• Nenhum resultado encontrado

2 CAPÍTULO 1 LIMA VAZ E A FILOSOFIA DA PRÁXIS

3.3 Forma particular do reconhecimento

3.3.1 Sociedade: mediação moderna dos indivíduos

O advento da sociedade como mediação dos indivíduos é uma invenção propriamente moderna e expressa a nova relação do homem com o tempo e as revoluções por ele protagonizadas, que inovaram determinantemente a cultura ocidental e criaram um novo universo simbólico para as relações humanas. A esse fenômeno Lima Vaz chama modernidade228.

O interesse de Lima Vaz por esse fenômeno tem uma conotação propriamente filosófica, ele limita-se a pensar o mundo intelectual, o mundo das ideias criadas,

227

“Etimologicamente o termo modernidade provém do advérbio latino modo que significa primeiramente ‘há pouco’ ou ‘recentemente’ (modo veni, ‘cheguei a pouco’)” (EF II, p. 225).

228

“Modernidade, na acepção com que aqui empregamos este termo, pretende designar especificamente o terreno da urdidura das ideias que vão de alguma maneira, anunciando, manifestando ou justificando a emergência de novos padrões e paradigmas da vida vivida”. (EF VII, p. 12).

analisadas e afirmadas que dão sustentabilidade à estrutura simbólica da sociedade. É, portanto, a partir desse núcleo ideal, que interage organicamente com as esferas “da organização social, das estruturas de poder, das condutas, das crenças”229, que Lima Vaz reflete a formação da sociedade moderna. Importa compreender a novidade na relação homem-tempo e as mudanças efetivas no tempo vivido, pela qualificação axiológica feita pelo homem ao presente e que inova completamente a axiologia anterior. Essas ideias são três: Objetividade, Intersubjetividade e Transcendência.

A ideia de Objetividade refere-se à relação do homem com o mundo, à nova forma de consciência tecnológica que caracteriza a atitude do homem moderno a partir da conotação cartesiana do Cogito como principium ontologicum. Ora, o advento da subjetividade como fundamento da objetividade faz do homem o sujeito da realidade, o doador do sentido do mundo construído a partir de seus projetos e experimentações. O Cogito torna-se, então, o novo sol reorganizador dos sistemas de razões que formam o novo horizonte simbólico da sociedade, cuja polaridade são os termos sujeito-objeto: o sujeito abre pelo seu espírito o horizonte para a pesquisa científica e esta, por sua vez, lhe confere o critério de validade.

A forma relacional do homem com a natureza é, portanto, essencialmente tecnológica e objetiva dominar e transformar a natureza em objetos, na medida em que o homem torna-se sujeito230do conhecimento. O mundo torna-se, então, manifestação do ser do homem.

Essa reviravolta antropocêntrica introduz na história do pensamento ocidental uma nova representação do tempo, a metafísica da subjetividade, cujo núcleo organizador é “o ordo cognoscendi das ciências tendo seu princípio e fundamento na certeza do cogito e nas regras do método”231. Esse é o novo modelo de Razão que se tornará dominante na cultura moderna.

A ideia de Intersubjetividade refere-se à relação intersubjetiva e reflete sobre a “aparição e a afirmação histórica do Indivíduo”.232 Lima Vaz define o indivíduo como

229

EF VII, p. 12.

230

“Para essa consciência, só é o que se deixa objetivar. O sentido da realidade manifesta-se aqui como objetividade, a capacidade de ser posto diante do homem, de ser usado pelo homem sua auto- realização; só é o que é dominável pelo homem em função de si mesmo”. (Cf. Manfredo OLIVEIRA,

Ética e racionalidade moderna, p. 122. 231

EF III, p.241.

232

ser social no sentido da nova experiência que o indivíduo moderno faz de sua própria autonomia no seio da sociedade. Ele é motivado pelo próprio tempo social a tornar-se o outro de si mesmo, pelo processo de socialização que necessariamente terá que viver para ocupar o seu espaço dentro da sociedade.

A sociedade torna-se, então, a mediação para os indivíduos envolvidos pelo “tempo socialmente mensurável”, no qual eles se empenham por uma melhor qualificação profissional, pelo trabalho e pelo lazer, como afirma Lima Vaz:

Na sociedade do trabalho a realização humana está em proporção direta com a criação humana em todos os setores, desde o trabalho manual ao intelectual, ou seja, em proporção com a ‘palavra’ que o homem pode e deve pronunciar aos outros homens233.

Logo, o social é o lugar em que o homem moderno se afirma como Indivíduo, ou em que ele efetiva a sua autonomia. A relação que se estabelece socialmente é a relação Indivíduo-Sociedade, relação expressiva da forma particular do reconhecimento do Outro na sociedade do trabalho e que é mediada pelo Contrato Social defendido pelas teorias contratualistas modernas. Para Lima Vaz, o fundador dessa nova teoria social-política foi Thomas Hobbes (1588-1679) quando introduziu na história da filosofia ocidental a metafísica do corpo, pautada segundo o modelo mecanicista da física. Ora, ao defender a hipótese do “estado de natureza” como primeiro princípio para a reflexão antropológica, ética e política, Hobbes rejeita, de fato, o pressuposto clássico da sociabilidade natural e estabelece o Indivíduo como anterior à Sociedade.

O Indivíduo vivendo em “estado de natureza” e sem poder defender os seus interesses, resolve estabelecer com os outros indivíduos um vínculo intersubjetivo, por meio do pacto (covenant) social para cessar “a luta de todos contra todos”:

A passagem da liberdade do estado de natureza para o domínio na sociedade civil assinala, pois, a gênese da esfera ético-política onde a aspiração fundamental à paz deve ser garantida e onde se torna possível a observância das leis naturais234.

Pela teoria do direito natural Hobbes garante ao Indivíduo a sua sobrevivência e pelo exercício da lei natural ele limita racionalmente o direito individual e possibilita a vida em sociedade. Ora, a lei natural não requer o consentimento dos indivíduos, mas é um ditame da razão reta que determina o que deve ser feito ou omitido para a preservação da vida.

233

H.C.de LIMA VAZ, Cultura moderna e suas manifestações ideológicas, p. 39.

234

Desse modo, o que torna possível o nascimento da sociedade civil e, nela, a efetivação do ideal ético de acordo com as leis naturais, é a faculdade da

razão inerente à natureza humana e da qual procede a iniciativa da saída

do ‘estado de natureza’235.

A reflexão antropológica hobbesiana dos conceitos de direito natural e lei natural inovam determinantemente a teoria política ocidental, pois o direito natural protege a vida do Indivíduo e a lei natural expressa o exercício da razão como capacidade limitadora do estado de natureza.

À primeira lei natural segue-se, pois, toda uma sucessão de leis que formam como que o arcabouço da existência ético-política do indivíduo, uma vez vingada a fronteira do estado de natureza e instituída a sociedade civil236. A teoria política de Hobbes absorve, portanto, a Ética na Política, uma vez que a dimensão do agir do indivíduo circunscreve-se na dimensão do social e, assim, abre uma nova perspectiva ética que será seguida pelos teóricos morais naturalistas, relativistas culturalistas e subjetivistas.

A ideia de transcendência refere-se às mudanças metafísicas pelo advento da Razão moderna, que confere ao homem a dignidade de sujeito. O homem como sujeito afirma a sua autotranscendência “na esfera da imanência: nas instituições do universo político, na construção do mundo técnico, na concepção autônoma do agir ético, na fundamentação teórica, enfim, da visão de mundo”237. É o Eu racional que se impõe historicamente e fundamenta as experiências vividas pelo sujeito como Eu transcendental, Indivíduo universal, Eu social. “Tal sequência torna-se a instância última instituidora e avaliadora dos sentidos objetivamente vividos”238.

A Razão moderna ao reivindicar para o Cogito a condição de fundamento, não só ontológico, mas gnosiológico, antropológico, ético e político, oculta na totalização do Eu penso a presença do Outro que só pode ser reconhecido em uma relação espiritual. Daí a impossibilidade de um verdadeiro reconhecimento do Outro como alter Ego nesse modelo social.

No seio desse novo modelo social, em que o Eu racional organiza o novo sistema simbólico e autodiferencia-se em múltiplas racionalidades abre-se o espaço epistemológico para as Ciências Humanas (human sciences). Elas objetivam estudar o homem em suas mais variadas dimensões que vão “das ciências da vida

235 EF IV, p. 303. 236 Ibid., 237 EF VII, p.16. 238 Ibid.

às ciências das culturas, passando pela geografia humana, pelas ciências econômicas e sociais e pelas ciências do psiquismo”239.

Esse fenômeno iniciou no século XVII e se ampliou diversificado durante o século XIX e metade do século XX de acordo com o avanço das teorias evolucionistas, positivistas e sociológicas. Lima Vaz analisa filosoficamente esse fenômeno fazendo uma rememoração da prática “científica” dessas ciências em torno das “coisas humanas”. Ele inicia sua reflexão definindo as Ciências Humanas como ciências da ação ou praxeologia:

Como ciências, elas são teóricas e seu tipo de explicação é nomológico- dedutivo, o que significa que não se referem às condições subjetivas da ação, ao vivido, mas aos seus elementos objetivos, na medida em que podem abstrair do vivido. Referem-se, em uma palavra, ao que na ação é formalizável240.

Lima Vaz ao analisar criticamente a praxeologia das Ciências Humanas, nos dois pólos epistemológicos em que elas se agrupam o pólo das ciências naturais do homem e o das ciências hermenêuticas, encontra problemas de gênese e de estrutura.

No pólo das ciências naturais é possível diagnosticar problemas de gênese porque, uma vez que as ciências naturais seguem a teoria da evolução, é difícil precisar “uma compreensão adequada da essência do homem seguindo-se a linha dessa sua derivação natural”241, e de estrutura porque retomam o problema antropológico alma-corpo e a interação entre ambos.

No pólo das ciências hermenêuticas o problema situa-se ao redor do objeto da Antropologia Filosófica, uma vez que cada ciência trabalha apenas um aspecto humano. Dada a diversidade das ciências são também diversos os problemas, por exemplo, os problemas da cultura, da sociedade e da história.

No problema da cultura, entendida como “espírito objetivo” conforme a leitura hegeliana, entrecruza-se duas linhas explicativas do homem e do seu mundo: “a que aponta para o mundo das formas com que o homem exprime a realidade e a si mesmo, e a que aponta para o próprio homem como sujeito da intencionalidade expressiva que está na origem daquelas formas”242.

239 AF I, p.131. 240 EF II, p.233. 241 AF I, p.14. 242 Ibid.

No problema da sociedade Lima Vaz enfatiza também os problemas de gênese e de estrutura do ser social do homem. A ciência social põe, de um lado, as questões sobre a origem da sociedade a partir ”das relações sociais elementares e do seu entrelaçamento com a atividade laboriosa elementar do homem, procurando- se reconstituir assim a gênese dialética do social nas relações do reconhecimento e do trabalho”.243De outro, ela investiga a estrutura social elementar que “conduz inevitavelmente à questão sobre a essência do homem como ser social e ser produtor, dando origem às formas reducionistas do sociologismo e do economicismo ilustradas pelos nomes de Durkheim e K. Marx”244.

O problema da história, por sua vez, diversifica-se em muitas questões como: a diferença entre tempo histórico e tempo físico, “distinção que incide profundamente na formulação do segundo problema, que se formula como problema do sentido da História (dialética do Espírito Objetivo, segundo Hegel) ou da origem e meta da História (K. Jaspers)”245, e também a distinção entre história como evento e história como narração, que implica a reflexão sobre a distinção entre existência histórica e a linguagem. Por fim, a questão da historicidade que se volta para “o clássico problema da natureza humana como invariante ao longo do curso histórico”246.

A rememoração dos aspectos problemáticos presentes nas Ciências Humanas desperta em Lima Vaz a percepção de que a questão filosófica subjacente às diferentes racionalidades que estudam as relações intersubjetivas na sociedade contemporânea está na ausência de um princípio teleológico que oriente o seu agir, ou seja, “na prerrogativa essencial do homem que é a dimensão conscientemente teleológica e axiológica do seu agir, à qual corresponde o paradoxo da livre necessidade da aceitação de um universo de normas reguladoras desse agir”.247Trata-se, portanto, de repensar filosoficamente, em face das Ciências Humanas, o problema do Direito como a realização concreta da liberdade.

Diante do quadro problemático das Ciências Humanas e sentindo a necessidade em esclarecer melhor a particularidade da Intersubjetividade por meio

243 AF I, p.15. 244 Ibid. 245 Ibid., p.16. 246 Ibid. 247 Ibid., p.17.

da compreensão científica, Lima Vaz reflete sobre as ciências que modernamente estudam as práticas sociais e culturais: a História e a Sociologia.