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AS LUTAS POLÍTICAS POR RECONHECIMENTO: O MOVIMENTO SOCIAL

Apesar de a Constituição de 1988 ter reconhecido a legitimidade da demanda histórica dos atuais habitantes das comunidades quilombolas, o direito aos territórios não está assegurado como revelam as disputas políticas e jurídicas pelo reconhecimento do direito garantido constitucionalmente.

A aprovação do artigo 68, na carta constitucional, entretanto, não garantiu apenas o direito aos territórios, ela criou uma categoria jurídica de sujeitos de direitos coletivos. Isso impulsionou os sujeitos políticos, os quilombolas, a reivindicarem, na esfera pública, o reconhecimento de seus valores étnicos e sociais por meio da organização política.

Na década seguinte, observa-se a criação de espaços de representação institucional cujos objetivos parecem se voltar para a constituição de canais de negociação com o Estado, bem como para reafirmar uma identidade das lutas quilombolas no movimento negro. No ano de 1995, por ocasião das comemorações em torno de Zumbi dos Palmares, foi realizado, em Brasília, nos períodos de 17 a 19 de novembro de 1995, o I Encontro Nacional de

Comunidades Negras Rurais Quilombolas26. No ano seguinte, em maio de 1996, no município de Bom Jesus da Lapa/Bahia, foi criada a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, com representantes de 22 estados da federação27. Além da CONAQ, o movimento quilombola possui ainda, outras instâncias de representação organizadas nos estados e municípios. No Rio Grande do Sul, temos a Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do RS, a Frente de Luta Quilombola Negra e Popular de Porto Alegre. Esse modelo de organização política estruturado numa lógica federalizante busca operar como um polo unificador dos vários grupos que atuam no país em torno do tema. Goldman (2006) lembra que a lógica de funcionamento do Movimento Negro Unificado (MNU) tem esse viés, ou seja, ele é um segmento do Movimento Negro e, a partir dele, segmentou-se internamente, criando regionais e estruturas locais.

Outra estratégia de organização política do movimento quilombola tem sido a criação de associações de moradores.

Walter Claudius Rothenburg (2010, p. 456), Procurador Regional da República, destaca que a perspectiva coletiva do direito das comunidades se contrapõe ao modelo individualista. Para o procurador, a mudança na redação do artigo 68, do ADCT, se orientou pelo viés individualista, como refere:

O sujeito da expressão ―comunidades remanescentes de quilombos‖ (onde o núcleo é o termo ―comunidades‖, que se refere à coletividade) foi alterada para ―remanescentes das comunidades de quilombos‖ (onde o núcleo é o termo ―remanescente‖, que se refere aos indivíduos).

Apesar do viés individualista que orienta o texto constitucional, o Ministério Público Federal tem tratado a questão do direito aos territórios sob a natureza coletiva do sujeito de direito, qual seja, a comunidade formada por remanescentes de quilombos. Ainda segundo Rothenburg (2010), essa visão tem orientado as instituições estatais a impor a instituição de

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Essa atividade é parte de outra maior, ocorrida em 20 de novembro do mesmo ano, quando milhares de pessoas marcharam em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. A marcha em Brasília culminou com ativistas do movimento negro e líderes sindicais, expondo suas demandas ao Congresso Nacional e em reunião com o Presidente Fernando Henrique Cardoso, quando exigiram medidas concretas de combate à discriminação racial (TELLES, 2003).

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De acordo com seu estatuto, a CONAQ tem como objetivos lutar pela garantia do direito a terra e pela implantação de projetos de desenvolvimento sustentável; preservar os costumes e a tradição entre as gerações das populações quilombolas; propor políticas públicas, levando em consideração a organização preexistente das comunidades, tais como o uso da terra e dos recursos naturais, sua história e cultura em harmonia com o meio ambiente, referência de vida; zelar pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes como continuadoras da cultura e tradição quilombolas e combater toda e qualquer discriminação racial e intolerância religiosa. http://www.conaq.com.br. Acesso em 31.10.2009.

associações representativas das comunidades como uma estratégia de implantação. Esse modelo ideal, nas palavras do autor, algumas vezes provoca consequências negativas no interior das comunidades, reproduzindo, quando não acirram, disputas e conflitos entre os indivíduos. Ocorre que a discordância com determinada direção eleita na comunidade para conduzir as associações não exclui o direito de pertença dos indivíduos opositores.

Frente ao modelo adotado, o título da propriedade vem sendo emitido em nome das associações; o mesmo ocorre com as políticas públicas, em geral, geridas pelas suas diretorias. O governo vem agindo dessa forma para tratar de relações políticas, burocráticas e projetos; em vez de os encontros acontecerem com os sujeitos, eles são feitos com uma representação eleita, que fala em nome deles. O Ministério Público Federal, ao que parece, tem questionado essa atitude do governo federal. Como explicita Carlos, procurador do MFF ao abordar o tema:

Não, a gente não espera que tenha associação, a gente reconhece a comunidade. Essa coisa da associação, ela é muito engraçada porque é o seguinte, é o direito tendo que pautar a forma que os movimentos se organizam. Porque que, por exemplo, na questão da titulação, porque é necessária uma associação? Porque quando for titulada a área ela tem que ficar em nome de alguém que tenha um CNPJ. Por quê? Caso contrário, o registro de móveis não registra. Bom. Então tem o CPF ou CNPJ. Então, não pode ficar em nome da comunidade quilombola tal. Não se conseguiria registrar. Então se põe o nome da Associação, e isso vai gerar muito problema no futuro, sem dúvida. E ninguém é obrigado a se associar, porque o fato de ele ser associado ou não, não significa que ele tenha pertencimento àquela comunidade ou não. Só que a gente ainda está na primeira fase. Não titularam ainda, né? Mas, no futuro, no futuro, isso daí dará problema. Na hora de pegar empréstimo? Quero fazer um empréstimo, porque eu quero plantar na minha área aqui, uma área que eu tenho que não é de uso comum, tem que ter uma política pública que permita esse tipo de coisa. É a associação que vai pegar o dinheiro emprestado? (Carlos, abril de 2010).

Para o entrevistado, a adoção do modelo associativista como forma de gerir as relações internas e externas das comunidades de quilombos além de imposto, visa a resolver uma questão burocrática do próprio governo com relação ao processo de titulação. Sua viabilidade ainda não foi plenamente testada, uma vez que os problemas em torno das comunidades ainda estão focalizados na titulação. Para o futuro, porém, em seu entendimento, o modelo pode apresentar-se problemático e gerar conflitos entre os membros das comunidades.

Se, por um lado, a organização das comunidades por meio de associações, em que há eleição de uma diretoria e um presidente, que têm a função explícita de representação e mediação com os agentes externos é uma imposição externa dos órgãos estatais, de outro, o movimento quilombola tem se organizado por meio dessas associações com suas lideranças e

estruturas. Uma das funções da Federação de Associações Quilombolas do RS, no entendimento de Suzana, uma das suas coordenadoras, é justamente a de ajudar as comunidades que ainda não se autorreconheceram para possam ingressar com seus pedidos na Fundação Cultural Palmares. A FACQ tem auxiliado as comunidades quilombolas, explicando-lhes quais são os procedimentos burocráticos e jurídicos necessários para a criação das associações. Suas lideranças percorrem as regiões com a presença de comunidades negras que ainda não iniciaram qualquer procedimento de autodefinição com o intuito de organizar suas associações e, a partir daí, procurar os órgãos estatais para viabilizar seu reconhecimento como quilombola. Outras ONGs têm tomado essa iniciativa como uma ação política relevante no processo de organização das comunidades não tituladas.

As associações, contudo, são, de certa forma, um prolongamento das relações familiares, de vizinhança, de idade ou de classe e tendem a fazer com que os códigos utilizados nas comunidades sejam sobrecodificados étnica ou culturalmente em suas relações políticas com os agentes externos, sejam elas locais (prefeituras, associações de trabalhadores, sindicatos etc.), sejam regionais ou nacionais. Ou seja, os valores locais das comunidades se expressam nas associações por meio das diretorias, das representações eleitas nas próprias comunidades.

No que tange às reivindicações coletivas do movimento quilombola, constata-se duas grandes pautas: o reconhecimento étnico, traduzido no respeito à sua memória, à tradição e aos valores culturais e o reconhecimento de direitos sociais. Essas reivindicações são construídas com base nos discursos que articulam a defesa da igualdade e do respeito à diferença. Os discursos do movimento quilombola enfatizam, portanto, a defesa do reconhecimento dos direitos étnicos e sociais. A delimitação das pautas políticas e dos discursos é parte da constituição da identidade do movimento quilombola.

Outra característica do movimento quilombola é a do estabelecimento de alianças com outros movimentos sociais, refletindo uma tendência atual de articulação em redes. A análise documental indicou a presença de relações mais ou menos próximas com entidades28 não governamentais, movimentos sociais, organismos nacionais e internacionais, sindicatos, universidades, dentre outros, que atuam na defesa dos direitos humanos, sociais, religiosos, étnicos, gênero etc. As alianças têm por objetivo legitimar o movimento em sua relação com a

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Articulação Regional de Mulheres Negras Quilombolas, Instituto de Mulheres Negras, Comissão Pró-Índio de São Paulo, Associação de Cultura Cigana do Estado de São Paulo, religiões de matriz africana, Coordenadoria Ecumênica de Serviço, Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Justiça Global, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Centro pela Justiça e Direito Internacional, Centro pelo Direito a Moradia contra Despejos, Pastoral da Terra, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

sociedade e com o Estado e são acionadas como uma estratégia de pressão e articulação. Nesse sentido, as representações do movimento, por intermédio de suas instâncias formais estão presentes em atividades públicas como Fórum Social Mundial, eventos, manifestações relacionados à defesa dos direitos e outros temas como uma estratégia de manifestação de apoio a outras lutas e garantia de visibilidade na esfera pública.

Há o uso intensivo das novas tecnologias de comunicação como notícias online, uso do correio eletrônico, sites especializados. Esses recursos são utilizados como instrumentos para articular suas reuniões, audiências, audiências públicas, seus atos públicos, e a coleta de assinaturas na internet têm o objetivo de fortalecer seus encaminhamentos a instâncias governamentais e não governamentais regionais, nacionais e internacionais; outro recurso utilizado pelo Movimento são as ações judiciais coletivas.

Ao contrário de algumas posições as quais professam que as redes diminuiriam a importância dos movimentos sociais, entendo que elas expressam as transformações econômicas, políticas, sociais e tecnológicas da sociedade contemporânea e podem contribuir para o fortalecimento dos movimentos sociais. Os sujeitos que compõem os movimentos sociais transitam nas redes e constroem alianças e parcerias a partir dos contextos em que estão inseridos. Tais alianças, no entanto, são dinâmicas e podem se alterar de acordo com o fluxo das transformações em curso nos mesmos contextos.

No âmbito local, são acionadas as ações coletivas das comunidades negras, seja na área rural dos confins do país ou no meio urbano. No âmbito regional e no nacional, há intensos processos nos poderes executivos municipais, estaduais e federais, bem como nos poderes legislativos e judiciários. O Movimento tem uma relação bastante próxima com as universidades e com o Ministério Público Federal, tendo em vista suas funções constitucionais de proteção e defesa das populações tradicionais.

Scherer-Warren (2006), ao discutir os processos de mobilização em redes sociais, afirma que esse emaranhado de temáticas nos diversos movimentos sociais bem como sua ocorrência simultânea, em espaços locais e globais, reflete a dinâmica social atual dos movimentos em rede. O Movimento Nacional Quilombola é citado como um exemplo de movimento em rede, tendo em vista seus aspectos organizacionais e de ação movimentalista.

Do ponto de vista organizacional, incluem várias redes, desde a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, criada em 1996, até as organizações das comunidades locais de ―mocambos‖, ―quilombos‖, ―comunidades negras rurais‖ e ―terras de preto‖, que são várias expressões de uma mesma herança cultural e social, e ONGS e associações que se identificam com a causa. Do ponto de vista da ação movimentalista, apresenta as várias dimensões definidoras de um movimento social (identidade, adversário, e projeto): unem-se pela força de uma identidade étnica (negra) e de classe (camponeses pobres) – a identidade; para combater o legado colonialista, o racismo e a expropriação – o adversário; na luta pela manutenção de um território que vive sob constante ameaça de invasão, ou seja, pelo direito à terra comunitária herdada – o projeto. Nesse momento, unem-se também ao Movimento Nacional pela Reforma Agrária na luta pela terra, mas mantendo sua especificidade, isto é, pela legalização da posse das terras coletivas. (SCHERER-WARREN, 2006 p.115).

A ação dos sujeitos quilombolas demonstra a combinação de uma atuação em rede de caráter organizacional e movimentalista, na medida em que eles articulam ações no âmbito local, regional e nacional. São capazes também de estabelecer alianças com outras lutas políticas como um mecanismo importante de demonstração de força e inserção na esfera pública. O estabelecimento das suas redes com outros sujeitos coletivos da sociedade civil organizada têm ampliado seu campo de negociação e seu poder político.

No próximo tópico, serão apresentadas as disputas políticas do movimento quilombola com os vários agentes que atuam no campo quilombola, revelando o modo como suas instâncias de representação têm negociado com vários agentes desse campo.

3.3 MOBILIZAÇÃO DE FORÇAS POLÍTICAS: OS QUILOMBOLAS VERSUS ―OS