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5. Organização das epígrafes para análise

1.2. As preposições e os casos

A circunstância de tempo e de lugar é expressa, em latim, preferencialmente, através do caso acusativo ou do caso ablativo, regidos, algumas vezes, por preposições (Ernout e Thomas, 1984, p. 106-107). Com as alterações fonéticas registadas e com a confusão generalizada no uso dos casos, começaram a surgir formas diferentes do habitual para registar estas circunstâncias: as preposições que costumavam reger acusativo começaram a aparecer com ablativo; ou o contrário; quando uma preposição regia acusativo e ablativo e expressava circunstâncias diferentes com cada um dos casos, pode ser encontrada com o caso incorrecto65.

Esta situação é paralela à ruína do sistema casual e acabará por culminar na perda da noção do valor dos casos. As preposições passarão, nas línguas românicas, a definir a circunstância e o sentido circunstancial que o caso encerrava perder-se-á, assim como o próprio.

A confusão entre preposições e regência de casos está registada. Na epigrafia de Pompeios, Väänänen (1966, p. 120-121) documenta, com exemplos

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Um exemplo concreto é a preposição in. Com acusativo, expressa o movimento. Com ablativo, a localização. É comum encontrar a preposição com ablativo a expressar o movimento. Väänänen (1966, p. 121), apoiado noutros autores, refere que, nestes casos, a queda da consoante m em posição final, no acusativo singular, ajuda a criar a confusão entre os dois casos.

dos séculos I a.C. e I, situações como as preposições a, cum, pro e sine com acusativo ou a preposição in com ablativo a expressar a ideia de direcção. O autor refere que, salvo erro, os exemplos mais antigos que se conhecem serão os de a e de cum com acusativo. Carnoy (1906, p. 269-270) também apresenta alguns casos de desvio no uso das preposições na epigrafia da Península Ibérica.

Na epigrafia do território português, está documentado o uso de preposições com casos diferentes do habitual. Cum surge com acusativo, uma vez, na expressão do complemento circunstancial de companhia: CVM QVAM

VIXIT COMMVNES ANNOS (IRCP 259). A inscrição data do século III. Ex surge,

também uma vez com acusativo numa inscrição sem data: EX RESPONSVM (IRCP 513). Pro surge com acusativo em diferentes exemplos. Com a palavra

salus, surge duas vezes, a primeira com reconstituição da última letra da

preposição: PR[O] SALVTEM (IRCP 516); PRO SALVTEM (EO 81). Não há indicação cronológica para os exemplos. Com a palavra uotum, surge uma vez, num exemplo, sem data, que apresenta uma das vogais da palavra reposta: PRO

V<O>TVM (IRCP 523). Pro surge, ainda, duas vezes com nomes de pessoas: PRO IVL(iam) MARCELLAM (IRCP 504); PRO VERNACLAM (IRCP 515). Só o

segundo exemplo está datado: século I.

2. Concordância

A concordância está relacionada com a relação de dependência entre diferentes elementos de uma frase que constituam um grupo. Neste, a forma de um comanda a dos outros, estabelecendo-se, assim, uma relação de hierarquia e de dependência (Ernout e Thomas, 1984, p. 125). A concordância pode estabelecer-se ao nível do caso, do género, do número ou da pessoa. Ela pode ser estabelecida entre o sujeito e o verbo, entre um nome e o predicativo, entre um nome e o atributo, entre um nome e o aposto e entre o pronome relativo e o

seu antecedente. Existe, ainda, outro tipo de concordância: a concordância ad

sensum (id., p. 138-142). Esta implica uma concordância que respeita, sobretudo,

o sentido das palavras e não a sua forma.

A concordância, em latim, nem sempre foi respeitada. Este desrespeito é visível, sobretudo, nos textos epigráficos. Carnoy (1906, p. 268) e Väänänen (1966, p. 114) apresentam alguns exemplos de falta de concordância na epigrafia da Península Ibérica e de Pompeios, respectivamente.

Nas inscrições do território português, existem alguns exemplos de falta de concordância. Temos, de sul para norte: SERVOS [...] CAESVS (IRCP 143.13. e 143.17.), do período entre os anos 117 e 138, pela grafia -os em SERVOS;

SODALICIV [...] FECERVNT (IRCP 339), sem data, pela falta de concordância

entre sujeito, com omissão de -m, e verbo; QVINTILLA [...] DELICATAE (EFRBI 94), do século II; LIBERTVS SVOS (EFRBI 230), de finais do século II, também pela grafia -os; e FILIAE PIENTISSIMA (NBA 2.12.), de finais do século II ou inícios do século III. Em miliários da zona norte, cujo texto principal está em dativo, encontramos supostamente a concordar: PONTIFICE (CIL 4801),

PRONIIPOS (ERRB 129), FELICE (ERRB 130). O primeiro exemplo data do ano

214; os dois últimos de 213 ou 214. Noutro miliário, também da zona norte, surge o dativo supostamente a concordar com grande parte do texto que está em nominativo: PRINCIPI (CIL 4834). O exemplo data do ano 238.

A falta de concordância está documenta igualmente em abreviaturas: H(ic)

S(ita) S(unt) S(it) T(ibi) T(erra) L(euis) (IRCP 87). A expressão aplica-se apenas a

uma pessoa. A inscrição data da segunda metade do século II.

Registamos, por outro lado, duas tentativas, semelhantes, de concordância. As duas ocorrem no mesmo contexto: escrita de HIC a concordar com palavra neutra tratada como masculina (v. Cap. III, 1.1.1.). Temos: HIC

MVNIMENTVS (CIL 266) e HIC FATVS (CV 44b). Só existe indicação cronológica

3. Pronomes

Os pronomes, em latim, sofreram transformações a diferentes níveis. Em relação à sintaxe, destacamos uma transformação ocorrida nos possessivos.

A ideia de posse era expressa pelos pronomes possessivos. Acontece que na terceira pessoa do singular, o possessivo só é utilizado em situações particulares e bem definidas (Ernout e Thomas, 1984, p. 179-180). Na maior parte das situações, é o pronome is na sua forma de genitivo singular, eius, que expressa a posse66. Na evolução do latim para as línguas românicas esta situação altera-se. O uso do pronome possessivo, na terceira pessoa do singular, generaliza-se e cai em desuso a construção com eius. Acaba por ser a construção com o possessivo que passa para as línguas românicas (id., p. 186).

Há, ainda, outras alterações documentadas em epigrafia e relacionadas com a alteração de sentido de alguns pronomes. Väänänen regista exemplos, na segunda metade do século I, do uso fora do comum de alguns pronomes (1966, p. 122-123). Nestes exemplos, alguns pronomes são substituídos por outros que não correspondem com os outros elementos da frase, denunciando alterações de sentido, como é o caso de hic e ille que surgem a substituir is.

Nas inscrições do território português, o sistema de possessivos está claramente definido. Devido à natureza do texto epigráfico, funerário e votivo na sua maior parte, a posse, na terceira pessoa do singular, é expressa, sobretudo, através do pronome possessivo, já que nestas inscrições a ideia reflexa de posse é maioritária. Além disto, o pronome possessivo surge no formulário epigráfico, em expressões como DE SVO FACIENDVM CVRAVIT e SVA IMPENSA. O genitivo de is está documentado, mas com um menor número de ocorrências. Dos poucos exemplos, muitos encontram-se no texto de uma das Tábuas de Aljustrel:

IRCP 142.

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Em relação aos outros pronomes e a alterações documentadas, temos alguns exemplos. Na zona sul, encontramos dois exemplos do pronome relativo a denunciar mudanças. No primeiro, o relativo apresenta monotongação do ditongo ae, o que não torna o seu caso claro e causa problemas na identificação da forma e da sua relação com o antecedente: MODESTIN[A]E QVE [V]IX(it)

ANN(is) (IRCP 314). A inscrição data de finais do século II ou inícios do século III.

No segundo, o relativo apresenta uma forma aparentemente arcaica de nominativo, QVAI por QVAE, mas o nominativo está por dativo, CVI (v. Cap. II, 2.1. e Cap. III, 2.). A inscrição apresenta ainda uma forma anómala de nominativo plural de fatum, FATE por FATA (v. Cap. III, 1.1.1.). O texto data do século III:

MARIA EVPREPIA QVAI FATE CONCESSERVNT VIVERE ANIS XXXXV

(IRCP 430). Por este exemplo, mais claramente do que pelo primeiro, podemos perceber uma alteração no pronome relativo: a tentativa de uniformização da sua flexão, no sentido de uma forma representar mais do que um caso. É esta a ideia que a forma inusitada para dativo indicia.

Numa inscrição da zona centro, temos um exemplo relativo ao pronome

hic. Nessa inscrição encontramos hic, no genitivo plural, utilizado de forma

inesperada: LARES LVBANC(os) DOVILONICOR(um) HORVM ALBVI(us)

CAMAL(i) F(ilius) SACR(um) (FC 11). A inscrição data do início do século I.

4. Numerais

Os numerais dividiam-se em quatro categorias: cardinais, ordinais, distributivos e advérbios numerais (Ernout e Thomas, 1984, p. 175-178). Na evolução do latim para as línguas românicas, estes sofrem transformações, como a alteração do caso em que estes deviam surgir, nas expressões de datas ou de idade. Mariné (1952, p. 105-109) alerta para o facto de não se respeitarem as construções clássicas na expressão de uma data ou de uma idade na epigrafia.

Para a data, o autor refere que são usadas, sobretudo, as construções die e acusativo ou die precedido de uma preposição (in, de ou sub). Quanto à idade, o autor salienta, em vez da construção natus e acusativo, os genitivos de qualidade e diz serem raras as construções de uiuo com acusativo ou com ablativo.

Na epigrafia do território português, há um maior número de expressões que indicam a idade do que expressões de datas. Tal situação deve-se ao carácter da epigrafia, maioritariamente funerária.

Em relação a datas, temos dois tipos de ideias: a ideia de data, propriamente dita, e a ideia concreta de um determinado tempo. A maioria dos exemplos encontra-se nas Tábuas de Aljustrel: IRCP 142 e 143. Aí está documentada a manutenção das construções clássicas na expressão de ideias como: tempo em que, tempo desde que ou tempo até que. Como está documentada, sobretudo, a manutenção de construções, não há registo de exemplos de die e acusativo ou die precedido de uma preposição (in, de ou sub).

Quanto à idade, não estão documentados exemplos de natus e acusativo. A maioria das construções para expressar a idade corresponde ao genitivo de qualidade dependente do nome da pessoa. Esta construção está registada, uniformemente, nas zonas sul, centro e norte. Por vezes, surge abreviada, como é usual no registo epigráfico. Encontramos, também, embora em número muito mais reduzido, a construção de uiuo, através da forma VIXIT, pelo carácter dos textos funerários, com acusativo e com ablativo. A construção com ablativo surge mais vezes do que a com acusativo. Este tipo de construções está registado maioritariamente a sul. Temos dois exemplos de incorrecção nestas expressões, com uso de ablativo e de acusativo simultaneamente. O primeiro encontra-se numa inscrição muito danificada e data de finais do século II ou de inícios do século III (IRCP 83). O segundo apresenta anomalias na grafia do verbo (v. Cap. II, 3.6.1.) e data de finais do século III: VISSIT ANNIS XIII DIES XV (IRCP 346).

5. Verbos

Os verbos apresentam três categorias essenciais: a voz, o modo e o tempo. A voz precisa a posição do sujeito em relação à acção. O modo e o tempo representam as particularidades da acção (Ernout e Thomas, 1984, p. 215).

Quando se aplica a uma determinada acção que ocorreu num determinado tempo e de uma determinada forma, uma forma verbal deve fazer as correspondências correctas em relação ao modo e ao tempo, respeitando a concordância em pessoa e número com o sujeito. Acontece que nem sempre acontece desta forma. Em epigrafia, Väänänen apresenta exemplos de desvios, como o presente do conjuntivo em vez de futuro ou o presente do indicativo em vez de imperativo (1966, p. 123-124). Mariné (1952, p. 109-121) apresenta, também, desvios, sobretudo em relação ao número e à pessoa e sistematiza o uso dos tempos verbais em inscrições. Estes desvios estariam relacionados com particularidades de certas inscrições ou com uma certa confusão na selecção de tempo e modo. Tal como aconteceu com os casos, as ideias que determinado tempo ou modo verbal expressavam deixaram de ser claras e esta confusão deu origem a uso incorrecto das formas.

Nas inscrições do território português, o uso dos verbos não é muito diversificado, ou seja, devido ao carácter das inscrições, muitas vezes obedecendo a um formulário, os verbos utilizados são quase sempre os mesmos, nos mesmos contextos, e, muitas vezes, surgem abreviados. No entanto, há algumas excepções. Nestes casos, o que se regista é a manutenção do uso correcto das categorias verbais. Um dos exemplos mais significativos é o das Tábuas de Aljustrel: IRCP 142 e 143. Nestas duas inscrições, é possível encontrar verbos em diferentes contextos, o que na prática corresponde a diversidade de tempos e modos, como o futuro imperfeito do indicativo, o perfeito do conjuntivo, o imperativo futuro ou o infinitivo presente.

Apesar da correcção verificada, há uma particularidade que destacamos. Numa inscrição da região sul, feita num mosaico, existe uma fórmula de imperativo, com a ideia de ordem negativa: TESSELAM LEDERE NOLI (IRCP 602). Destacamos este exemplo por a fórmula de ordem negativa utilizada ser a mais cerimoniosa, o que não deixa de ser curioso tendo em conta que foi feita num mosaico. Não existe indicação cronológica para a inscrição.

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