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A pesquisa adotou a abordagem qualitativa do tipo descritivo4. A escolha do método, enquanto um caminho do pensamento e da prática exercida na abordagem da realidade se constitui, contudo, em um dos maiores desafios da pesquisa.

Minayo (1999) chama a atenção para o fato de a cientificidade ser pensada como uma idéia reguladora de alta abstração e não como sinônimo de modelos e normas a serem seguidos, pois a história da ciência tem revelado que a produção do conhecimento tem relação com um determinado período histórico. Como destaca:

[...] o labor científico caminha sempre em duas direções: numa, elabora suas teorias, seus métodos, seus princípios e estabelece seus resultados; noutra, inventa, ratifica seu caminho, abandona certas vias e encaminha-se para certa direção privilegiada. E ao fazer tal percurso, os investigadores aceitam os critérios da historicidade, da colaboração e, sobretudo, imbuem-se da humildade de quem sabe que qualquer conhecimento é aproximado, é construído. (p.12-13).

Em sua sutileza a autora elenca o grande desafio do pesquisador: aliar o rigor científico e suas prerrogativas lógicas e metodológicas com a criatividade, ímpeto e,

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De acordo com Bourdieu (1984) os agentes sociais são indivíduos ou instituições. 4

Segundo Gil (2009, p. 42) esse tipo de pesquisa tem como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de relações entre variáveis.

sobretudo, humildade para identificar os erros, reavaliar os caminhos e seguir na busca do conhecimento. Além disso, a escolha do método não é uma escolha aleatória, mas pressupõe opções, crenças e valores. Não se trata em último caso de uma tentativa de produzir conhecimentos absolutos, mas interpretações plausíveis, cujo lugar da linguagem situada num contexto histórico e social é central.

Decorre disso, a importância do conhecimento da pesquisa em sentido amplo e das possibilidades que se colocam no campo das metodologias e dos procedimentos operacionais. A metodologia não se aplica por si só, ela é sempre relacional e depende de procedimentos. (MARTINELLI, 1999).

A pesquisa parte da premissa que a realidade é uma construção social e que os fenômenos são compreendidos dentro de uma perspectiva histórica e holística – componentes de uma dada situação estão inter-relacionados e influenciados reciprocamente, e se procura compreender essas inter-relações em um determinado contexto. (BAPTISTA 1999). Em função disso, pretende-se privilegiar a analise dos significados que os indivíduos dão as suas ações, no espaço que constroem as suas vidas e suas relações assim como dos vínculos das ações particulares com o contexto social mais amplo em que estas se dão.

Contudo, convém salientar, a importância de não fazer dos conceitos ou das abordagens teóricas camisas de forças, mas instrumentos que podem gerar novos entendimentos. Tais reflexões são fundamentais para evitar retificações e simplificações dos processos de classificação e diferenciação social que, em geral, são fluidos, ambíguos, situacionais e negociáveis. Embora não possam ser alvo de qualquer tipo de manipulação, uma vez que há constrangimentos históricos e sociais no possível uso das classificações sociais.

Diante dos desafios impostos entre construir aproximações com o real sem perder a criatividade e as exigências de um rigor metodológico que se elegeu um estudo de caráter descritivo cujos pressupostos permitem observar, descrever e correlacionar em profundidade o fenômeno em estudo. Privilegiaram-se no campo, as observações em torno dos discursos e práticas dos agentes sociais5, de modo a construir uma interpretação a respeito das concepções de igualdade e diferença presentes no campo quilombola. Para alcançarem-se tais discursos, o presente estudo valeu-se de múltiplas fontes, instrumentos e técnicas de coleta de informações.

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A noção de discurso utilizada faz referencia ao uso dado por Bourdieu de Habitus linguístico, ou seja, produto das condições sociais, produzido a partir de uma ―situação‖, ou antes, ajustado, a um mercado ou a um campo. (BOURDIEU, 1984, p.128).

Quanto aos procedimentos técnicos, a pesquisa mesclou elementos de um estudo de campo, pois utilizou instrumentos que permitiram observar o grupo estudado de modo a captar suas explicações e interpretações sobre o fenômeno dos quilombos no Brasil. Esses procedimentos foram conjugados ainda, com outras fontes de pesquisa e coletas de dados, tais como: a pesquisa bibliográfica e documental. No que tange aos procedimentos escolhidos (leitura e análise de documentos e realização de entrevistas), teve-se como propósito traçar aproximações de forma qualitativa acerca do reconhecimento étnico no universo em estudo. As metodologias utilizadas permitiram construir um corpus de documentos com informações relevantes que serviram de base para as análises e interpretações que constituíram o presente estudo. (GIL, 2009).

A pesquisa iniciou em junho de 2008 e foi finalizada em abril de 2011. Desenvolveu- se através de três etapas metodológicas: uma etapa que compreendeu o levantamento bibliográfico e documental e o ingresso propriamente no campo através da observação participante e da realização de entrevistas. A escolha pelas três diferentes abordagens metodológicas no processo de construção do objeto de pesquisa buscava aproximar as várias dimensões do mundo social.

O levantamento bibliográfico partiu da seleção de artigos científicos, relatórios de pesquisas e estudos sobre o tema dos quilombos. A pesquisa documental sistematizou informações em materiais diversos tais como: materiais publicados em jornais e revistas, sites especializados, documentos produzidos por instâncias governamentais e não governamentais (projetos técnicos, legislações, decretos, normas, comunicações, orçamentos, etc.). Essa base de dados permitiu levantar e sistematizar informações sobre o tema dos quilombos, de modo a conhecer em profundidade sua história, processo de organização política, distribuição sócio- demográfica, políticas governamentais e legislações.

Converge ainda a delimitação do escopo do presente estudo, a experiência como coordenadora técnica representando a instituição contratante, no caso a FASC, junto a pesquisa realizada em Porto Alegre com as comunidades remanescentes de quilombos, executada pela UFRGS, a participação em atividades políticas e culturais relativas ao tema da defesa dos direitos quilombolas e o aprofundamento teórico das pesquisas bibliográficas e documentais.

Nesse processo pude constatar que as lideranças políticas e os agentes estatais construíam suas justificativas centrais em torno das demandas por direitos com base num modelo igualitário e democrático de estado cujo elemento identitário compunha apenas uma parte dos seus discursos. Essa aproximação inicial permitiu delimitar o campo de pesquisa,

formado pelos agentes sociais representados pelos funcionários das instituições governamentais dos poderes executivo e judiciário e lideranças dos movimentos sociais que defendem os direitos ―quilombolas‖. A aprovação do projeto de pesquisa pela Comissão Cientifica e o Comitê de Ética em dezembro de 2009 marcou a ―entrada no campo‖, dado pela realização das entrevistas e da observação participante6.

As entrevistas do tipo semi-estruturadas7, com perguntas abertas e fechadas, realizadas no período de março a abril de 2010 tiveram por objetivo conhecer as trajetórias e as motivações dos sujeitos para o envolvimento com as questões étnicas; além de identificar os conflitos e tensões e as estratégias de organização que orientam suas ações. De modo a garantir que os temas fossem abordados em profundidade, construiu-se um roteiro para auxiliar na organização da interação social no momento da entrevista, bem como, na organização dos dados coletados. Os eixos que estruturam o roteiro compreenderam, portanto, três questões centrais: a atuação do estado através das políticas públicas para as comunidades quilombolas; o processo de organização política do movimento social quilombola e, os significados atribuídos a noção ―quilombola‖ ou ―quilombos‖ na contemporaneidade. Convém destacar, que a realização das entrevistas, também, foi objeto de observação por parte do pesquisador, pois se pressupõe que nem todos os elementos estão contidos nos discursos, mas também nos gestos, olhares e práticas dos sujeitos a partir dos contextos nos quais se inserem.

A observação participante privilegiou a apreensão daqueles elementos que não podem ser apreendidos por meio da fala ou da escrita, pois como afirma Melucci (2005) não se trata somente de obter a disponibilidade do ator social, mas de apoderar-se de chaves interpretativas e de competências lingüísticas que são estranhas ao mundo do pesquisador.

Foram realizadas observações durante o período de janeiro a abril de 2010 e posteriormente em março e abril de 2011, através da participação em atividades diversas como visitas às comunidades da Família Silva, em Porto Alegre, e a comunidade Chácara das Rosas em Canoas, duas atividades políticas ocorridas durante o Fórum Social Mundial em janeiro de 2010 e reuniões com as comunidades de quilombos localizadas nas cidades de Tavares e Mostardas na região do litoral norte do estado. As inserções no campo e os processos de observação foram registrados através dos diários de campo.

6Ceres Gomes aponta que ―observar, na pesquisa qualitativa, significa ―examinar‖ com os sentidos um evento, um grupo de pessoas, um individuo dentro de um contexto com o objetivo de descrevê-lo. (2000, p.62).

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Minayo (1999, p.121) referindo-se a entrevista semi-estruturada, considera que ―suas qualidades consistem em enumerar de forma mais abrangente possível as questões onde o pesquisador quer abordar no campo, a partir de suas hipóteses ou pressupostos, advindos, obviamente, da definição do objeto de investigação.

A entrada no campo foi marcada pela necessidade de mediações políticas para a realização de algumas das entrevistas, principalmente com os agentes governamentais atuando em Brasília. Dada a importância política que atribuíam a seus postos, os encontros foram bastante negociados. Foi necessário marcar agendas com grande antecedência. Foi necessário ainda, contatos com intermediários para garantir o cumprimento das agendas, pois duas delas foram canceladas e apenas, reagendadas após a interlocução com os entrevistados por alguns dos meus contatos.

As atividades públicas, os encontros em Santa Maria e em Porto Alegre diferenciaram-se pelo tipo de participação da pesquisadora. Na primeira, a participação se restringiu a observação da atividade, não houve uma tentativa de aproximação com os agentes durante o evento. Na atividade em Porto Alegre, organizada pelo Ministério Público e Movimento Negro Unificado, a participação ocorreu através do convite de um dos informantes para compor a mesa através do registro do evento. O evento revelou-se extremamente importante, pois propiciou a observação dos agentes num espaço político e de articulações entre os integrantes das diferentes vertentes de uma parte do movimento (lideranças, partidos políticos, MNU, agentes governamentais, Ministério Público, etc.) além de permitir conhecer as acusações que estavam sendo proferidas ao governo.

A ida à comunidade da Família Silva foi resultado de um convite de um dos informantes do campo, desdobrou-se na participação em duas reuniões. A primeira reunião tinha como objetivo tratar da organização de uma festa de aniversário de uma das lideranças quilombolas da comunidade para arrecadar fundos e fazer ―caixa‖ e a segunda, para avaliar a participação nas atividades que estavam sendo organizadas em virtude do Fórum Social Mundial.

O campo junto às comunidades do litoral norte, Tavares e Mostardas, foram realizados através da participação em duas reuniões uma na cidade de Tavares e a outra em Mostardas. A participação nesses eventos foi mediada por um dos informantes e contou com minha intensa participação. As reuniões tinham por objetivo elaborar um documento com as demandas e necessidades das comunidades da região para o Governador Tarso Genro, eleito em 2010. Na primeira reunião tive uma participação mais discreta, pois estava acompanhando meu informante que tinha a tarefa de coordenar a atividade da região. Na segunda reunião, planejei junto com o informante a atividade e devido a um problema do mesmo, acabei coordenando a atividade.

A inserção no campo ocorreu de forma gradual e foi bastante difícil, pois a proximidade dos sujeitos com o universo da pesquisadora dificultou muitas vezes, o

distanciamento necessário na delimitação do objeto da pesquisa. Parte dos sujeitos desse campo são funcionários públicos, professores e estudantes universitários, seus discursos, se aproximam da militância política e do discurso acadêmico. Para esses agentes, as discussões políticas se pautam pela identificação com as ideias de igualdade e do reconhecimento aos direitos quilombolas e mesmo de um conhecimento histórico sobre o tema. O domínio sobre esses saberes é uma credencial para o estabelecimento do diálogo e ingresso no campo de pesquisa. Para os quilombolas, que possuem um discurso diferente, não tão elaborado com relação à crítica ao Estado e aos setores agrários que marcam os demais militantes do movimento, o estabelecimento da relação de confiança entre a pesquisadora se deu pelas possibilidades que se oferecia nessa relação. Uma das lideranças chegou a perguntar explicitamente os benefícios da pesquisa em curso para sua comunidade.

Os critérios que orientaram a delimitação dos sujeitos da pesquisa se basearam na abrangência das visões e ações de cada um dos agentes sociais que circulam no campo quilombola. O critério de inclusão foi intencional; considerando do conjunto dos movimentos e instituições estatais, aqueles que, representam e atuam junto às comunidades remanescentes de quilombos. Foram realizadas sete entrevistas semi-estruturadas com roteiro de questões que tinham por objetivo conduzir o entrevistado aos temas que deveriam ser aprofundados, sendo que desse total, dois se constituíram como informantes do estudo. Todas as entrevistas foram registradas através de gravação em áudio, transcritas na íntegra e autorizadas pelos participantes, além disso, os textos passaram por pequenas correções linguísticas, porém não foi eliminando o caráter espontâneo das falas. Os nomes dos sujeitos entrevistados em função de questões éticas foram modificados de modo a preservar sua integridade e sigilo. A descrição dos sujeitos e suas trajetórias pessoais e profissionais são apresentadas ao longo dos capítulos, identificando-os quando citados pela primeira vez.

As observações realizadas junto às comunidades quilombolas e demais atividades por se tratarem de eventos públicos serão apresentadas como material de análise esclarecendo que se trata de registros de diários de campo, portanto, interpretadas a partir da ótica do pesquisador.

O universo empírico que compôs o estudo foi formado por sete sujeitos selecionados com base nas suas trajetórias políticas ou profissionais junto ao tema dos quilombos. Foram entrevistadas representantes do movimento negro, lideranças quilombolas e agentes governamentais. As entrevistas com os sujeitos contribuíram para investigar como se objetivam as ações dos agentes sociais no campo quilombola e, também, identificar de que modo os diferentes discursos são utilizados nesse campo, pois o uso desses discursos

pressupõe conhecer as regras do jogo de modo a transformar as posições dos agentes e as relações de força no campo. Ainda que tais processos se constituam de forma dinâmica para fins de análise serão abordados separadamente.

Dada a riqueza e amplitude do material coletado, na apresentação desta tese os discursos que emergem do campo em estudo não são apresentados em sua totalidade, antes sendo introduzidas algumas categorias consideradas centrais para a compreensão das análises, a saber: igualdade, diferença e reconhecimento. Estas serão aprofundadas ao longo da tese.

1.5 OS DISCURSOS ÉTNICOS COMO PROBLEMA DE PESQUISA: A CONSTRUÇÃO