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4 CAPÍTULO 3 A EXPRESSÃO REFLEXIVA DA COMUNIDADE

4.4 Forma singular do consenso

4.4.1 A consciência moral social

O movimento dialético da razão prática intersubjetiva direciona-se, agora, para explicitar a identidade ética da relação de reciprocidade na Comunidade ética. Lima Vaz denomina esta nova experiência de consciência moral social e, por meio dela,

expressa a “forma fundamental de unidade e identidade da comunidade ética, na qual termina o movimento dialético da estrutura intersubjetiva do agir”388.

A forma da consciência moral social é a experiência vivida pelos indivíduos que participam de uma mesma comunidade, ou melhor, ela é a obra da razão prática operando na singularidade do consenso intersubjetivo. Para Lima Vaz, com efeito, a efetivação dessa razão nas comunidades históricas “é atestada exatamente pela aceitação de um mesmo sistema de normas, valores e fins interiorizado em maior ou menor profundidade na consciência moral dos indivíduos”389, por exemplo, a forma dos direitos humanos na sociedade contemporânea.

Devido à radical transformação da relação indivíduo-sociedade na modernidade, que colocou novos parâmetros interpretativos para o consenso social a partir do racionalismo mecanicista torna-se, no entanto, cada vez mais raro o exercício da razão prática intersubjetiva na sociedade. As novas teorias éticas e políticas, com efeito, baseia-se na hipótese do contrato social como fundamento para o consenso, ao partir do princípio de que os “indivíduos são partículas isoladas, que só o atendimento das carências e necessidades irá unir no vínculo jurídico do pacto de sociedade”390.

É, todavia, exatamente o fundamento hipotético do contrato social que se torna problemático para o consenso, porque no ínterim dessa teoria se encontra a presença do conflito que opõe indivíduo e sociedade. Ora, numa sociedade em que os indivíduos se opõem ao social não pode haver equilíbrio e estabilidade, pois o consenso se vê privado de sua dimensão essencialmente ética, limitando-se aos interesses particulares dos indivíduos ou aos fatores condicionantes da sociedade.

O abandono moderno da estrutura racional-volitiva do conceito de consciência moral e a sua interpretação como sentimento moral pelas teorias éticas contemporâneas, fez que o conceito de consciência perdesse a sua significação de ato mediador entre o indivíduo e a sociedade e adquirisse uma polissemia de significados estudados pelas Ciências Humanas. Por outro lado, quebra-se o vínculo ético entre indivíduo e sociedade e a consciência moral passa a ser interpretada em “chave psicanalítica como superestruturas controladoras das pulsões

388 EF V, p. 85. 389 Ibid., p. 86. 390 EF II, p. 261.

inconscientes”391, e a consciência moral social como “superestrutura ideológica guardiã dos interesses dominantes na sociedade”392. Apesar da ação poderosa dessas representações na vida pessoal e coletiva, elas não podem esquivar-se da transmissão da imagem de uma sociedade como “confronto” entre o particular e o universal dificultando, assim, o consenso social.

Para Lima Vaz, entre as teorias modernas, somente o pensamento hegeliano superou essa divisão entre particular e universal, ou a separação entre razão prática e agir ético ao estabelecer em um único movimento dialético do Espírito objetivo, a consciência moral (Moralität) e a consciência social (Sittlichkeit). A consciência moral, integrante da moralidade humana é, para Hegel, apenas um momento da realização da ideia de liberdade no Direito que se realiza concretamente no ethos racionalmente explicitado.

Seguindo os passos hegelianos, Lima Vaz resgata o sentido da consciência moral social e reafirma a essencial sociabilidade presente nos níveis estruturais concêntricos em que efetiva-se o consenso social que são: o nível do encontro, o nível comunitário, o nível societário e o nível intracultural.

O nível do encontro é o mais elementar e por ele os indivíduos experimentam a abertura primordial ao reconhecimento do outro em sua dignidade de outro Eu. Os atos vivenciados pelos indivíduos nesse nível são os que têm um aspecto essencialmente ético, como a fidelidade, a responsabilidade social e a confiança mútua. Pelo exercício dessas atitudes os indivíduos descobrem a dimensão mais profunda da relação intersubjetiva, que é a reciprocidade mútua entre o Eu e o Outro, ou a socialização da consciência moral pela partilha da afetividade entre os indivíduos que convivem na mesma comunidade.

Como, para Lima Vaz, a consciência moral é uma síntese entre conhecimento- liberdade-afetividade, a condição para que a experiência recíproca se efetive é a escolha pessoal da fidelidade à sua consciência moral, que a orienta a cumprir a “regra de ouro” de fazer o bem e evitar o mal. Portanto, a comunhão das consciências evidencia como fim desse ato comunitário o Bem (agathón), norma fundamental para o encontro interpessoal, e para o diálogo que se estabelece entre

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EF V, p. 86.

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o Eu e o Outro na forma da fidelidade, da amizade e do amor. Essa é a experiência básica para a constituição da Comunidade ética.

No nível comunitário do encontro, Lima Vaz enfatiza a ampliação da relação Eu-Outro para acolher o Ele (ou ela). Na passagem do Eu para o Nós, a predominância é da ação racional que adere espontaneamente às normas do existir- em-comum e vivencia a justiça como equidade ou direito igual para todos. Nesse nível, a ação afetiva facilita a comunhão social entre os indivíduos, pela vivência do encontro comunitário:

Entre o nível do encontro pessoal e o nível do encontro societário, o encontro comunitário exerce uma essencial função mediadora, pois é normalmente por meio da experiência da participação comunitária e da forma de consciência moral social nela vivida que o indivíduo se prepara para elevar-se ao nível mais alto do encontro na sociedade393.

No nível do encontro societário existe uma diferença qualitativa em relação às experiências anteriores, porque a reciprocidade não é mais espontânea, mas formal, mediada por “instâncias reguladoras da existência em comum, sejam normativas como códigos ou leis, seja eficientes como os poderes reconhecidos e legitimados pelas instâncias normativas”394. Por conseguinte, nesse nível de compreensão social, o consenso passa a ser reflexivo, exigindo dos sujeitos o conhecimento e a aceitação das normas sociais e exprimindo-se na reciprocidade de direitos e deveres ou na forma da obrigação cívica.

Por essa experiência os sujeitos se preparam para a passagem da vida comunitária para a vida política, em que se submeterão às leis consensuais da Constituição da comunidade. A virtude que mais especifica o nível societário é a virtude da justiça, que estabelece a devida relação entre a Ética e a Política. Portanto, no nível societário, a reciprocidade entre os sujeitos é formalmente assegurada pela estrutura estável das instituições.

Daí, a importante função das instituições formalmente constituídas para assegurar o consenso social e garantir a estabilidade e a permanência da comunidade na história e, ao mesmo tempo, ampliar a reciprocidade para um número maior de indivíduos. As instituições de consenso pessoal como a família e as instituições de consenso comunitário de direito privado submetem-se às normas e leis das instituições sociais. A função imediata das instituições é mediar a relação

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EF V, p. 88.

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entre o indivíduo e a sociedade politicamente organizada e, como tal, elas agem como uma “conexão de sentido” que favorece a formação da cidadania e a consciência de pertença dos indivíduos ao Estado.

É, enfim, possível perceber o caráter eminentemente ético das instituições e a intrínseca interpenetração que Lima Vaz estabelece entre os três níveis de consenso presentes nas instituições sociais. Do intercâmbio entre Pessoa-Comunidade- Instituição, tem-se a instituição familiar, onde efetiva-se a educação sobre os valores fundamentais da solidariedade, da partilha, do encontro, pela práxis de relacionamentos democráticos e livres pelos quais o sujeito inicia seu processo de socialização.

Pela relação Comunidade-Pessoa-Instituição, tem-se a instituição da Sociedade Civil, onde o sujeito experimenta os valores sociais e aprende o sentido da sua dignidade, ao mesmo tempo em que conscientiza-se dos seus direitos e deveres e da necessidade da organização social e da luta por justiça e igualdade.

Pela interpenetração de Instituição-Pessoa-Comunidade tem-se a instituição do Estado onde o sujeito experimenta a sua realização social e engaja-se na luta pelo bem comum, no esforço pela busca de soluções para os problemas interpessoais que exigem a participação de todos. Nesse nível ele conscientiza-se que é a Política que organiza a sociedade.

A integração dinâmica entre essas experiências sociais constitui o espaço privilegiado para a efetivação da consciência moral social, forma ética da práxis intersubjetiva ou da relação Eu-Nós. Por outro lado, Lima Vaz enfatiza também a dramática realidade injusta e opressora em que a presença do Outro é negada na sociedade. Esse fenômeno social é cada vez mais crescente em uma sociedade individualista voltada para os interesses particulares, e justifica-se pela dificuldade comunicativa entre os indivíduos em prol do bem-comum.

A ausência do bem-comum abre espaços cada vez mais profundos para a exploração e espoliação dos mais fracos, para a sedimentação da corrupção política, para a desmoralização das instituições públicas e para o enfraquecimento das relações sociais. Esses fenômenos apontam para a necessidade da formação da consciência cívica, grau mais elevado do exercício da liberdade interpessoal.

O pensamento ético vaziano propõe, em consequência, a educação para a cidadania como um instrumento indispensável no intercâmbio das relações entre indivíduo e sociedade, nas diferentes instituições em que o indivíduo exercite a práxis intersubjetiva. A realidade não existe, com efeito, sem a práxis do ser humano. O real se expressa pelas relações que o sujeito estabelece consigo mesmo, com a natureza, com os outros e com o transcendente. O social não é produto de sujeitos isolados, mas a expressão do ser intersubjetivo no real, ou seja, a construção conjunta de sujeitos conscientes da sua cidadania.