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2 CAPÍTULO 1 LIMA VAZ E A FILOSOFIA DA PRÁXIS

2.5. Conclusão

O filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz, radicado na tradição filosófico-teológico-espiritual cristã, teve como ideia germinal e convergente do seu pensamento a relação entre o Cristianismo e a cultura moderna. Sua filosofia foi uma interpretação do tempo em forma de conceito, visando analisar as questões centrais gestadas pela autonomia absoluta da práxis moderna, especificamente, a crise ética hodierna que se constituiu um dos temas centrais da sua produção sistemática e crítica.

A reflexão vaziana sobre a crise ética hodierna estruturou-se sobre dois pressupostos metodológicos fundamentais: a “rememoração” dos invariantes conceptuais metafísicos, antropológicos e éticos da filosofia da práxis que continuam vigentes ao longo da história da filosofia ocidental e que ainda hoje despertam a reflexão, e o “pensamento” sobre a problemática cultural em que vivemos e suscita uma tomada de posição diante do pragmatismo e do niilismo ético modernos.

Na “rememoração” Lima Vaz dialogou com Aristóteles e Tomás de Aquino sobre a Ética das Virtudes, modelo ético fundacional do Ocidente, cujas categorias permanecem vivas no universo simbólico ocidental como formas orientadoras da práxis, e que são retomadas dialeticamente, por Lima Vaz, conforme o método

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EF III, p. 149.

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dialético platônico e hegeliano. O diálogo vaziano com Platão visou à retomada de seu methodos como Ontologia e, com Hegel, visou à retomada de sua Ontologia como methodos. Logo, como herdeiro dessa grande tradição metafísico-ética, Lima Vaz procurou resgatar a inteligibilidade radical sobre o ser e agir humanos, presentes na tradição filosófica como uma possível resposta à crise ética contemporânea.

O “pensamento” sobre a crise ética contemporânea exigiu de Lima Vaz uma constante reflexão sobre a mudança radical operada na modernidade do sentido da Razão filosófica que até então era definida pela sua abertura transcendental ao Ser182 e que passou a ser definida pela transcendentalidade do Sujeito na evidência do Cogito.

A mudança da Razão ontonômica clássica para a Razão autonômica moderna e a sua autodiferenciação em múltiplas racionalidades gerou uma série de problemas para Ética, principalmente pela dificuldade que as racionalidades éticas têm em explicitar a passagem do Eu ao Nós na existência ética dos sujeitos. Em consequência, torna-se problemática a constituição da Comunidade ética, a prática da virtude (areté) e o problema dos fins (telos).

Lima Vaz percebe, no entanto, na pretensão moderna em universalizar a autonomia do sujeito como fundamento para a normatização ética, ao mesmo tempo em que abandona a dimensão teleológica da práxis, uma sutil possibilidade em mostrar que, de fato, não há Ética sem Metafísica, uma vez que a universalidade só pode ser definida em termos de Razão em sua homologia com o Ser:

As racionalidades éticas contemporâneas parecem oferecer a prova ex

contrario de que não há Ética sem Metafísica, assim como não há

Metafísica nem Ética sem a intuição do Ser como inteligibilidade radical na sua identidade consigo mesmo ou, em termos lógicos, como reivindicação do princípio de não-contradição. Essa identidade é, para usar uma velha expressão filosófica, subsistência reflexiva do Ser em si mesmo ou a sua translucidez inteligível183.

Ora, segundo Lima Vaz, o sujeito expressa pelos atos espirituais da inteligência e da liberdade a manifestação do Ser pela autoposição do Eu sou, mas ele não é

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“pela sua identidade dialética com o Ser, e que na nossa razão finita, tem lugar no domínio do

intencional, vale dizer, como unidade na diferença da Razão com o ser e da razão consigo mesma. A

identidade com o ser e a reflexividade permitem, por sua vez, atribuir à razão uma unidade analógica segundo a qual as suas formas se diferenciam em virtude da referência a uma forma paradigmática na qual se manifesta na sua realização considerada a mais perfeita: a essência ou a ideia de razão.” (H. C. de LIMA VAZ, Ética e razão moderna, p.60.

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nem o seu princípio e nem a sua norma última de inteligibilidade. As racionalidades éticas equivocam-se, por conseguinte, ao eleger o pólo lógico da Razão em norma ontológica da práxis, e em “fundar no logos humano a universalidade objetiva do dever-ser e de submeter a essa universalidade a particularidade histórica do ethos”184.

Lima Vaz diferencia o conceito de Razão do conceito de racionalidade185 e insere-se na tradição da Razão universal em sua crítica à problemática ética contemporânea. A possível solução a essa crise será dada em seu sistema antropológico-ético, constituído a partir do constante diálogo com a tradição metafísico-ética. Lima Vaz resgatou, com efeito, em sua Metafísica o conceito tomásico do “ato de existir” (esse); na Antropologia refletiu sobre o “ato de existir” do sujeito como “movimento de auto-expressão” e, na Ética, resgatou o conceito platônico-aristotélico do Bem. Seu sistema antropológico-ético foi metodologicamente influenciado pela dialética hegeliana da qual apreendeu os aspectos formal e teleológico.

O seu sistema antropológico-ético, estruturado na relação entre Metafísica e Modernidade, resgatou por meio do movimento dialético ou conceptual, o Logos absoluto, enquanto visão da totalidade do real. Ele problematizou, portanto, o Logos moderno, circunscrito à subjetividade, pois é justamente “a imanentização do sentido e do fundamento de valor na razão finita e na liberdade situada”186 que conferiu ao homem o poder absoluto sobre a natureza, sobre a cultura e sobre a ética, e transformou a sua práxis no único critério de verdade aceito pela sociedade moderna. Ora, o predomínio da razão instrumental presente em todas as esferas da vida cultural e social gerou a crise espiritual vigente pelo obscurecimento dos fins da práxis humana e pela incerteza generalizada da aventura humana no mundo.

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H. C. de LIMA VAZ, Ética e razão moderna, p. 74.

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“A Razão é universal, a racionalidade é particular. Na sua generalidade a razão se refere seja aos sujeitos que são capazes de usá-la e que são, por definição, sujeito racionais, seja à realidade na medida em que pode ser por ela compreendida e explicada, e é a realidade racional.O conhecimento da Razão se caracteriza, por sua vez, como sendo um conhecimento que opera a partir de princípios e obedecendo a regras de demonstração. Racionalidade é um termo vulgarizado recentemente na filosofia e nas ciências sociais, provavelmente a partir dos ‘tipos de racionalidade’ de Max Weber. Ele denota estilos distintos no uso da Razão diferenciados segundo as peculiaridades do objeto e do

método aplicado à sua explicação racional. O termo racionalidade acaba designando, desta sorte, as

diversas figuras da Razão, que na nossa cultura, ocupam o espaço do conhecimento racional.” (Ibid, p. 63-64).

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A filosofia prática vaziana refletiu sobre esse paradoxo inerente ao projeto cultural moderno, universal em sua razão técnica, mas carente da universalização da dimensão ética resultando no desequilíbrio entre o poder de dominação técnica e os critérios morais capazes de dirigir esse progresso. Os graves problemas atuais, contudo, como o risco ecológico, a violência generalizada, o desperdício dos recursos naturais que não podem ser renovados, o drama do extermínio pela fome, requerem uma racionalidade além da racionalidade técnica e apontam para a racionalidade ética.

Destarte, é no seio da separação moderna entre a Cultura e a Ética que Lima Vaz situa o problema da Comunidade ética ou do ethos como horizonte normativo da práxis. Como é sabido, o modelo histórico da comunidade ética sempre apresentou uma estrutura ternária, cujos termos são: um princípio ordenador, um modelo de ordem e os elementos ordenados. Com a imanentização do princípio ordenador no indivíduo moderno, o equilíbrio dessa estrutura se desfez, resultando em uma estrutura binária, cujos termos são indivíduo - comunidade.

Como nessa nova estrutura o indivíduo opõe-se, porém, à comunidade, os grandes problemas que a filosofia ética contemporânea tem de enfrentar são o reconhecimento e a estrutura da Comunidade ética. Lima Vaz assumiu esse desafio ao refletir sobre a relação entre Intersubjetividade e Ethos nos Escritos de Filosofia e nas obras sistemáticas da Antropologia Filosófica e da Ética Filosófica. Ele está convicto de que a articulação dialética entre esses dois problemas poderá demonstrar o princípio fundador da Comunidade e a intrínseca relação entre ética e sociabilidade, uma vez que, pelo exercício do agir ético e da vida ética, por meio dos atos universais da razão prática, o reconhecimento e o consenso livre, a oposição entre os indivíduos será suprassumida na forma da Comunidade ética e o princípio ontológico do Bem (agathón) voltará a equilibrar as relações intersubjetivas.

3 CAPÍTULO 2 A EXPRESSÃO ONTOLÓGICA DA COMUNIDADE

A comunidade humana é, pois, já na sua gênese, constitutivamente ética, e esta eticidade se explica, na sua razão última, pela submissão, tanto dos

sujeitos como da relação intersubjetiva que entre

eles se estabelece, à primazia e à norma do ser. O

ser rege tanto o agir individual como o agir social.

(Henrique Cláudio de Lima Vaz, Antropologia

Filosófica II, p.77)

3.1 Introdução

O segundo capítulo trata de demonstrar a expressão ontológica da comunidade, isto é, a forma universal da relação intersubjetiva. O fio condutor do discurso vaziano sobre a ontologia do ser humano e a ontologia do seu agir é “a pessoa como movimento de auto-expressão”. Cada categoria afirma uma dimensão constitutiva e expressiva de seu ser. A categoria da Intersubjetividade apresenta, portanto, a experiência em que a pessoa reconhece-se a si mesma como “ser-com- os-outros” e compreende que é pessoa, na medida em que reconhece o outro como outro eu. Por ser uma experiência esta categoria não põe, portanto, o mundo da natureza e o mundo da vida “entre parênteses”, já que a pessoa não é um ser puro187, mas um ser situado que se interroga e torna-se objeto para o seu próprio conhecimento, nas três dimensões reais: mundo, sociedade e o próprio Eu.

Como ser de linguagem, a pessoa comunica-se com o mundo (relação de objetividade) e com a sociedade (relação de intersubjetividade). Como na relação com o mundo das coisas não há reciprocidade, é a relação com a sociedade que expressa a experiência fundamental da reciprocidade, por meio do encontro entre duas intencionalidades que se reconhecem como pessoas e tecem entre si, os fios interativos da comunidade humana.

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“O homem não é um ser puro-ou não tendo a intuição imediata e absoluta de si mesmo-a primeira realidade que circunscreve a sua situação é a realidade de seu próprio ser situado - a realidade que se apresenta a ele ou que ele experimenta como questão sobre si mesmo” (AF II, p. 10).

A expressão ontológica da comunidade esclarece, portanto, a forma como Lima Vaz refletiu sobre o conceito de reconhecimento (Anerkennung) ou o conhecimento do outro como outro Eu, e segue metodologicamente os mesmos passos apresentados pelo Filósofo na obra Antropologia Filosófica II, em que ele discorre sobre esta temática, de forma análoga à Filosofia do Espírito Objetivo de Hegel188. Seguir-se-á, por conseguinte, a estrutura interna do conceito em seus momentos de universalidade, particularidade e singularidade para demonstrar a teoria vaziana do reconhecimento.

Primeiramente, trata-se de expor a forma universal do reconhecimento, os atos pelos quais o Eu experimenta a relação com o Outro no medium da linguagem por meio das formas originais da palavra e do trabalho. Nessa experiência o Eu inicia o processo formador de seu autoconhecimento como ser-relação, inicialmente como consciência-de-si, formação da consciência individual, e, posteriormente, como ser- com-os-outros, formação da consciência social.

Em seguida, apresenta-se a forma particular do reconhecimento, os atos pelos quais o Eu experimenta a relação com o Objeto no medium da linguagem técnica instrumental, em que o Outro é ocultado pela luz do Cogito na sociedade moderna. Enfatiza-se também o advento das Ciências Sociais como novas racionalidades que objetivam explicitar as “coisas humanas”, particularmente, a História e a Sociologia que diretamente estudam o fenômeno social.

Finalmente, mostra-se a forma singular do reconhecimento, ou seja, a forma dialética como Lima Vaz pensou a relação de reciprocidade. Nessa exposição, Lima Vaz retoma a análise aristotélica e apresenta, primeiramente, o objeto constituído pelas experiências empíricas, científicas e históricas; em seguida elabora o conceito ou a expressão noética da Intersubjetividade e, finalmente, pelo discurso logicamente ordenado, afirma a Comunidade como o espaço transcendental para o encontro entre Eu e o Outro.

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“Uma analogia poderia ser evocada, desta vez com a dialética da Filosofia do Espírito Objetivo de Hegel, na qual os momentos do Direito abstrato e da Moralidade encontram sua efetivação concreta na Eticidade (Sittlichkeit). Por outro lado, convém recordar a observação do mesmo Hegel sobre a assimetria que vigora entre as determinações conceptuais enquanto momentos do desenvolvimento dialético e enquanto figuras do desenvolvimento do conceito no tempo. No nosso caso, se a figura do Eu antecede no discurso as relações de objetividade e intersubjetividade, de transcendência e de realização, ela só alcança sua plena inteligibilidade ao atingir a categoria da essência, quando a

aparência do Eu abstrato que dá início ao discurso terá sido suprassumida no Eu concreto que existe efetivamente no seu relacionar-se com o mundo, com o outro e com a Transcendência e que neste e