concepções de “crise histórica” e “crise comercial”, irredutíveis uma a outra “sem mediação”, são usadas para demonstrar a incoerência da “sinonímia

etimológica” de Max Stirner, que se reduz à busca direta de um nexo etimológico entre

radiciais de palavras ou expressões conceituais e é, portanto, incapaz de resolver fenômenos empíricos reais (p. 238).

O mesmo enfoque apresenta-se quando os autores utilizam o fenômeno da crise monetária ou financeira para demonstrar a incoerência da Associação defendida por Stirner como meio de constituir uma sociedade igualitária, porém sem uma transformação de fato das relações econômicas e sociais. Esta formulação idealista, ao reproduzir as relações de produção capitalistas, está submetida às crises deste sistema econômico. A concepção de crise financeira é apresentada de forma descritiva como momento em que a escassez de dinheiro se apresenta na relação entre devedores e compradores, exigindo a capacidade de pagamento em dinheiro de dívidas contraídas. A concepção de dinheiro, cujas determinações o qualificam como meio de troca, meio circulante e meio de pagamento, incorpora “títulos públicos, ações públicas”, “letra de câmbio” e papel-moeda, ultrapassando a noção de moeda metálica concebida por Stirner, que como as demais expressões do valor ou dinheiro é também definida pelos custos de produção, ou seja, pelo trabalho. A crise financeira sob este enfoque de Marx e Engels subentende-se como contradição entre a produção social, definida pelo trabalho, e a expressão desta produção social em termos de trabalho abstrato, ou de valor

expresso em dinheiro (pp. 383-386).

Por último, os autores nesta obra conjunta definem a crise de superprodução a partir da crítica de Karl Grün a Fourier em torno da unidade entre produção e consumo na teoria do socialismo verdadeiro. Para Grün, Fourier perturba a unidade entre produção e consumo com a ideia da superprodução; nestes termos, os autores demarcam precisamente a diferença entre o conceito de superprodução e crise ao afirmar que “a superprodução só provoca crises quando tem influência sobre o valor de troca dos produtos” (p. 498). Neste sentido, à medida que se parte do pressuposto que “o valor de troca desapareceu” (Idem), isto é, que as mercadorias se desvalorizaram a ponto de não se intercambiarem, isto implica que no processo de produção ocorreu uma queda do trabalho abstrato contido nas mesmas, seja pelo barateamento de custos de produção, seja pelo aumento da produtividade; em ambos casos, a redundância provoca uma crise de realização do valor abstrato cristalizado na superprodução, o que, por sua vez, acarreta a desvalorização da sua expressão monetária, o dinheiro. Eis porque os autores criticam a concepção da unidade entre produção e consumo de Grün, que, a partir da ótica do consumo, atribui o problema da contradição entre esses dois fatores à má educação e falta de humanidade dos consumidores (Idem).

Na Miséria da Filosofia, a concepção de crise aparece na crítica de Marx à formulação do valor de Proudhon, na qual o valor ou preços das mercadorias é determinado pelo tempo de trabalho nelas contido, que por sua vez equivale ao valor do trabalho, ou salário. Nesta lógica, o valor do produto e o valor dos salários são iguais, efetuando-se supostamente uma troca justa, segundo a lei da proporcionalidade, que se expressa na unidade entre oferta e demanda ou produção e consumo. Marx argumenta, entretanto, que o valor de troca de um produto só coincide com o tempo de trabalho em uma situação de perfeito equilíbrio entre oferta e demanda, e que tal situação já não existe diante da grande indústria, da concorrência e do monopólio; tornando a lei da proporcionalidade de Proudhon em lei da desproporcionalidade devido aos diferentes tempos de trabalho com os quais os capitalistas individuais produzem. Neste contexto, a crise apresenta-se como uma fase do ciclo industrial inaugurado com a grande indústria, como se observa na seguinte passagem:

Fuit Troja!*

Esta correta proporção entre a oferta e a demanda […] há muito que deixou de existir, tornou-se uma velharia. Ela só foi possível em épocas nas quais os meios de produção eram restritos, nas quais a troca se operava em limites

extremamente reduzidos. Com o aparecimento da grande indústria, esta justa proporção teve de acabar, e a produção é fatalmente obrigada a passar, numa sucessão perpétua, pelas vicissitudes de prosperidade, depressão, crise, estagnação, nova prosperidade e assim por diante.” (MARX, 2010l, p. 137, tradução nossa).

No Discurso sobre o livre-câmbio, preparado para pronunciamento no congresso dos economistas livre-cambistas, que não efetuou, Marx claramente desenvolve uma noção de crise econômica como expressão dialética das relações contraditórias entre acumulação e população operária, como mais tarde desenvolveria mais rigorosamente na Lei geral da acumulação capitalista, em O Capital (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, pp. 178-203). Nesta formulação, as relações de causalidade entre crescimento do capital produtivo, aumento da procura por trabalho e o valor do trabalho, subindo os salários, que é esgrimida pelos economistas, encontra em Marx a seguinte contra-argumentação:

“Se o capital permanece estacionário, a indústria não apenas estacionará mas entrará em declínio, e o operário será, neste caso, a primeira vítima. […] O crescimento do capital produtivo implica a acumulação e a concentração de capitais. A concentração de capitais conduz a uma maior divisão do trabalho e a um maior emprego de máquinas. Uma maior divisão do trabalho liquida a especialidade do trabalho e destrói especialidade do trabalhador, e, substituindo-a por um trabalho que todo mundo pode fazer, aumenta a concorrência entre os operários.” (MARX, 2010m, pp. 459-460).

Vê-se aqui a clara relação entre duas fases do ciclo econômico da indústria como momentos de alta e baixa, ou prosperidade e declínio, mediados pelas fases ou momentos de depressão, crise e estagnação; e todo este processo do capital como movimento de expansão e contração da acumulação, determinado pelas variações quantitativas nas relações entre o trabalho não pago e o trabalho pago, sob o envólucro do valor. Marx, todavia, localiza dentro das relações econômicas as contradições que impulsionam a tendência às crises e afirma:

Enfim, quanto mais aumenta o capital produtivo, tanto mais ele é obrigado a produzir para um mercado cujas necessidades desconhece, tanto mais a produção precede o consumo, tanto mais a oferta tende a forçar a procura e, por consequência, as crises são cada vez mais intensas e frequentes. Mas toda crise, por sua vez, acelera a concentração de capitais e engrossa as fileiras do proletariado (Idem).

Em Carta a Annenkov, em Dezembro de 1846, Marx define a crise econômica de 1825 como a “primeira crise universal” do capitalismo, resultante do desenvolvimento da grande indústria e da introdução da maquinaria à produção. Segundo o autor, antes desta data, a introdução da maquinaria no processo produtivo da Inglaterra foi devido ao crescimento no

consumo acima da capacidade de produção industrial, portanto, atendia às necessidades do mercado deste país; posteriormente, a aplicação da maquinaria deriva da luta entre patrões e empregados. Nos outros países do continente europeu, a maquinaria é introduzida em função da concorrência com a própria Inglaterra; já nos Estados Unidos decorre tanto da concorrência quanto da insuficiência da força de trabalho para atender às necessidades de produção. Esta relação estabelecida entre o desenvolvimento da primeira crise de caráter universal do sistema do capital, acompanhando o processo de mecanização da produção industrial, atribui um papel importante à aplicação tecnológica na universalização do modo de produção do capital e, com ele, da crise de acumulação que lhe é intrínseca (209).