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2 CAPÍTULO 1 LIMA VAZ E A FILOSOFIA DA PRÁXIS

3.3 Forma particular do reconhecimento

3.3.2 Ciências Sociais: história e sociologia

Das diversas formas sociais pelas quais os sujeitos expressam a sua reciprocidade na sociedade moderna, Lima Vaz destaca a História e a Sociologia como mediadoras para essa experiência. A História e a Sociologia são ciências que têm por objeto o estudo da sociedade e exercem, por conseguinte, a “função fundadora e reguladora com relação ao ser e ao agir em comum dos homens”248, e procuram dar epistemologicamente um status científico às “coisas humanas”.

Para alcançar esse nível de cientificidade, a História e a Sociologia espelharam-se durante um longo tempo no modelo epistemológico das ciências naturais, ou para imitar-lhes o método, ou para afirmar sua originalidade epistemológica. Daí, a dificuldade encontrada por essas ciências de esclarecer o seu procedimento epistemológico, oscilando entre os dois procedimentos epistemológicos da explicação ou da compreensão.

Ora, as teorias explicativas da realidade seguem o rigor científico procurando dar uma explicação dos fatos dentro das normas reconhecidas cientificamente. Essas teorias seguem, em consequência, um padrão abstrato e objetivo e fixam-se nas leis universalmente aceitas. Diferentemente, as teorias hermenêuticas defendem a relação entre o fenômeno e o seu sentido, pois o sujeito já desde sempre se experimenta no seio de um mundo de sentido, horizonte a partir do qual qualquer conteúdo singular é compreendido.

O conhecimento científico na relação de Intersubjetividade limita-se à explicação das práticas sociais e culturais e devido ao oscilar do objeto da História e da Sociologia entre os pólos da Natureza, do Sujeito e da História, essas ciências encontram dificuldade na formalização abstrata de seus conhecimentos, gestando um conjunto de questionamentos apontados por Lima Vaz:

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História e Sociedade são fatos da Natureza que devem ser explicados a partir de leis que regem a estrutura e o movimento dos processos naturais? Serão criações de um Sujeito universal, do qual os indivíduos são momentos transitórios, que se constitui e evolui através dos tempos como um todo orgânico tendo a regê-lo a enteléqueia de uma ideia unificadora, seja o Espírito objetivo de Hegel, a Humanidade de A. Comte ou a Sociedade final de Marx? Ou deverão ser explicadas pela pluralidade e diversidade das respostas com que os grupos humanos fazem face, constituindo a sua própria tradição cultural, ao desafio da sua subsistência e permanência no tempo?249

Estas interrogações acompanham o desenvolvimento das Ciências Humanas e apresentam a necessidade da constituição epistemológica sobre a natureza dos seus objetos e métodos, notadamente das Ciências Sociais – História e Sociologia – e, ao mesmo tempo, a dificuldade em constituí-los. A ausência de clareza no status científico desses conhecimentos dificulta os seus procedimentos epistemológicos. Por serem Ciências do Espírito elas não podem seguir mecanicamente o procedimento científico das Ciências Exatas, nem estabelecerem uma oposição rígida entre a explicação e a compreensão.

O filósofo Paul Veyne250, no estudo sobre a epistemologia do conhecimento histórico, aponta a dificuldade decorrente da relação entre o vivido e o formal nas Ciências Sociais. Para ele, a História como “descrição do vivido” e a Sociologia como “teoria social”, ao terem por objeto de estudo o vivido, isto é, as relações intersubjetivas, não podem seguir o padrão formal científico, porque o vivido não pode ser formalizável em lei.

Como o método científico tem um caráter essencialmente formalizado, circunscrito às leis puras, ele não pode levar em conta o vivido. Em consequência, “o abandono do vivido é o preço a ser pago pela ciência”251. A ciência formula leis formais segundo um modelo ideal e não é possível encontrar um modelo que reproduza a contingência humana situada na multiplicidade do tempo. É, assim, evidente a impossibilidade de formularem-se leis em História e em Sociologia, uma vez que estas ciências tematizam o concreto ou o existencial.

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AF II, p.62-63.

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“Na sua conhecida obra Comment on écrit l´histoire: essai d´épistemologie, Paris, Seuil, 1971, 313-343, Paul Veyne nega mesmo a existência de um objeto próprio da Sociologia, que seria absorvido pela História. Como por outro lado, para Veyne, a História igualmente não é uma ciência, mas uma narração a modo de um romance que tivesse acontecido de verdade, a compreensão explicativa da relação de intersubjetividade consistiria, nesse caso, na narração ordenada dos acontecimentos que resultaram da efetivação de certas práticas sociais pelos atores históricos. Fica o problema de distinguir, classificar e hierarquizar essas práticas, o que seria o trabalho teórico, nem sempre fácil, do historiador no papel do sociólogo.” ( AF II, nota 71, p. 86.)

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Dentro desses parâmetros epistemológicos, a conclusão de Paul Veyne é que nem a História e nem a Sociologia podem ser consideradas ciências, elas são apenas retóricas extraídas da descrição do vivido. A História, conceito primeiro da “idade historicista” é, portanto, questionada diante da oscilação em que ela se encontra: “Rejeitada do campo da episteme, e não se contentando com as incertezas da doxa”252, ela continua buscando o sentido para a sua existência.

Diante do aspecto particular da História como ciência distendida na dinâmica dos jogos e sem uma visão teleológica, Lima Vaz concorda com a reflexão hegeliana sobre a História Ocidental presente na Fenomenologia do Espírito, que relaciona o real ao racional e sugere a criação de novas formas de racionalidade.

Cabe inventar novas formas de racionalidade, novas dimensões de universalidade nascendo de uma nova articulação da inesgotável dialética - matriz de toda racionalidade - da identidade e da diferença. A alternativa a essa tarefa e a esse caminho não poderia ser senão a fuga para as regiões noturnas da ideologia e do mito253.

Após demonstrar a dificuldade das Ciências do Espírito, a História e a Sociologia de explicar o verdadeiro sentido das “coisas humanas” (ta anthópina) e os problemas lógicos e epistemológicos que encontram ao submeter a espiritualidade ao código epistemológico das ciências naturais, Lima Vaz reflete sobre a posição em que se encontra a compreensão explicativa da relação de Intersubjetividade por meio das Ciências Humanas estendida entre a explicação e a compreensão, “o que leva, inevitavelmente, as ciências humanas a constituir-se como ciências hermenêuticas e penetrar no campo da filosofia”254.

Este problema aponta também para a dificuldade de definição do estatuto científico das “ciências históricas” e das “ciências sociais” já que ambas ocupam-se com o mesmo horizonte temático: as estruturas sociais, os comportamentos, os acontecimentos que compõem a trama da relação intersubjetiva, diferenciando somente na sucessão temporal do passado e do presente.

A História atua como a Sociologia ao descrever as estruturas sociais, os eventos históricos e os comportamentos dos sujeitos no passado, e a Sociologia atua como a História ao descrever as estruturas sociais, os eventos e os comportamentos dos indivíduos no presente. Destarte, a práxis humana analisada

252 AF II, p.246. 253 Ibid., p. 248. 254 AF II, p.63.

historicamente ou sociologicamente é interpretada dentro de um contexto não formal, mas a partir das contingências existenciais.

O pensamento sobre a relação de Intersubjetividade avança, portanto, da “explicação” própria das ciências naturais para a “compreensão” própria das ciências hermenêuticas. Isto porque o encontro humano no medium da linguagem é sempre um encontro espiritual, em que “presenças espirituais” e não apenas “presenças físicas” estabelecem entre si relações intersubjetivas, bem como os atos espirituais do “reconhecimento” e do “amor” não podem ser analisados mecanicamente por meio do procedimento abstrato da ciência.

Ao priorizar a “compreensão” na relação de Intersubjetividade, Lima Vaz afirma o espaço transcendental do encontro humano, pois trata-se de um encontro entre dois sujeitos e não entre sujeito e coisa. Para ele, a História e a Sociologia como ciências hermenêuticas, de fato, expressam a experiência concreta do encontro entre o Eu e o Outro, desde os mais simples gestos de convivência social até os mais amplos gestos culturais por meio da linguagem mediadora do mútuo reconhecer-se.

No entanto, para além do conhecimento científico das ciências históricas que se limitam à análise das práticas sociais e culturais resultantes das relações intersubjetivas, para Lima Vaz a relação da Intersubjetividade expressa o caráter teleológico dessas relações que são em si mesmas espirituais. O reconhecimento, ato expressivo da Razão, e o consenso, ato expressivo da Liberdade, são atos espirituais e, como tais, não podem ser abstratamente explicados.

A complexidade da relação intersubjetiva ultrapassa, em conseqüência, os limites das ciências empíricas e hermenêuticas e aponta para um outro nível de compreensão que “provoca a transgressão dos limites da compreensão explicativa e a urgência da compreensão filosófica”255. É nesse transbordamento da relação intersubjetiva que o Filósofo brasileiro vai desenvolver a sua posição teórica sobre a forma singular do Reconhecimento.

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