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4 CAPÍTULO 3 A EXPRESSÃO REFLEXIVA DA COMUNIDADE

5.2 Forma universal: sociedade política

5.2.2 Direito: norma do bem comum

Lima Vaz ao posicionar-se ao lado do sentido clássico da interligação entre Ética e Política, ou entre Ética e Direito na sociedade política, associa-se aos teóricos que defendem uma organização social que tenha a Lei (nómos) como parâmetro da “justa medida” para a vida intersubjetiva e assegure a convivência comunitária pelo exercício da igualdade (isonomia) e da equidade (eunomía).

A Política pode ser definida, nesse sentido, como a ciência normativa da práxis comunitária que deverá estabelecer as regras e os critérios racionais do consenso cívico em torno do mais justo e ordenar a vida na polis. Dito de outra forma, a Política é, para Lima Vaz, “a outra face da Ética”426 e deverá justificar a razão imanente ao consenso intersubjetivo por meio do Direito.

Ora, sendo o horizonte do político referente à ordenação do bem comum, a racionalidade do Direito circunscreve-se no campo da práxis da autorrealização do sujeito, que é capaz de dar razão ao seu existir comunitário como um cidadão (politês) e, consequentemente, capaz de explicitar a passagem do social empírico para o social político, no qual ele vivencia a sua “segunda natureza”, como um sujeito de direitos e deveres:

Ao ser reconhecido na sua existência política, ou seja, como membro da comunidade política, como cidadão (polítês), o homem se constitui, portanto, sujeito de direitos ou sujeito universal427.

425

“Direito é o que está conforme à regra ou à lei (droit, diritto, derecho, rigth, das Recht). Em grego

dikaion é o que está de acordo com a díke, e em latim justus o que é medido pelo jus. Essa

etimologia nos põe na pista da significação clássica do Direito”. (EF V., p.119).

426

EF II, p. 136.

427

Lima Vaz explica essa universalidade do sujeito ou a ideia do político a partir do motivo antropológico subjacente à dialética aristotélica do particular-universal- singular. Essa dialética “desdobra-se no campo da existência individual como circularidade dialética do ético e no campo da existência social como circularidade dialética do político”428.

O momento da particularidade dessa estrutura conceptual refere-se à peculiaridade do sujeito em ser um zôon logikón, capaz de transcender a naturalidade empírica pelo advento da linguagem e, assim, interagir socialmente por meio das diversas expressões comunicativas do “mundo simbólico” ou do mundo do ethos.

O sujeito, enquanto partícipe do “mundo simbólico”, que é essencialmente ético, e ao fazer uso da palavra, instrumento mediador das diversas relações intersubjetivas, se torna apto a perceber a diferença entre o bem e o mal ou entre o justo e o injusto, e assim elevar-se ao nível universal da comunicação, pois “à medida que se constitui como ser ético, o homem se torna apto para elevar-se à esfera do ser político”429.

Nesse processo interativo entre o sujeito e a sociedade vislumbram-se os dois pólos constitutivos da dialética do político: “de uma parte, o homem individual como portador do logos e, de outra, a universalidade objetiva do mesmo logos que se exprime, por sua vez, numa dialética formal de valores e numa lógica do dever-ser: o bem e o mal, o justo e o injusto etc”430. Se a particularidade individual é, contudo, negada pela universalidade da lei, ela é, ao mesmo tempo, afirmada em sua singularidade concreta, ou seja, em sua universalidade ética e, como tal, o sujeito torna-se capaz de participar da vida política (bíos polítikós).

A síntese da dialética particular-universal se expressa na conscientização do sujeito da razão que lhe convém como membro da sociedade política, isto é, como um sujeito de direitos e deveres. É evidente que nessa dialética a Ética e a Política estão interligadas, não há oposição entre o indivíduo (logos subjetivo) e o ethos (logos objetivo), mas a efetivação concreta do mesmo logos, pela participação livre do sujeito na sociedade política. A Política (politeia) constitui, portanto, a forma ideal

428 EF II, p. 141. 429 Ibid., p. 143. 430 Ibid.

para o bem comum, uma vez que por ela é exercida a enérgeia que possibilita uma existência razoável e justa na sociedade.

A integração entre o logos individual e o logos universal é um ideal que se apresenta ao sujeito na sua experiência intersubjetiva, pois como afirmou Aristóteles: “o homem político não é apenas um animal e muito menos um deus”431, mas um ser histórico, situado em meio à multiplicidade das circunstâncias e é continuamente desafiado a encontrar “na existência política a forma da vida racional - ou razoável - compatível com as vicissitudes da sua contingência”432.

Daí, a importância da função do elemento mediador, o Direito enquanto norma do bem comum, na dialética constitutiva do político, porque ele expressa a singularidade da razão na práxis do politês. Ao mesmo tempo, ele é resultante do processo educativo que conscientiza o indivíduo do seu direito de participar ativamente na vida da comunidade vivendo segundo o bem comum, ou segundo a Lei (nómos).

O resultante dessa dialética do político consiste na consciência de que a sociedade política é a forma mais alta de organização social, ela é o “espaço espiritual em que o ser social do homem pode desdobrar-se, finalmente em todas as suas dimensões”433. Como integração das liberdades que se associam sob um mesmo Direito, a sociedade política expressa o bem comum e “surge diretamente da livre aceitação de um projeto racional de existência em comum”434.

Esta teoria política fundamentada na teleologia do bem comum foi duramente criticada pelos teóricos políticos modernos, de tal forma que a ideia teleológica do político chega a seu término pela separação entre a Ética e o Direito nas teorias contratualistas modernas. Com efeito, estas teorias direcionam a ideia de Justiça para o Indivíduo e para a satisfação das suas necessidades materiais. Atento a esta mudança radical da Justiça, Lima Vaz aponta para a problemática do desaparecimento da relação constitutiva entre a Virtude e a Lei, nas teorias utilitaristas e convencionalistas modernas:

A face da justiça como virtude, ou seja, como perfeição imanente do sujeito manifestada em sua relação com o outro, e fundada na referência

431 EF II, p. 144. 432 Ibid., p. 145. 433

H.C. de LIMA VAZ, Moral, sociedade e nação, p. 101.

434

constitutiva da comunidade ao horizonte do Bem (primazia da comunidade

ética sobre os interesses dos indivíduos), praticamente desaparece435. Ora, a consequência imediata dessa separação entre os dois aspectos fundamentais da Justiça, a Virtude e a Lei, foi o positivismo jurídico e o legalismo, muitas vezes “paradoxalmente injusto”, presente nas teorias políticas modernas. Logo, as teorias que tratam da questão do utilitarismo na Justiça, por exemplo, a teoria de John Rawls, por permanecerem presas ao paradigma do Cogito cartesiano centralizado no Eu, não conseguem “instaurar um espaço conceptual onde possa vigorar a relação intrínseca e constitutiva entre a justiça como virtude e a justiça como lei”436, única relação que compõe a unidade da categoria universal da vida ética.

Lima Vaz posiciona-se, portanto, ao lado das teorias clássicas que refletem sobre a circularidade essencial entre o par conceptual da Virtude e da Lei e reafirma a necessidade dessa circularidade para a prática da Justiça. Nesse sentido, a Justiça constitui o princípio lógico-dialético que ordena a vida ética comunitária e dá início ao movimento dialético de sua constituição inteligível:

A vida na comunidade ética mostra a sua razão de ser no movimento dialético pelo qual ela passa da universalidade da justiça, como virtude e como lei, à singularidade da ação justa mediatizada pela particularidade das

situações em que a justiça deve ser exercida437.

O ato justo é retificado pela Justiça vivenciada como Virtude pelo politês e implica a igualdade proporcional do direito de cada um, como afirma Tomás de Aquino438. Por outro lado, o seu exercício na comunidade vem do predicado da Lei que ordena a vida ética dos sujeitos.

A prática individual e social da Justiça na vida comunitária está, contudo, continuamente ameaçada pelo seu contrário, a prática da injustiça. A injustiça é uma práxis devastadora da relação intersubjetiva porque nega incondicionalmente a equidade e a igualdade, que são as propriedades essenciais da vida justa. Logo, a oposição entre a práxis da justiça e a práxis da injustiça é extrema no espaço comunitário, de tal forma que não há possibilidade de existir comunidade onde impera a injustiça. 435 EF V, p. 182. 436 Ibid., p. 182. 437 Ibid., p. 183. 438

“Ora, a cada pessoa diz-se pertencer como seu, aquilo que lhe é devido por uma igualdade proporcional. Por isso, o ato de justiça consiste precisamente em dar a cada um o que é seu.” (Cf. TOMAS DE AQUINO, Suma Teológica, II a. IIae q. 58, a. 3,c).

A injustiça caracteriza justamente uma ação ou hábito que negam as propriedades essenciais da justiça: se a considerarmos como negação da

justiça predicado da lei, é iníqua como negação da equidade e é fonte de desordem como negação da igualdade; se a considerarmos como negação

da justiça como virtude, é viciosa439.

Lima Vaz interpreta a injustiça a partir da visão aristotélica que a considera como negação da justiça objetiva ou da lei comum, pela constituição de leis injustas que impossibilitam o exercício da lei e estabelecem a ilegalidade no meio da comunidade, e também a partir da visão subjetiva tomásica, que a considera como negação da virtude da justiça, pela prática do ato injusto, que concorre para a desintegração da comunidade ética e política.

A presença da injustiça no âmbito da Justiça, categoria universal da ideia de comunidade, aponta para o indivíduo que “deve viver essa dimensão da vida ética”440 na comunidade, em meio à multiplicidade condicional em que a injustiça pode efetivar-se. O movimento lógico-dialético da Ideia de comunidade direciona-se, então, para a situação particular em que os sujeitos continuamente são desafiados a praticar a justiça, pelo exercício livre do reconhecimento e do consenso, por meio da “forma mais alta de organização política”, a prática democrática.