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A construção da(s) masculinidade(s) na Educação Física

No documento O Género na Educação Física (páginas 160-166)

3. A construção social do género na Educação Física

3.4. A construção da(s) masculinidade(s) na Educação Física

Embora os estudos iniciais sobre a construção do género na Educação Física tendessem a explorar, sobretudo, as experiências das raparigas, a saliência do conceito de equidade de género e o desenvolvimento de perspectivas que focam a sua atenção na diversidade e multiplicidade de identidades fizeram emergir o estudo da construção da(s) masculinidade(s). Esta corrente de investigação, geralmente enquadrada numa perspectiva pró-feminista (Francis & Skelton, 2001; Bramham, 2003), sofreu um grande impulso a partir dos anos 90 do século passado, vindo, de certa forma, complementar e ampliar a investigação feminista sobre a construção do género. A evidência por ela recolhida tem fornecido um contributo imprescindível para a compreensão do género como um conceito relacional (e.g. Thorne, 1993; Wright,1996; Francis, 2000; Skelton, 2001), ajudando a perceber os processos complementares pelos quais se constroem as feminilidades e as masculinidades.

As actividades físicas, em geral, e a Educação Física, em particular, histórica e tradicionalmente conotadas com o desenvolvimento de valores masculinos (Hargreaves, 1994; Wright, 1995), são entendidas como contextos importantes para o desenvolvimento e a construção das identidades masculinas negociadas através de estratégias pessoais e relacionais, no seio de um ambiente em que a masculinidade hegemónica se sobrepõe perante as outras formas de masculinidade (Parker, 1996). Este termo “masculinidade hegemónica” é caracterizado por Connell (1990: 94) da seguinte maneira:

To say that a particular form of masculinity is hegemonic means that it is culturally exalted and that its exaltation stabilizes a structure of dominance and oppression in the gender order as a whole.

Neste sentido, a utilização do termo aqui em referência implica não só a consideração de múltiplas masculinidades posicionadas hierarquicamente, como também a emergência de uma forma masculina que se superioriza em relação às outras. Este sistema social de dominação masculina, conceptualizado por Connell como “the gender order”, explora as dinâmicas de construção patriarcal à volta do poder hegemónico, sendo bastante útil no desenvolvimento de explicações acerca dos complexos processos psicossociais implicados na construção e negociação das identidades masculinas, mas também femininas23.

Actualmente, em muitas áreas escolares, mesmo naquelas tradicionalmente percepcionadas como mais apropriadas aos rapazes (como acontece com a matemática e as ciências), as raparigas superam os resultados académicos dos rapazes (Arnot et al., 1998) e os professores manifestam expectativas mais elevadas em relação ao desempenho das raparigas (Jones & Myhill, 2004a, 2004b). Contudo, as crenças quanto ao menor desempenho dos rapazes não acompanham as crenças quanto às suas capacidades (Jones & Myhill, 2004a). As explicações para o menor sucesso académico dos rapazes repousam sobretudo em factores socioculturais como a descontinuidade e o conflito que os rapazes experimentam entre a cultura convencional da masculinidade e a cultura escolar (Arnot et al., 1998; Reed, 1999; Francis, 2000; Renold, 2001; Francis & Skelton, 2001), na qual o estudo e o sucesso académico são percepcionados como feminilizadores (Renold, 2001). Complementarmente, o sucesso académico parece ser um factor mais importante para a popularidade social das raparigas do que dos rapazes (Adler, Kless & Adler, 1992).

Numa investigação com jovens entre os 14 e os 16 anos, em aulas de Matemática e de Inglês, que pretendia analisar a forma como as culturas simbólicas de género são construídas e assumidas na sala de aula, Becky Francis (2000) concluiu que a masculinidade é construída pela sua oposição à feminilidade, posicionando o masculino

23 Várias são, com efeito, as investigações que utilizam este modelo como suporte teórico para o estudo da

numa posição hierárquica superior. Os comportamentos desviantes na sala de aula, como por exemplo fazer barulho e dizer “gracinhas”, eram valorizados como atributos construtivos da masculinidade e monopolizavam a atenção dos professores e dos outros alunos. Estas atitudes, embora prejudicassem claramente a aprendizagem, revelavam-se importantes para o estatuto social dos jovens rapazes e para a sua aceitação no grupo de pares. As raparigas e mesmo alguns professores e professoras consideravam este género de rapazes particularmente atraente. Francis assinala que os estereótipos sociais referentes aos papéis masculinos se revelam bastante mais resistentes à mudança do que os referentes aos papéis femininos (que, ao longo dos tempos, foram acomodando mais facilmente atributos do domínio masculino), apontando duas razões possíveis para tal: a primeira é que uma alteração em direcção a características femininas significaria uma diminuição do poder, uma mudança no status social e relacional; a segunda tem a ver com o facto de a masculinidade ser construída através de uma demarcação em relação à feminilidade, levando a que os rapazes necessitem tanto mais de se esforçar para se construir a si próprios como masculinos quanto mais as raparigas assumirem o domínio em áreas consideradas masculinas. Esta problemática, não sendo exclusiva do âmbito escolar, mas reflectindo toda a sociedade, leva a investigadora a tecer, em jeito de questionamento, as seguintes considerações:

(…) This would bring us back to the question why it might appear so important to boys to maintain this difference, arguably answered by my former point that boys (and men) seek to preserve their dominance.

Further, laddish attitudes are still portrayed as desirable in the wider society(…) Yet this laddish attitudes have been shown to potentially impede achievement at secondary school. So do we want boys to change? (…) We need to encourage boys to understand the consequences of their behaviour and to expand their constructions and outlooks. (Francis, 2000: 129/131)

As conclusões de Emma Renold (2001), numa investigação com alunos rapazes mais novos (de 10 e 11 anos), são concordantes com as da investigação anterior, comprovando uma vez mais que as formas de masculinidade dominantes e hegemónicas influenciam e

intersectam as atitudes dos rapazes perante a escola, o trabalho escolar e a performance académica, logo desde muito cedo. Neste estudo, a forma dominante de masculinidade era produzida através do discurso e das práticas de luta (ser “duro”) e do futebol (ser ”desportista”). Para estes alunos (cerca de dois terços dos rapazes), ser “estudioso” significava estar quieto, trabalhar esforçadamente nas tarefas, ler e levar os testes a sério. As técnicas de humor (principalmente ridicularizando os outros e os resultados das raparigas) e os comportamentos perturbadores das aulas eram precisamente uma das formas de se desviarem dessa posição de “estudiosos”. Apesar disso, havia alguns rapazes “diferentes” (cerca de um terço) que construíam, nos seus discursos e práticas, formas de identidade alternativas e que investiam nelas, com o apoio e cooperação dos seu grupo de pares, procurando bons resultados académicos e tentando ignorar a censura e as piadas dos outros rapazes. Embora muitas vezes arranjassem estratégias de retaliação, no recreio procuravam, normalmente, afastar-se do espaço físico que aqueles ocupavam.

No contexto escolar, a Educação Física surge com posicionamento diferente, até mesmo antagónico, em relação a esta problemática. A aula de Educação Física é considerada por muitos (e.g. Wright, 1995,1996; Parker, 1997; Bramham, 2003) o local privilegiado para o desenvolvimento e a exteriorização plena desta masculinidade hegemónica. Contrariamente às outras matérias escolares, permanece um contexto onde se possuem grandes expectativas quanto à participação e nível de desempenho motor dos rapazes. Segundo Bramham (2003: 60), nas aulas de Educação Física there is both a literal and methaphorical presence of boys. Através da Educação Física e, particularmente, dos jogos desportivos colectivos, os rapazes devem ser e comportar-se como rapazes, devem mostrar-se competitivos, agressivos fisicamente, rudes, bravos, jogadores entusiastas, etc. A masculinidade hegemónica demonstrada através do poder e da competência é exercida sobre os outros, gerando estatuto, orgulho e identificação com o grupo de género. Desta maneira, e considerando o caso dos rapazes, quem não consegue corresponder a estas características está em condições de ser censurado e mesmo marginalizado.

De acordo com as próprias percepções dos alunos rapazes, Andrew Parker (1997) identificou, a este respeito, três categorias de rapazes: i) “Hard Boys” – aqueles que

integram os ideais masculinos tradicionais, mostrando frequentemente actos de agressividade e violência em direcção aos seus pares e não aderindo aos valores culturais da escola; ii) “Conformist’s” – a maioria dos alunos, que aceitam geralmente o ambiente escolar e participam nas aulas sem demonstrar violência ou agressividade excessiva em direcção aos outros. Mostram comportamentos variados e contraditórios, sendo imprevisíveis quando tomam parte nos confrontos verbais que ocorrem entre as outras duas categorias; iii) “Victims” – aqueles rapazes que são o alvo da violência e da agressividade dos “Hard Boys”, durante e fora das aulas.

Atendendo a esta categorização de Parker e aos padrões de comportamento descritos por Griffin (1985) durante as aulas de Educação Física, somos confrontados com uma grande diversidade de modos de ser rapaz, em que muitos rapazes não adoptam uma atitude e um comportamento concordantes com a masculinidade hegemónica, sendo pertinente estudar a significatividade que as vivências na Educação Física possuem para si e a forma como negoceiam e afirmam a sua identidade de género.

Foi nesse sentido que Peter Bramham (2003) decidiu analisar as percepções de rapazes de 15 anos acerca das suas experiências na Educação Física, concluindo que este espaço curricular se configura como um contexto de construção e afirmação da masculinidade hegemónica, em que os jogos e desportos valorizam sobretudo a competitividade, a fisicalidade e a dominância masculina, marginalizando e vitimando os rapazes que não correspondem aos ideais da masculinidade dominante. A construção das masculinidades neste contexto não parece, todavia, ser um processo directo e determinista, mas sim um processo activo de negociação, rejeição, aceitação e mesmo de ambivalência. Uma minoria de rapazes, com poucas afinidades com os desportos colectivos, e com competências motoras mais reduzidas, revelaram que as actividades de ar livre (como BTT ou canoagem), o mini-trampolim e jogos como o badminton ou o voleibol correspondiam melhor aos seus interesses na aula de Educação Física. As suas afirmações denotavam receio de expor e de confrontar as suas competências motoras na aula de Educação Física e de serem ridicularizados pelos seus colegas. Assim, principalmente nos jogos colectivos adoptavam estratégias comportamentais que lhes possibilitavam uma certa

“invisibilidade”, à semelhança do descrito por Cockburn e Clarke (2002), a respeito das experiências das raparigas. Porém, enquanto que na Educação Física eram inferiorizados, nas outras matérias escolares tinham oportunidade de mostrar dominância, principalmente através dos seus resultados académicos superiores (o que não era regra, pois acontecia haver rapazes rotulados de “idiotas” tanto pelos rapazes como pelas raparigas e que não obtinham sucesso em nenhuma destas áreas). Nesta investigação também foi notória a maior facilidade com que as raparigas transgrediam as “fronteiras” do género, escolhendo e participando em actividades consideradas mais apropriadas aos rapazes (como seja o caso do Rugby) o que ocasionava pouca ou nenhuma censura social por parte dos seus pares.

O recreio escolar, sendo um contexto caracterizado por uma grande liberdade ao nível da selecção das práticas e dos relacionamentos, no qual é bastante visível a segregação de género e as actividades genderizadas, também se tem revelado um terreno bastante útil para o estudo da construção do género (e.g. Thorne, 1993) e, especificamente, da construção das masculinidades (e.g. Renold, 1997). Emma Renold (1997), numa investigação etnográfica bastante interessante, explorou a forma como as crianças utilizam estes jogos e actividades de recreio na construção e negociação das suas identidades de género, analisando o relacionamento entre as masculinidades dominantes e as marginalizadas, assim como as consequências para as raparigas que conseguiam ter acesso a posicionamentos masculinos e para os rapazes que não conseguiam legitimar o acesso a essas posições. Das suas observações sobressaiu o jogo de futebol como o jogo que era posicionado no topo da hierarquia do recreio e onde a masculinidade hegemónica era encontrada, quer em termos de relacionamento quer de domínio do espaço. Em concordância com as conclusões de Bramham (2003), ser capaz de jogar futebol apresentava-se, desse modo, como a condição sine qua non para a afirmação de uma identidade masculina. O futebol surgiu assim como a prática colectiva onde o poder dos rapazes era legitimado pela exclusão activa das raparigas que aceitavam, com naturalidade, essa exclusão. Contudo, neste estudo, alguns dos rapazes mais competentes e que aparentavam uma grande auto-confiança permitiam, por vezes, a inclusão de raparigas no jogo. Esta inclusão era geralmente interpretada como uma questão de romance. O

posicionamento dos rapazes que apresentavam menores competências motoras e que preferiam não jogar futebol era frequentemente apelidado de feminino, pelos outros rapazes.

Se se quer, realmente, intervir de forma a que a Educação Física seja uma mais valia para as experiências escolares das crianças, tanto ao nível das competências motoras como a nível social e relacional, tem que se dar mais importância às questões de género e às suas sinergias com outros factores como sejam a classe social, a raça ou a aptidão física, procurando compreender como cada indivíduo interpreta e responde a essas mesmas experiências.

No documento O Género na Educação Física (páginas 160-166)