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2. FUNÇÕES DA PENA

2.1 Teorias sobre as Funções da Pena

2.1.2 Teorias relativas ou utilitaristas

2.1.2.1 Teoria da prevenção geral negativa

Partindo da concepção utilitarista de pena, os teóricos da prevenção geral não veem a pena como uma retribuição, mas sim como um exemplo a ser dado a toda a comunidade que, ante a ameaça concreta de imposição de uma pena, se absteria de praticar novos delitos. Baseia-se, portanto, na intimidação, na ideia de que eventuais delinquentes abandonariam a tentação de delinquir ante a ameaça da pena.

53 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. 1 t. 2ª ed. Madrid: Civitas, 2008. p. 86.

54 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Trad. y notas de Francisco Muñoz Conde y Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 347-ss.

Com efeito, para os adeptos dessa concepção o debate central passa a ser ocupado por um diálogo entre a norma e seus destinatários, no qual se busca dissuadi-los de praticarem comportamentos antinormativos, convertendo-se os momentos essencialmente aflitivos, causados pela imposição da pena, em mera prova da seriedade da advertência formulada55.

Pois bem, uma das primeiras representações jurídico-científicas da prevenção geral negativa foi justamente aquela elaborada por Anselm Von Feuerbach, na qual a pena deve exercer uma coação psicológica sobre o delinquente, evitando a prática delitiva, o que se daria, de uma lado, com a cominação penal em abstrato (com a elaboração da norma penal se avisa aos membros da comunidade quais são os comportamentos intoleráveis e como se reagirá ante a sua ocorrência – ameaça da pena) e, de outro, com a aplicação da pena cominada, deixando clara a disposição em cumprir a ameaça infundida56.

Como se observa, a ideia de pena como intimidação apenas é possível se os tipos penais e as próprias penas estiverem previamente definidos, a fim de possam, então, dissuadir os indivíduos de cometerem ações delitivas. Daí porque se pode afirmar que a prevenção geral negativa é a única a assegurar um fundamento racional para o princípio da legalidade.

Com efeito, referida concepção possibilita a compreensão de três princípios garantistas distintos que, de diversos modos, delimitam o poder punitivo estatal. Neste sentido, asseverou Ferrajoli57 ao demonstrar as vantagens da prevenção geral negativa:

“Em primeiro lugar, mister se diga que o mesmo vale para a fundação dos princípios de estreita legalidade e materialidade dos delitos: se a única função do direito penal é aquela de prevenir delitos, o único modo de persegui-la racionalmente é indicando preventiva e exatamente os tipos penais em sede de ameaça legal, vez que podem ser prevenidas e dissuadidas somente as ações previstas e não também aquelas imprevistas, mesmo se danosas. Em segundo lugar, o mesmo está à base do princípio da materialidade dos delitos. Com efeito, é possível prevenir somente as ações

55 SILVA SÁNCHEZ, Jose-María. Aproximación al Derecho penal contemporâneo. Barcelona: J.M. Bosch, 1992. p. 54.

56 HASSEMER, Winfried Fundamentos del Derecho Penal. Trad. y notas de Francisco Muñoz Conde y Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 347.

57 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 259. No mesmo sentido, Günther Jakobs que, não obstante seja um dos maiores defensores da prevenção geral posivita, afirmou acerca da vertente negativa que “el modelo ofrece una armonía de lós princípios penales más importantes, se veda el tratar al autor como un objetode los ‘derechos reales’, se impiden lãs infraciones, se evitan las penas innecesarias y se vincula estrictamente la pena a la ley” (Derecho Penal.

Parte general. Fundamentos y teorias de La imputación. Trad. Cuello Contreras y Serrano González de Murillo.

consistentes em comportamentos exteriores e não os estados de ânimos interiores ou as situações subjetivas, como, v.g., a maldade, a periculosidade, a infidelidade, a imoralidade, a anormalidade psicofísica, ou similares. Em terceiro lugar, o mesmo estrutura o princípio de culpabilidade e de responsabilidade pessoal, vez que as ações passíveis de prevenção por meio da ameaça penal são somente aquelas culpáveis e voluntárias, e não também aquelas inculpáveis em razão de sua involuntariedade, de caso fortuito, de força maior ou, ainda, de ato de terceiros. Consequentemente, dele deriva o valor conferido à certeza do direito, à objetividade e a fatualidade dos pressupostos da pena, à verdade processual enquanto verdade empírica, bem como das garantias da defesa voltadas para impedir a punição dos inocentes em geral. Por derradeiro, a função preventiva geral, em razão do caráter abstrato da previsão legal quer dos delitos, quer das penas, enfocam o delito e não o delinquente individualmente, protegendo estes de tratamentos desiguais e personalizados com fins corretivos de emenda ou de terapia individual ou social ou para fins políticos de repressão exemplar.

Aliás, como as doutrinas da prevenção geral negativa não tem como escopo o delinquente individualmente, mas sim os associados em geral, dos quais, todavia, não valorizam aprioristicamente a obediência política às leis, as mesmas possuem o mérito de não confundirem programaticamente o direito com a moral ou com a natureza, ou, no mínimo, de permanecerem neutras neste campo58.

Por outro lado, a prevenção geral negativa recebeu uma série de importantes críticas.

Como para essa concepção a pena possui uma função intimidatória, não se pode negar que sua aplicação conduziria a um Direito penal máximo que não se coaduna com a um Estado Democrático de Direito. Ora, toda vez que um delito for cometido se terá a sensação de que a pena imposta abstratamente não foi capaz de intimidar o delinquente e a única solução possível será, então, aumentar referida pena. Haveria, pois, um aumento progressivo das penas que se converteria em um terror estatal. Como bem ressaltou Roxin59, a ideia de que penas mais altas e mais duras possuem um maior efeito intimidatório tem sido, historicamente, a razão mais frequente das penas “sem medida”.

Outrossim, não olvidemos que a ideia de pena como intimidação pressupõe, ainda, que o ser humano seja racional o suficiente para sempre ponderar as vantagens e desvantagens da realização do delito e da imposição da pena, o que é uma ficção. Aliás, é sabido que apenas

58 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 257.

59 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. 1 t. 2ª ed. Madrid: Civitas, 2008. p. 93.

parte dos indivíduos com tendência à criminalidade cometem o fato delitivo com tanto cálculo que lhes possa afetar a intimidação e, mesmo nestes indivíduos, frise-se, a intimidação se dá não pela ameaça da pena, mas sim pela dimensão do risco de serem presos60. A maioria dos delinquentes, entretanto, confia que não será descoberto.

Com efeito, a dificuldade de se comprovar qual o real efeito intimidatório da pena sobre a generalidade das pessoas deixa patente o problema da legitimação empírica dessa teoria, o que se agrava quando se observa que, além de não se poder afirmar qual real efeito possui a intimidação sobre o individuo, este, quando pratica o delito e é sancionado com a imposição de uma pena, sequer é considerado em sua individualidade, sendo, então, utilizado como meio para um fim que lhe é alheio, qual seja demonstrar à comunidade a disposição em se concretizar a ameaça da pena. Em verdade, a prevenção geral negativa não se subtrai à objeção kantiana de que nenhuma pessoa pode ser tratada como instrumento para cumprir um fim que não é seu. Essa instrumentalização é muito difícil de ser justificada em um Estado de Direito, porque o ser humano que vai para a prisão para servir de exemplo ao resto da comunidade nada mais é do que um bode expiatório, um ser degredado pelo Estado por conter os possíveis instintos criminais do resto da comunidade61.

Por todo exposto, resta concluir que a prevenção geral através da intimidação não é suficiente como critério de limitação das penas dentro de um modelo de direito penal mínimo e garantista que deve existir em um Estado Democrático de Direito, não obstante as vantagens que lhe possam ser atribuídas.