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A CONSTRUÇÃO DAS LIDERANÇAS: UMA LONGA APRENDIZAGEM

Mas, afinal, quem são as lideranças das comunidades quilombolas? Como se constroem essas lideranças? Quais os critérios de escolha dessas lideranças nas comunidades? Nas comunidades da região litoral do estado do RS, situadas entre Mostardas e Tavares, os presidentes das Associações dos Teixeira, Casca, Limoeiro e Tavares são homens, sendo três idosos. Nas Comunidades urbanas de Chácara das Rosas, Família Silva, Alpes e Família Fidelix, os presidentes das associações dois homens e duas mulheres; uma delas é idosa.

A dinâmica das reuniões, na região litorânea, das quais participei como observadora fornece algumas pistas para compreender esse processo.

No litoral norte, mensalmente as comunidades se reúnem na sede das associações por meio de um sistema de rodízio que contempla uma reunião em cada localidade. A organização dos encontros fica a cargo dos membros da comunidade que oferecem as refeições e o espaço físico para a realização da atividade.

Nas duas reuniões em que tive a oportunidade de participar, as mulheres adultas e idosas ficaram com a responsabilidade do preparo das refeições: em geral, é servido café, no meio da manhã, um farto almoço e um café da tarde reforçado. Nesses momentos, as mulheres têm uma presença mais ativa; em geral, elas ficam no espaço reservado ao preparo das refeições, enquanto as discussões ocorrem nos salões destinados às reuniões. Durante as discussões propriamente ditas, as mulheres, apesar de presentes, tinham uma participação tímida.

Num primeiro momento, essa leitura poderia nos conduzir à afirmação de que as mulheres das associações de comunidades de quilombos do litoral norte estão restritas ao âmbito privado. Contudo, durante as conversas informais com elas, observei que têm domínio sobre as questões tratadas e que há um envolvimento de todos nas discussões sobre as questões relativas à definição dos projetos, nos encaminhamentos de documentos, dentre outros. Elas também se dirigem aos profissionais da EMATER, da Universidade e tratam sobre as questões relativas aos projetos que estão ocorrendo nas comunidades. Chamou a atenção, ainda, a figura da secretária da associação de uma das comunidades.

A secretária da associação de uma das comunidades, a quem chamaremos de Jane, é uma mulher jovem; tem aproximadamente 25 anos; é magra, alta, negra e é casada com o filho do presidente da associação. Ela é responsável pela redação das atas nas reuniões; contudo, faz intervenções muito pontuais nas reuniões. Como secretária faz os contatos telefônicos para a organização dos eventos e é responsável pelos trâmites burocráticos. Acompanha o presidente da associação durante as viagens fora da comunidade; já esteve em Porto Alegre, em Brasília e no interior do estado. É representante da comunidade no Conselho Municipal de Saúde, milita na Pastoral, desenvolvendo atividades com outras comunidades de quilombos da região e organiza, junto com o pessoal da EMATER, as feiras para a venda do artesanato.

Apesar da sua militância e de sua disponibilidade para participar dos espaços políticos, ela ainda não apresenta a retórica dos discursos políticos, ao contrário do presidente da Associação, cuja função exige que fale em nome da comunidade.

Embora a mulher seja casada e tenha um filho de três anos, sua sogra tem cuidado do menino para que ela cumpra com suas obrigações. Ela também não trabalha na comunidade; está liberada dos afazeres domésticos. Esses indícios mostram que há um investimento na construção de uma liderança. Um processo longo, sob a supervisão e aval do seu sogro, o presidente da associação. Ele é um homem rude, respeitado na comunidade pelos parentes, pelos integrantes das demais comunidades e pelas autoridades da região.

As lideranças idosas da região são tratadas com reverência e respeito. Ainda que tenham dificuldades para o exercício do ofício de presidente, essas dificuldades não as impedem de ter essa responsabilidade. O presidente da associação de uma das comunidades, presentes no encontro, um senhor negro, com uns setenta e poucos anos, estava com dificuldades para ouvir os demais e para compreender com rapidez as várias questões que estavam sendo encaminhadas. Os presentes, cientes das suas dificuldades, repetiram várias vezes para que ele ouvisse os encaminhamentos, cuidando para que não percebesse que sua surdez exigia tais medidas. Havia uma reverência e um respeito explícito ao presidente da associação, ao menos, no espaço público da reunião.

Ao término do encontro, porém, durante o café da tarde, ao conversar com uma das mulheres sobre os pães e os doces preparados para a ocasião, uma delas comentou, em tom jocoso, as dificuldades do Seu João em ouvir. Questionou o fato de ele vir sozinho à reunião, pois tem dificuldades para entender o que está sendo dito e para dar continuidade aos assuntos tratados. Segundo ela, o fato é um problema. De acordo com suas palavras:

Amanhã, depois, ele morre e ninguém vai estar a par do que foi feito ou acertado com as autoridades. Isso é um problema; os velhos não largam. Eles não confiam. Essas coisas de documento, eles ficam com tudo, tudo com eles. Depois tu vês... Se alguém quer fazer, tem que ser do jeito deles. Mas o problema é que eles não confiam nos jovens. Se tu olhas aqui na reunião, só tem gente velha, de mais idade; tu tá vendo gente nova por aqui? Quem vai dar continuidade a isso tudo? (Diário de

Campo, abril de 2011).

As acusações se dirigem ao fato de os idosos terem o domínio de informações e de conhecimentos que não são socializados. O risco de eles virem a falecer e de as informações se perderem também é cogitado. Afinal, a velhice está muito próxima da morte. A acusação se dirige ao fato de a comunidade ainda não ter iniciado ou eleito um indivíduo para dar continuidade ao seu trabalho. Seu João trouxe à reunião, representando a comunidade, seu sobrinho; este tem quarenta e poucos anos; é negro, e bastante participativo; é homossexual. Ele morava em Porto Alegre e mudou-se para a comunidade há, mais de cinco anos para cuidar do pai doente. Durante as discussões, participou ativamente; observei, entretanto, que é visto com desconfiança entre as demais lideranças presentes nos encontros. Talvez, por isso a ideia do presidente de elegê-lo como seu sucessor não tenha sido aceita pelos integrantes das comunidades do entorno. A escolha das lideranças pressupõe que os candidatos tenham aceitação não apenas dos membros das comunidades, mas também das demais comunidades nas quais elas se inserem.

A presença de homens e mulheres idosos ocupando o cargo de presidente nas associações pode ser compreendida como um indício de respeito e confiança que esses indivíduos inspiram. Eles são os guardiões da história e da memória das comunidades. O respeito a sua integridade e os riscos de usufruírem individualmente das eventuais vantagens que o contato com as demais instituições pode proporcionar é menor. Os idosos parecem resguardados da desconfiança alheia e, portanto, mais aptos a negociar em nome do bem comum de todos.

A presença masculina ou feminina na liderança é objeto de negociação. As comunidades da área urbana parecem mais flexíveis com relação às mulheres; contudo, mesmo na região litorânea, onde há uma forte presença masculina, esse modelo vem sendo aparentemente rompido, pois uma mulher vem sendo construída para ocupar um lugar de liderança.

A escolha das lideranças parece obedecer a dois tipos de critérios: aqueles baseados nos valores do grupo e na capacidade do individuo de se inserir no campo político. Os atributos valorizados pelas comunidades se baseiam inicialmente no individuo efetivamente ser um ―quilombola‖. As demais lideranças ou militantes do movimento negro parecem ser

vistas com desconfiança. A liderança deve efetivamente ser oriunda de uma comunidade e escolhida por ela. As questões de idade e gênero também têm relevância, mas não são determinantes na escolha. A construção é um processo lento e pressupõe um movimento do sujeito e da comunidade. O sujeito deve mostrar disponibilidade e interesse, capacidade para a exposição pública, para o diálogo com os agentes políticos que circulam nas comunidades e nos municípios; além disso, deve participar de atividades políticas locais e regionais. Esses indícios demonstram aos membros da comunidade sua capacidade de liderança e autoriza-o gradativamente a falar em nome da comunidade. As disputas em torno das associações quilombolas consolidam e formalizam essa representação política.

A transmissão da experiência que eles definem como um processo que envolve transferência de conhecimentos adquiridos e aprendizagem pode ocorrer em diferentes contextos. A aprendizagem é construída socialmente e implica o uso de diferentes estratégias. Assim, expressar-se verbalmente, relacionar-se com pessoas em diferentes espaços são atributos positivos de uma liderança quilombola. Em contrapartida, esse processo de aprendizagem, quando ocorre no âmbito das suas relações sociais, baseia-se na troca, sendo a transmissão da experiência adquirida e a homenagem suas moedas simbólicas, na medida em que as lideranças se tornam figuras respeitáveis pelo reconhecimento público.

A ascensão para a representação em instâncias externas à comunidade, por meio de representações regionais, estatais e nacionais, leva em consideração as trajetórias individuais desses sujeitos e, fundamentalmente, o respeito adquirido nas comunidades. O domínio da linguagem e a capacidade de tradução do mundo jurídico e da burocracia para si e para as comunidades as quais representa são atributos bastante valorizados pelos sujeitos nesse campo. Em última instância, a liderança deve ser capaz de ultrapassar os desejos e interesses individuais e falar em nome do coletivo, traduzindo demandas e anseios do grupo numa demanda política, num discurso articulado que passará a representar as expectativas do grupo que representa, ou seja, um discurso público da comunidade.

3.6 O CAMPO QUILOMBOLA E AS MÚLTIPLAS FACES DAS LUTAS POLÍTICAS