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2. FUNÇÕES DA PENA

2.2 A Função da Pena de Prisão no Atual Modelo de Estado

2.2.2 A Constituição Federal brasileira de 1988

A Constituição Federal brasileira, promulgada em 05 de outubro de 1988, na esteira das modernas Constituições104, traz ao longo de seu texto diversas referências à fórmula Estado social e democrático de Direito.

Já no preâmbulo, enuncia que o Brasil se afigura como um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,

103 MIR PUIG, Santiago. Manual de Derecho Penal. Parte General. PPU: Barcelona, 1996. p. 73.

104 Constituição Alemã de 1949 (arts. 20 e 28); Constituição Espanhola de 1978 (art. 1); Constituição Portuguesa de 1976 (art. 2);

pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Em seu artigo 1º, refere-se ao Brasil como um Estado Democrático de Direito, cujos fundamentos são a soberania (inc. I), a cidadania (inc. II), a dignidade da pessoa humana (inc. III), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inc. IV) e o pluralismo político (inc. V).

Ademais, enumera - em rol não taxativo - os direitos e garantias individuais e coletivos, os direitos sociais e os direitos políticos (Título II – Dos direitos e garantias fundamentais).

Há, portanto, na Constituição Federal brasileira clara tentativa de conciliação das liberdades individuais, características de uma concepção liberal de Estado, com o aspecto social, predominante num Estado de bem-estar social.

Igualmente, há um claro equilíbrio entre constitucionalismo e democracia. Com efeito, na Carta Magna de 1988, determinadas decisões políticas fundamentais do constituinte originário são intangíveis (art. 60, §4º) e nela se estabeleceu um procedimento legislativo especial para a aprovação de emendas constitucionais (art. 60). Além disso, o texto faz expressa opção pelo princípio democrático e majoritário (art. 1º caput e parágrafo único), define como princípio fundamental o pluralismo político (art. 1º, V) e distribui competências pelos órgãos dos diferentes Poderes e estruturas constitucionais (Título IV, arts. 44 e s.)105.

Não obstante, ao analisarmos a fórmula Estado social e democrático de Direito no seio da Constituição brasileira, torna-se indispensável determinarmos qual a sua posição dentro da normativa constitucional, pois ainda que todos os preceitos contidos na Carta Magna sejam dotados de validade constitucional, nem todos são da mesma espécie ou possuem a mesma significação.

Em verdade, as normas que tratam da fórmula em comento afiguram-se como normas fundamentais do Estado, ou seja, como declarações de conteúdo sobre o caráter e finalidade do Estado estabelecido pela Constituição e, portanto, sobre seus princípios estruturais e

105 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 91.

funcionais. Nos dizeres de GARCÍA-PELAYO106, trata-se de normas constitutivas do tipo concreto de Estado desenvolvido pela Constituição. Neste sentido, pode-se afirmar que componentes da fórmula Estado social e democrático de Direito previamente analisados configuram preceitos fundamentadores que formam a essência ou substância da Constituição Federal brasileira e, portanto, devem servir de orientação à aplicação das demais normas constitucionais e à atuação de cada um dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judicial – art. 2º).

E não é diferente quando se trata do Direito Penal e da Execução Penal. Também o legislador penal, no processo de elaboração dos tipos penais; o juiz, no exercício da aplicação do Direito penal ao caso concreto, isto é, quando analisa se o agente de fato praticou uma conduta típica, antijurídica e culpável e se a ele se deve impor uma pena; e, ainda, os agentes administrativos, quando da execução da pena, devem observar que o Brasil se constitui em um Estado social e democrático de Direito, constitucionalmente organizado.

O que se pretende consignar é que a disciplina legal dos delitos e das penas, bem como sua aplicação, deve ter como norte os direitos e garantias individuais e deve estar acompanhadas de políticas públicas voltadas para o campo social (educação, saúde, redução das desigualdades sociais), porquanto a atuação de um verdadeiro Estado social e democrático de Direito deve sempre começar muito antes que o Direito Penal se veja obrigado a intervir, destacando-se, neste ponto, a importância da política criminal, uma disciplina que oferece aos poderes públicos as opções científicas concretas mais adequadas para o controle do crime. Além disso, não se pode perder de vista o postulado democrático, em seu sentido substancial já referido, no qual as decisões da maioria encontram seu limite e justificação na Constituição Federal.

Em verdade, a Constituição tem impacto imediato sobre a validade e interpretação das normas de Direito penal, bem como sobre a produção legislativa da matéria. Assim, o texto constitucional trata mais severamente algumas condutas, como o racismo (art. 5º, XLII), a tortura (art. 5º, XLIII), o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (art. 5º, XLIII), o terrorismo (art. 5º, XLIII), entre outros; igualmente, impede a criminalização de alguns comportamentos, como em artigo 53, no qual expressamente estabelece que Deputados e

106 As transformações do Estado Contemporâneo. Trad. e prefácio de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 78.

Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos; também lista algumas das penas possíveis de serem aplicadas (art. 5º, XLVI); veda expressamente a aplicação de outras (art. 5º, XLVII); além de tratar dos estabelecimentos penais (art. 5º, XLVIII) e dos direitos dos presos (art. 5º, XLIX, L, LXII, LXIII, LXIV e LXV).

Como se observa, portanto, o Direito penal, a exemplo dos demais ramos do direito, se sujeita aos princípios e regras da Constituição Federal brasileira e, considerando a fórmula Estado social e democrático de Direito, deve-se assinalar a centralidade dos direitos fundamentais e premissas como a reserva legal, o garantismo e o dever de proteção107.

Preliminarmente, no que tange à reserva legal, imperioso destacar que, no Brasil, a tipificação das condutas penais e a fixação de penas aplicáveis são matérias reservadas à lei, cabendo ao legislador a definição de crimes e sanções, de acordo com as demandas sociais e com as circunstâncias políticas e econômicas de cada época. Não obstante a matéria seja relegada a deliberação das maiorias parlamentares, em se tratando de um Estado social e democrático de Direito, o respeito aos direitos fundamentais impõe limites à atividade legislativa. A Constituição, nesse passo, funciona como fonte de legitimação e de limitação do legislador.

Ademais, nesse modelo de Estado, no qual cidadania108, direitos fundamentais109 e Estado Democrático de Direito se afiguram como realidades interligadas, a postura que deve ser adotada em relação ao acusado/processado/condenado não pode ser outra que não uma postura garantista110, destacando-se os princípios da legalidade, da irretroatividade da lei

107 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 380.

108 A cidadania é reconhecida como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, conforme artigo 1º, inciso II da Constituição Federal de 1988. A cidadania é, pois, a base de participação política no Estado de Direito, através do exercício dos direitos fundamentais (Cf. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Dimensões da Cidadania. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público. Novos Direitos e Proteção da Cidadania. ano 2, p. 19, janeiro/junho-2009).

109 Na Atual concepção de Estado Democrático de Direito, também visto como Estado Constitucional, os direitos fundamentais constituem o conceito que engloba tanto os direitos humanos universais quanto os direitos dos cidadãos nacionais (Cf. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit.).

110Luigi Ferrajoli, ao formular a Teoria do Garantismo Penal, explica que o “garantismo” não tem nada a ver com o mero legalismo, ou formalismo ou processualismo. Aquele consiste sim na satisfação dos direitos fundamentais: os quais – da vida à liberdade pessoal, da liberdade civil e política às expectativas sociais de subsistência, dos direitos individuais aos coletivos – representam os valores, os bens e os interesses, os bens e os interesses, materiais e pré-políticos, que fundam e justificam a existência daqueles artifícios – como os chamou Hobbes – que são o direito e o Estado, e cujo gozo por todos forma a base substancial da democracia (Cf. Direito

penal mais severa, da individualização da pena, do devido processo legal, do estado de inocência e do in dubio pro reo.

Com efeito, para serem válidas, a criminalização de condutas, a imposição de penas e o regime de sua execução devem ser realizados dentro dos ditames constitucionais, observando- se sempre os critérios da razoabilidade e proporcionalidade.

Por fim, em um Estado social e democrático de Direito, o Direito penal deve atuar como expressão do dever de proteção do Estado aos bens jurídicos constitucionalmente relevantes, aqueles tidos como mais caros para a sociedade, como a vida, a dignidade, a integridade das pessoas e a propriedade. Por outro lado, deve resguardar os direitos fundamentais dos acusados, tanto no plano material como no plano processual, ressaltando-se que, em sede de execução penal, a restrição do direito à liberdade do condenado não implica em violação à sua dignidade e demais direitos assegurados constitucionalmente e não afetados pela imposição da sanção.