• Nenhum resultado encontrado

2. FUNÇÕES DA PENA

2.1 Teorias sobre as Funções da Pena

2.1.1 Teorias absolutas ou retributivas

As teorias da retribuição não encontram o sentido da pena na persecução de algum fim socialmente útil, ao contrário, sustentam que, mediante a imposição de um mal,

39 SILVA SANCHEZ, José Maria. Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: J. M. Bosch, 1992. p. 179.

40 OLIVÉ, Juan Carlos Ferré; NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel; OLIVEIRA, William Terra de; BRITO, Alexis Couto de. Direito Penal Brasileiro: parte geral: princípios fundamentais e sistema. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 191.

merecidamente se retribui, equilibra e expia a culpabilidade do autor pelo delito cometido41. Pretendem, pois, compensar a culpabilidade do autor com a imposição de um mal, razão pela qual seus adeptos justificam a pena exclusivamente no delito cometido (punitur quia peccatum est). É, em última análise, aceitar que o bem merece o bem e o mal merece o mal, como na Lei do Talião, com seu “olho por olho, dente por dente”.

Os retribucionistas rechaçam toda a busca de fins fora da própria pena, já que esta se basta como fim em si mesma, como exigência derivada do valor “Justiça”. Aliás, seus adeptos entendem que buscar finalidades fora da pena implicaria em instrumentalizar o homem, na medida em que se perseguiria, através dele, fins sociais que lhe são alheios. Essas teorias, portanto, se voltam para o passado e, por isso, sua legitimidade é apriorística, não condicionada por fins extrapenais42.

Essa concepção, historicamente e ainda hoje, é defendida pela teologia cristã, que vê na pena a realização da justiça como mandado de Deus, a reprovação e condenação moral do ato cometido pelo delinquente. Além disso, encontra guarida na própria sociedade, porquanto é comum que os cidadãos, ante a ocorrência de um delito grave, vejam na pena, a retribuição do mal causado e o meio através do qual se realiza a Justiça.

No entanto, o que tem assegurado a essa concepção uma influência tão predominante, não foi fazer parte do discurso religioso ou mesmo do imaginário popular, mas sim a fundamentação teórica formulada pelo Idealismo Alemão, sobre a base do pensamento dos filósofos Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Hegel (1770-1831), os quais centram a função da pena na pura realização da Justiça.

Kant sustenta a tese de que a pena é uma retribuição ética justificada pelo valor moral da norma infringida pelo delinquente. A pena, portanto, se apresenta como um imperativo categórico, uma exigência incondicionada da Justiça e, portanto, livre de qualquer concepção utilitarista.

41 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. 1 t. 2ª ed. Madrid: Civitas, 2008. p. 81-82.

42 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 236.

Para ele, a pena não pode servir como meio para fomentar outro bem, seja para o delinquente, seja para a sociedade civil; ela deve ser imposta simplesmente porque alguém delinquiu. Se a pena será útil ou inútil para assegurar a paz social é algo irrelevante, já que deve ser imposta sempre que assim o exija a Justiça, ainda que não resulte necessária no caso concreto. Neste ponto, seu famoso exemplo da ilha:

Ainda que se dissolvesse a sociedade civil com o consentimento de todos os seus membros (por exemplo, decidisse desagregar e disseminar por todo o mundo o povo que vive em uma ilha), antes teriam que ser executados até o último assassino que se encontrasse preso, para que cada qual receba o que merece por seus atos e o homicídio não recaia sobre o povo que não exigiu este castigo: porque ele pode ser considerado como cúmplice dessa violação da justiça43.

Hegel, por sua vez, falava de uma retribuição jurídica e, portanto, justificava a pena na necessidade de reparar o Direito com uma violência contrária que restabelecesse a ordem violada44. Trata-se, em verdade, da aplicação de seu método dialético: em primeiro lugar se encontra o direito, ou melhor, o ordenamento jurídico (tese), o qual é negado pelo delito, que procura suprimi-lo (antítese), então, o direito reage impondo uma pena, que procura a restauração da ordem violada (síntese). Portanto, a pena supõe a negação da negação do direito e, em razão disso, seu restabelecimento: a confirmação de que este direito está vigente45.

Como se vê, para Hegel, assim como para Kant, a pena se concebe como uma reação voltada ao passado, não havendo que se cogitar em qualquer utilidade fora da própria pena. Ambos baseiam a existência da pena em uma exigência incondicionada de Justiça – seja moral (Kant), seja jurídica (Hegel) – que não depende das conveniências utilitárias de cada momento; ao contrário, se impõe de forma absoluta.

À concepção retribucionista, como a qualquer proposta doutrinal, se atribuiu uma série de méritos, dentre os quais se destacam a defesa do livre arbítrio como característica humana – algo sempre desejável e ainda mais se levarmos em conta o momento histórico em que se

43 OLIVÉ, Juan Carlos Ferré; NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel; OLIVEIRA, William Terra de; BRITO, Alexis Couto de. Direito Penal Brasileiro: parte geral: princípios fundamentais e sistema. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 193.

44 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 237.

45 OLIVÉ, Juan Carlos Ferré; NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel; OLIVEIRA, William Terra de; BRITO, Alexis Couto de. Op. cit. p. 194.

desenvolveu o Idealismo Alemão – e a preocupação com a Justiça – ainda que abstrata e ideal – o que proporcionou a ideia de que a pena deveria ser algo racional e, sobretudo, proporcional, ou seja, uma pena justa: diante dos abusos do poder do monarca, defender a retribuição significava defender o ser humano contra referidos abusos e impedir que o Estado usasse o Direito Penal para reafirmar as arbitrariedades e privilégios que caracterizaram o período, impondo-se uma pena mais rigorosa que aquela que correspondia ao fato efetivamente realizado, em outras palavras, à culpabilidade. O retribucionismo, portanto, permitiu o desenvolvimento da categoria da culpabilidade como componente da teoria do delito e como limitadora do ius puniendi46.

Não obstante os êxitos que apresentou, os defeitos do retribucionismo são muitos e impedem sua aceitação.

Dentre as objeções formuladas a essa concepção, deve-se destacar, preliminarmente, que o retribucionismo, concretamente, não consegue traçar um limite em relação ao conteúdo do poder punitivo estatal. Não obstante sustentem que a pena seja racional e proporcional, os retribucionistas não estabelecem como deve se dar essa proporcionalidade e, ainda, o que deve ou não ser punido, o que, na prática, significa dar um “cheque em branco” ao legislador e ao juiz, que poderão atuar conforme melhor lhes convém.

Ademais, as teorias retribucionistas não são científicas, na medida em que a pena como retribuição pressupõe um dado indemonstrável: o livre arbítrio, a liberdade de vontade do ser humano, pressuposta no juízo de culpabilidade. Ao fundamentar a pena no poder do individuo de comportar-se de outro modo (livre arbítrio), o que é indemonstrável conforme concorda a doutrina, referidas teorias, sem dúvida, apoiam-se em bases científicas igualmente indemonstráveis e altamente questionáveis.

Com efeito, a impossibilidade de se demonstrar essa liberdade pressuposta na culpabilidade determinou a mudança na função atribuída a própria culpabilidade, que deixou de ser o

46 SANZ MULAS, Nieves. Alternativas a la pena privativa de liberdad: Análisis crítico y perspectivas de futuro en las realidades española y centroamericana. Madrid: Colex, 2000. p. 42. No mesmo sentido: ROXIN, Claus.

Derecho Penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. 1 t. 2ª ed. Madrid: Civitas,

fundamento da pena que legitima o poder punitivo estatal e passou a assumir a função atual de limitação da pena, que garante o individuo contra o poder punitivo estatal47.

Por outro lado, não se deve olvidar que a ideia retributiva da pena, isto é de expiar ou compensar um mal (delito) com outro (mal), só pode ser compreendida como mero ato de fé48, como uma crença, que não é democrática, porquanto num Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome do povo e não em nome de Deus; e tampouco científica, já que o objetivo do Direito Penal, como se verá adiante é proteger bens jurídicos e não realizar vinganças.

Em razão de todas essas objeções, como explica FERRAJOLI49, as doutrinas retributivas são idôneas, unicamente, para justificar modelos autoritários de Direito penal máximo, o qual, assim como as concepções retribucionistas, confunde Direito e Moral, validade e Justiça, legitimação interna e externa. São formulações, portanto, que não tem cabimento em Estados de traços liberais como os atuais, os quais possuem legitimidade unicamente para intervir em benefício da sociedade.