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Perspectivas diferenciadoras do desenvolvimento do género

No documento O Género na Educação Física (páginas 121-124)

5. Os estereótipos de género: recurso sociocultural fundamental na

6.5. Perspectivas diferenciadoras do desenvolvimento do género

As abordagens teóricas sobre o desenvolvimento do género que discutimos até ao momento não diferenciam os processos e mecanismos subjacentes ao desenvolvimento masculino e feminino. Em qualquer das teorias a diferenciação de género é explicada recorrendo aos mesmos princípios gerais derivados de outras áreas da psicologia, não se diferenciando os processos do desenvolvimento masculino e feminino, embora se reconheça e constate diferenças substanciais nos conteúdos resultantes desses processos. Baseados nas inconsistências entre os fundamentos teóricos e os resultados das investigações empíricas, alguns autores (e.g. Block, 1983; Archer, 1984; Archer & Lloyd, 1995) afirmam a necessidade de se conceber o desenvolvimento masculino e feminino como dois caminhos de desenvolvimento diferenciados.

Archer (1984), criticando quer a teoria da aprendizagem social, quer a teoria do desenvolvimento cognitivo, apresenta uma perspectiva inovadora sobre o desenvolvimento dos papéis de género que vai naquele sentido. A sua teoria estrutura-se em quatro dimensões relacionadas entre si e que são utilizadas para descrever os aspectos da aquisição dos papéis de género que diferem substancialmente entre rapazes e raparigas. A primeira dimensão relaciona-se com o grau de rigidez ou flexibilidade do papel de género, a segunda com o nível de simplicidade ou complexidade do conteúdo do papel de género, a terceira com o grau de consistência ou inconsistência em relação às exigências do papel de

género e a quarta dimensão com a continuidade ou descontinuidade do papel de género ao longo do desenvolvimento.

Fazendo referência a vários estudos que incidem sobre o tipo de actividades em que as crianças dos dois géneros se envolvem, sobre a percepção da apropriação ao género das actividades e sobre as reacções dos adultos ao comportamento apropriado e inapropriado das crianças, John Archer refere que existe maior rigidez em relação ao papel masculino e maior flexibilidade em relação ao papel feminino. Esta questão repercute-se ao nível dos processos de crítica e punição social, com maior severidade em direcção aos rapazes, sempre que estes revelam atitudes, comportamentos e preferências mais concordantes com o estereótipo feminino. Desde muito cedo que os rapazes aprendem o poder e o valor social da masculinidade, protegendo-o ao mesmo tempo que desvalorizam as actividades femininas, evitando-as.

Na perspectiva teórica de John Archer, o termo complexidade é usado em referência ao grau de elaboração ou estruturação do conteúdo do papel de género, referindo-se que o papel masculino, na sociedade ocidental contemporânea, aparenta ser mais complexo e possuir maior diversidade de características que o papel feminino. Esta conclusão vai de encontro ao estudo realizado em Portugal por Lígia Amâncio (1994) e que referenciámos anteriormente a propósito da análise dos conteúdos dos estereótipos de género.

A terceira dimensão de análise desta perspectiva, referente à consistência, alude ao facto de ser possível constatar maiores inconsistências internas no papel masculino, observáveis em certos traços psicossociais, como por exemplo a “dureza”, que reflecte duas mensagens sociais com conteúdos diferenciados: uma de aprovação, por ser concordante com o estereótipo masculino, e outra de desaprovação, pelas implicações ao nível do relacionamento social. Estas inconsistências possuem ainda uma dimensão temporal representada pela disparidade entre o papel masculino na infância e na idade adulta. Enquanto na infância o papel masculino é fortemente caracterizado pelas competências atléticas e físicas, na idade adulta, considerando a sociedade ocidental contemporânea, o papel masculino é principalmente representado através de competências intelectuais e relacionais, para além dos requisitos físicos. Citando Archer (1984: 250),

boys seem to know about the ‘real’ male role of the typical adult man, and the boyhood ‘fantasy’ male role which emphasizes physical activities. A quarta e última dimensão de análise centra-se num dos pontos críticos que mais diferenciavam a teoria da aprendizagem social da teoria do desenvolvimento cognitivo: a questão da continuidade e descontinuidade do desenvolvimento dos papéis de género. Segundo Archer, este desenvolvimento é de natureza diferente e ocorre em diferentes idades, em rapazes e raparigas. Enquanto as raparigas, durante a infância, podem apresentar maior flexibilidade que os rapazes em relação aos seus papéis de género, durante a adolescência produz-se um fenómeno inverso, ou seja, as raparigas tendem a manifestar atitudes e a concentrar-se mais em actividades concordantes com os seus papéis tradicionais, orientados essencialmente para a esfera privada e para a possibilidade de constituição de uma família, enquanto aos rapazes é permitido uma maior variabilidade de interesses, orientados principalmente para a esfera pública. Com efeito, esta descontinuidade no desenvolvimento dos papéis femininos, que ocorre na adolescência, possui uma influência marcante no nível da participação das raparigas em actividades físicas e desportivas, como os estudos citados atrás, a propósito dos padrões de comportamento feminino, evidenciam (e.g. Matos et al., 2000; Telama, 1998; Davisse, 1998; MacHale et al., 2004)

Esta perspectiva de caminhos diferenciados para o desenvolvimento masculino e feminino é também defendida por Carol Gilligan (1982/1997) a respeito do desenvolvimento moral, sustentando este seu posicionamento através de uma série de investigações qualitativas que realizou com mulheres e homens. Nas suas conclusões é evidenciada a existência de dois modos diferentes de ver e interpretar a realidade e as experiências. Enquanto os homens desenvolvem um sentido moral baseado nos direitos e na independência, desligados do foro das relações interpessoais, as mulheres desenvolvem a sua moralidade assente, precisamente, em princípios de natureza relacional como a ajuda e a responsabilidade em cuidar dos outros. A seguinte citação espelha estas conclusões:

As mulheres não só chegam a meio da vida com uma história psicológica diferente da dos homens e encaram nesse período uma realidade social diferente com diferentes possibilidades para o amor e para o trabalho, como também tiram um sentido diferente da experiência, baseadas no seu conhecimento das relações humanas. (...) Daí resulta que o desenvolvimento das mulheres desenha o caminho não só para uma vida menos violenta como também para uma maturidade realizada através da interdependência e dos cuidados com os outros. (Gilligan,

1982/1997: 267)

Um entendimento integrado desta dicotomia no desenvolvimento masculino e feminino, entre o que a autora chama de ética da justiça e ética da preocupação com os outros, respectivamente, proporciona uma melhor compreensão das relações entre homens e mulheres, quer na família, quer no domínio público. Esta perspectiva constituiu um referencial importante para o pensamento feminista, com repercussões no contexto educativo, através, nomeadamente, do surgimento de paradigmas educativos alicerçados numa ética do cuidado (Diller, 1996; Owens & Ennis, 2005)).

No documento O Género na Educação Física (páginas 121-124)