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2 CAPÍTULO 1 LIMA VAZ E A FILOSOFIA DA PRÁXIS

3.4 Forma singular do reconhecimento

3.4.1 O outro: problema atual do reconhecimento

Na sociedade moderna o Indivíduo tem uma prioridade lógica e axiológica sobre as razões do seu existir em comum e essa prioridade constitui um problema para o reconhecimento do Outro porque dificulta a reciprocidade da relação intersubjetiva uma vez que, centrado em seu solipsismo, o sujeito não experimenta a sua infinidade intencional pela qual afirma e acolhe o Outro no exato momento em que é aceito e acolhido. Sem “a constituição desse ir-e-vir ontológico”276 corre-se o risco da não saída do terreno da objetividade, ou seja, o mundo dos objetos e, por conseguinte, o perigo da coisificação do Outro.

O modelo social vigente fundamenta-se na teoria do pacto social que se fundamenta na lei e no direito natural, na Razão individual de cada membro social que é obrigado a aceitar o pacto em defesa da sua vida e dos seus interesses

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“O momento eidético (eidos=forma), no qual se levam em conta os elementos conceptuais que emergem da pergunta, seja a partir da aporética histórica, seja a partir da fenomenologia da situação humana (pré-compreensão), seja a partir das conclusões das ciências do homem (compreensão explicativa)” (AF I, p.168).

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“O momento tético (thesis=posição, no qual a pergunta é referida à mediação do sujeito (mediação

transcendental)” (Ibid., p.166). 274

Ibid., p.165.

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“Partindo da situação do sujeito empírico e passando pelo modelo do sujeito abstrato, a elaboração da categoria alcança, assim, o nível ontológico, que é o sujeito do discurso sobre o ser do homem (Dialética) que é propriamente o discurso da Antropologia Filosófica.” (Ibid., p.166).

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particulares. O problemático nesse modelo é, para Lima Vaz, exatamente a ausência de um fundamento que sustente o reconhecimento como relação ética e garanta a legitimidade objetiva e pública dos direitos universais. O Filósofo brasileiro procura, portanto, recuperar a prioridade da sociabilidade natural do homem, anterior ao conceito de Indivíduo presente no pensamento social e político contemporâneo.

Como o pensamento vaziano situa-se no âmbito da tradição filosófica, ele se volta para a tradição em um exercício rememorativo para atualizar no presente, a problemática do Outro. Seu objetivo é apreender a essência do problema em seu contexto temporal, por meio da sistematicidade coerente das ideias em busca da verdade e, ao mesmo tempo, apontar para as interrogações que permanecem abertas e fazem avançar o pensamento.

Ele reflete inicialmente sobre a filosofia social e política grega e constata que o problema do outro enquanto outro não era um tema trabalhado pelos filósofos antigos. Estes, voltados para a construção universal da ideia de comunidade humana, veem o outro apenas como “termo das relações específicas que definem as formas da comunidade humana e a sua hierarquia”277. Nesse sentido o outro é visto como o eu mesmo (alter ego) nas formas hierarquizadas de que o homem participa, por exemplo, família, cidade, confrarias religiosas ou filosóficas. A virtude da amizade (philia) é a que mais se destaca nessas relações intersubjetivas, cruzando o fio da natureza (physis), naturalmente manifestada nas expressões de afinidade e afetividade, e o fio da razão (logos) cuja expressão se dá “no ideal do bem e da virtude como fim da amizade”278.

A dificuldade em entrecruzar esses dois fios constituiu-se, para Lima Vaz, a aporética da relação de Intersubjetividade no pensamento clássico. A relação de igualdade para os gregos se dá, portanto, no âmbito da razão (logos), predicado de cada um. “Essa comunicação no logos, essência da amizade, encontra por sua vez suas formas mais elevadas de realização nos planos éticos e políticos”279.

A segunda corrente histórica que reflete sobre o Outro é a tradição bíblica e o pensamento cristão-medieval. Aqui o Outro se manifesta como “próximo” (o plesion). O pré-anúncio dessa manifestação encontra-se no Antigo Testamento, quando os

277 AF II, p. 67. 278 Ibid., p. 68. 279 Ibid.

profetas ensinavam a prática da justiça ou despertavam nos judeus a noção de responsabilidade pessoal. Mas é no Novo Testamento que a ideia do próximo alcança todo o seu vigor por meio da “revelação da ágape, do amor - dom de Deus (charitas, caridade)”280.

Nesse novo contexto temporal radicaliza-se a ideia grega de amizade como relação que só pode ser exercida entre iguais, todavia, essa igualdade não se situa mais entre “a pulsão do eros e o culto à philia”281, mas na relação intrínseca entre o Eu e o Outro mediada pelo amor divino.

O paradoxo dessa nova relação intersubjetiva é exatamente a presença do Outro como próximo. De um lado, ela apresenta o Outro como o eu mesmo, contudo, ao mesmo tempo, o vê na radical alteridade que separa o eu do próximo, devido a relação de criaturalidade de cada um singularmente.

Cada um procede da relação de criaturalidade de cada indivíduo singular para com Deus e, mais ainda, da assunção de cada um na esfera da gratuidade do dom divino, de tal sorte que, devendo ser amado segundo a regra da identidade do alter ego (os seautón), o próximo é aceito na diferença infinita do insondável designo da ágape divina que o envolve282. A relação intersubjetiva cristã expressa a novidade da gratuidade do amor e a sua prescrição como lei, e é essa novidade do amor como ágape e mandamento que se torna fundante dos “ideais de fraternidade e dom de si ao longo da história espiritual da civilização do Ocidente”283.

Para Lima Vaz é evidente, que a primeira grande experiência histórica de abertura para o Outro se deu com o Cristianismo, por meio da prática das primeiras comunidades cristãs, na vivência da doutrina do amor. Elas descobrem nesse relacionamento a revelação do Outro como o próximo, Como “o termo do amor de Deus, e seu amor torna-se a exigência primeira da mensagem da Boa Nova”284. O tema do Outro é, assim, introduzido na história da filosofia ocidental e é continuado pelos filósofos cristãos na Idade Média por meio da Antropologia Cristã.

Com o advento do racionalismo moderno cartesiano, o enfoque filosófico volta- se para a autonomia do Eu e para a absolutização de sua práxis e o Outro se perde

280 AF II, p. 68. 281 Ibid., p.69. 282 Ibid. 283 Ibid. 284 EF VI, p. 234.

na “pura causalidade da ideia”.285 A elevação do “Eu penso” como centro do sistema oculta a presença do Outro e tudo passa a ser justificado a partir do Eu. Em Kant, “o outro surge como objeto do imperativo categórico no âmbito da ‘razão prática’, é o homem como essência racional (Vernunftwesen), capaz de ser assumido na esfera da obrigação e na pura forma da lei moral”286. Com efeito, a metafísica da subjetividade sedimenta-se na autonomia do sujeito:

O postulado da autonomia do indivíduo como primeiro princípio da ordem das razões do ser-em-comum social, ou a absolutização da sua práxis, implica necessariamente, em filosofia social e política, um empirismo nominalista que suprimindo a categoria lógico-ontológica da natureza humana e da sua sociabilidade constitutiva abre caminho para a dramática anomia ética que reina nas sociedades modernas e, com ela, para a instauração do hobbesiano “estado de natureza” do bellum omnium contra

omnes que caracteriza para a nossa civilização, a impossibilidade de

constituir a Ética do seu projeto universalizante287.

Nesse contexto, o Outro oculta-se sob a luminosidade do Eu, fundamento teórico e prático da realidade. Essa primazia do Eu faz despontar, para Lima Vaz, a seguinte questão aporética: “como justificar, a partir do Eu, a pluralidade dos sujeitos?”288 Os filósofos modernos têm procurado de múltiplas formas encontrar uma resposta, porém, para o Filósofo brasileiro elas não desenvolvem uma resposta adequada porque permanecem à sombra da universalidade do Cogito cartesiano.

A filosofia hegeliana consegue, contudo, desocultar o Outro das sombras do Cogito. Hegel, ao historicizar a teoria pela definição do movimento dialético, afirma exatamente a comunidade como primum ontologicum do pensamento. Ele supera, por conseguinte, o solipsismo kantiano e afirma na Fenomenologia do Espírito que “a consciência não será consciência-de-si se não passar pelo momento do reconhecimento (Anerkennung) em face do outro”289.

No pensamento contemporâneo o problema do Outro é retomado sob várias vertentes: a Fenomenologia, a Lógica e a Linguagem. A efervescência de teorias em torno do tema da Intersubjetividade mostra a importância desse problema no tempo atual. Todavia, apesar do esforço teórico das três grandes correntes

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“A filosofia erige-se em sistema fechado, e o Eu ideal que pensa o sistema exige, como observa Gusdorf, a morte do outro (ou a sua escravização ao domínio da necessidade racional)". (AF II, p. 235). 286 Ibid. 287 EF III, p.149. 288 AF II, p. 69. 289 EF VI, p. 236.

contemporâneas em refletir sobre a problemática do Outro, Lima Vaz diagnostica a presença de uma aporia:

É aquela na qual converge toda a aporética histórica da relação de intersubjetividade: considerada dual ou plural entre os sujeitos qual o fundamento que permite a essa relação transcender de alguma maneira o seu acontecer natural e histórico para constituir-se como relação que revela no outro a presença de uma dimensão axiológica fundamental: a dignidade de um outro Eu?”290

A solução dessa aporia está justamente na afirmação filosófica de um fundamento que possibilite a relação entre os dois termos da relação: o Eu e o Outro. Lima Vaz pretende pela categoria da Intersubjetividade encontrar uma resposta a essa inquietante questão sobre o reconhecimento, pela afirmação filosófica da Comunidade como espaço transcendental para o encontro humano. É o que veremos a seguir.