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5. Organização das epígrafes para análise

3.1. A consoante b e a semivogal u

No século I, a consoante b, entre vogais, deixa de se articular como era costume e passa a ter o som de uma fricativa bilabial sonora: [] (Niedermann, 1997, p. 87). Na mesma época, a semivogal u, entre vogais, passa a pronunciar-se também como uma fricativa bilabial sonora, desfazendo o hiato entre as vogais. Esta alteração de pronúncia da consoante e da semivogal vai originar uma confusão entre as duas, documentada ao nível da grafia. A consoante b passa a ser escrita em palavras que era normal grafar com u e o contrário também acontece. A epigrafia documenta esta confusão já no século I (Niedermann, 1997, p. 88). Da mesma forma, a confusão também se dá quando b ou u estão em posição inicial e a palavra anterior termina em vogal. Outras vezes, a terminação da palavra anterior é irrelevante, registando-se a oscilação entre b e

u, em início de palavra, independentemente desse contexto. Para o primeiro

destes casos, Niedermann (1997, p. 88) apresenta exemplos epigráficos. Väänänen (1966, p. 50-51) e Carnoy (1906, p. 128-133) apresentam exemplos

epigráficos para diferentes contextos35. O Appendix Probi também documenta as confusões gráficas entre a consoante b e a semivogal u em diferentes contextos:

baculus non uaclus, uapulo non baplo, plebes non pleuis, tabes non tauis, tolerabilis non tolerauilis (Väänänen, 1981, p. 200-203).

Na evolução do latim para as línguas românicas, à excepção de algumas zonas, esta transformação da pronúncia da consoante e da semivogal vai mais longe ainda, tendo a fricativa bilabial sonora passado a []36, em ambos os casos. Deste modo, a grafia v passou a representar a semivogal latina u e a consoante b. Um dos exemplos é a evolução de iuuenem para jovem e de probare para provar, em português. Em posição inicial, houve a tendência para conservar a grafia b:

bibere evoluiu, em português, para beber e bonum para bom.

À semelhança dos contextos já citados, a consoante b e a semivogal u também sofreram alteração na pronúncia depois de l e de r, mas, neste contexto, a tendência foi para grafar as palavras com b. Algumas formas das línguas românicas documentam esta tendência excepcional de prevalência de b (Väänänen, 1981, p. 51; Niedermann, 1997, p. 110-111). O Appendix Probi já recomendava alueus non albeus (Väänänen, 1981, p. 201).

Nas inscrições do território português, vários são os exemplos que documentam a manutenção da grafia da consoante b e da semivogal u, entre vogais. Para documentar o primeiro contexto, temos exemplos como: AMABILI,

CONLIBERTO, DEBENT, HABERE, INCOMPARABILIS, INPVBERES, LIBENS.

Para documentar o segundo, temos: AVIA, AVVNCVLO, CIVITAS, CVRAVIT,

DIVVS, EVENTVM, IVVENTVTIS.

A grafia da consoante b em vez da semivogal u está atestada. Os exemplos existentes restringem-se a um nome de uma divindade e a um nome próprio. Em relação ao primeiro caso, temos ENOBOLICO (IRCP 519) por

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Os exemplos de Väänänen são das inscrições de Pompeios, ou seja, da segunda metade do século I. Carnoy apresenta exemplos do século III. Kent (1945, p. 61) situa só no século III a confusão entre a consoante b e a semivogal u. Este autor refere que ambas se foram transformando e só no século III se pronunciavam da mesma maneira, o que levou os gramáticos a sentirem necessidade de corrigir e de esclarecer os falantes.

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ENDOVELLICO numa inscrição sem data. Quanto ao segundo, temos três formas

do mesmo nome: LOBESA (IRCP 459), LOBESSA (FC 62) e LOBESSAE (FC 56). Os exemplos datam do século I, do século II e de finais do século II, respectivamente. Na epigrafia romana de Portugal, existem nomes próprios como

Louesius e Louesia. Os exemplos com b parecem ser, desta forma, variantes

destes nomes. Palomar (1957, p. 77-78) e Albertos (1966, p. 136-137) confirmam esta ligação. Um outro possível exemplo é a grafia, numa abreviatura, de b em contexto de u: B(otum) A(nimo) L(ibens) S(oluit) (IRCP 374). Pelo contexto, a grafia esperada seria u, como abreviatura de uotum. Não há indicação cronológica para a inscrição.

A grafia da semivogal u pela consoante b está atestada numa inscrição em muito mau estado. Nesta, surge a forma NOVI[LI]SSIMVS, com a reconstituição de uma sílaba interior, por NOBILISSIMVS. A inscrição data do período entre o ano 293 e o ano 305 (AF 422).

Em relação à tendência para grafar b em detrimento de u depois da consoante l ou da consoante r, não há exemplos a registar nas inscrições do território português.

3.2. A consoante c e a consoante g

Primitivamente, o som [k] chegou a ser grafado de três maneiras: com c, quando seguido de i ou e (ex.: citra, censor): com k, quando seguido de a ou consoante (ex.: kaput, sakros); e com q, quando seguido de o ou u (ex.: qomes,

qura) (Niedermann, 1997, p. 9).

Este sistema de representação gráfica simplificou-se e o som [k] passou a grafar-se, geralmente, com c, excepto quando era seguido de [u] e vogal. Nestes casos, a grafia usada era q: aqua. Além do som [k], a grafia c representava o som [g], ou seja, a mesma grafia representava as consoantes oclusivas palatais surda e sonora.

No século III a.C., esta situação alterou-se. Ao C acrescentou-se um traço e criou-se a grafia G. Desta forma, a consoante oclusiva palatal surda continuou com a grafia C e a consoante palatal sonora começou a grafar-se com G. Esta inovação é atribuída a Espúrio Carvílio Ruga cerca do ano 293 a.C., mas também há quem defenda que o seu autor foi Ápio Cláudio (Kent, 1945, p. 36-37; Faria, 1970, p. 58). Um vestígio que ficou da época em que os dois sons tinham uma grafia comum foi a manutenção das abreviaturas C. e Cn. para Gaius e Gnaeus.

Apesar de o som [k] e de o som [g] começarem a ter uma grafia própria, muitas pessoas ainda grafavam, de forma errada, o som [g] com c. A epigrafia documenta estas incorrecções e também uma confusão generalizada entre a grafia das duas consoantes (Carnoy, 1906, 153-154; Väänänen, 1966, p. 53). Depois da época de grafia comum, algumas pessoas fariam confusão e grafavam o c com g e o g com c. Além de situar este fenómeno na segunda metade do século I, a epigrafia de Pompeios mostra ainda a tendência para, nos empréstimos gregos, se usar g em vez de c. Biville (1987, p. 25) refere que este é um processo comum durante alguns séculos. O autor afirma que se trata de uma sonorização ocasional, delimita o seu contexto37 e apresenta exemplos desde Plauto até ao século IV. O Appendix Probi documenta a confusão entre as grafias

c e g, incluindo os casos dos empréstimos gregos: calatus non galatus, digitus non dicitus, plasta non blasta (Väänänen, 1981, p. 201-202).

Na evolução do latim para as línguas românicas, a consoante c, em posição intervocálica, tem tendência a sonorizar, à semelhança do que acontece com as outras consoantes oclusivas surdas38. O século V é apontado como a data da sonorização (Dottin, 1918, p. 47; Väänänen, 1981, p. 57). Um exemplo é a passagem de securum a seguro, em português.

Nas inscrições do território português, temos grafias semelhantes às antigas grafias que representavam o som [k], como a grafia k que, na zona norte, surge em KARISSIME (CIL 5559), numa inscrição sem data. Em outras duas

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A sonorização ocorreria quando o som [k] entrava em contacto com as vogais a, o ou u ou com as consoantes l, r, m ou n (Biville, 1987, p. 25).

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inscrições, temos a letra k como abreviatura de palavras em que se esperaria a grafia c: K(apita) (IRCP 142.2.), K(urauit) (CV 60). Só existe indicação cronológica para o primeiro: finais do século I ou inícios do século II. Importa salientar que, no caso do segundo exemplo, a grafia é inesperada, já que k só era usado antes da vogal a ou antes de consoante. A grafia k surge, ainda, na abreviatura K(alendas). Com a grafia q, temos exemplos fora do comum, já que q surge antes de i: QIS (AF 611), SALQIV (RIRP 13), TRANQILLI e TRANQILLO (EFRBI 14). A indicação cronológica mais antiga corresponde aos últimos: primeira metade do século I.

À excepção dos casos apresentados, a grafia do som [k] mantém-se dentro dos parâmetros normativos: c, para a maioria dos contextos; q, antes de [u] e vogal. Exemplos são: ARTIFICES, BARCARVM, CONCORDIAE, DELICIVM,

FACVNDVS; AQVAE, QVIRINA. Paralelamente, a grafia de g surge de forma

clara: COGITATA, DELIGANDA, FRIGIDVS, LEGEM, SINGVLA. É de salientar a grafia QVIVS em vez de CVIVS. Esta oscilação gráfica entre q e c no genitivo singular do pronome relativo está atestada na zona centro: IRTV 7 (v. Cap. III, 2.). O exemplo data da primeira metade do século I. Uma hipótese que poderá justificar a oscilação, neste caso particular, é a interpretação do i como uma vogal e não como uma semivogal.

Apesar de os sons [k] e [g] apresentarem grafias próprias, estão documentadas oscilações na sua representação. Uma das oscilações é visível nas abreviaturas. Além de surgirem as formas C. e CN., surgem G. e GN. como abreviaturas de Gaius e Gnaeus.

Em relação a G., a grafia surge como abreviatura de Gaius nos três casos: nominativo, genitivo a dativo. O mesmo acontece com C.. No entanto, os exemplos com C. são em maior número, em qualquer um dos três casos, ou seja,

C. é a grafia preferencial e G. surge num menor número de inscrições. A grafia G.

está atestada em todo o território português de um modo, em geral, uniforme, existindo exemplos em número semelhante para cada uma das zonas. A sul, os exemplos mais antigos datam de inícios do Império (IRCP 267) e de inícios do século I (IRCP 425 e 428). Na zona centro, os mais antigos datam de inícios do

século I (FE 222) e da primeira metade do mesmo século (RERC 13) e, a norte, do ano 80 (CIL 4803) e de inícios do século II (FE 196). Por vezes, surge mais do que uma forma na mesma inscrição: IRCP 664; RERC 13 e 21; CIL 4756, 4757 e 6228. Também acontece, na mesma inscrição, estarem documentadas as duas abreviaturas C. e G.: IRCP 151. Existe, ainda, um caso em que o nome surge grafado com g, sem abreviatura: GAIVS (CIL 4816). Há dúvidas na datação da inscrição. No entanto, é apontado o ano de 238.

Quanto a GN., os dois únicos exemplos surgem na mesma inscrição:

IRCP 580. A abreviatura é usada em dois contextos diferentes: no caso

nominativo e no caso genitivo. A inscrição data do século I. Tal como acontece com C. e G., há mais exemplos de CN. do que GN..

Outra situação de oscilação entre a grafia c e a grafia g está documentada nos nomes próprios, estando registadas formas duplas: PAGVSICV /

PAGVSIGAE, TANCINVS / TANGINVS, TONCETA / TONGETA, TONCIVS / TONGIVS, VALCIA / VALGIAE. Os exemplos estão atestados, sobretudo, na zona

centro. Em relação à oscilação entre -brig- e -bric-, na designação de localidades, não temos um exemplo directo. A oscilação é visível apenas comparando a designação da localidade com a designação dos habitantes: CONIMBRICA (FC 71), da segunda metade do século II, e CONIMBRICAE (FC 6 e 10), da primeira metade do século I e de finais do século I ou de inícios do século II, respectivamente; CONIMBRIGENSIS (EFRBI 111), do século I.

Um último caso que documenta a oscilação entre a grafia c e a grafia g é a forma GOGNATIO por COGNATIO. A forma encontra-se numa inscrição, não datada, da zona norte: AF 215.

Inversamente, temos exemplos de palavras grafadas com um c em contexto onde se esperaria um g: COCNATAE (IRCP 404), ICAEDITANORVM (Egit. 8), CONIVCI (NBA 2.6.). Só há indicação cronológica para o primeiro e para o último exemplo. O primeiro é de cerca do ano 50 e o último do período entre o ano 150 e o ano 250.

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