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AS LUTAS POLÍTICAS EM TORNO DA VIABILIZAÇÃO DO DIREITO AOS

A aprovação do artigo 68, na Constituição pela Assembleia Constituinte, foi impulsionada pelas lutas do Movimento Negro (ARRUTI, 2006; TELLES, 2003) e estava envolta nas comemorações e nos protestos relativos ao Centenário da Abolição da escravatura. Naquele período, ainda não se tinha noção da quantidade de comunidades negras rurais e urbanas existentes no território brasileiro, bem como das implicações da aprovação das reivindicações em uma legislação sobre o tema no mundo rural. Como afirma Arruti (2006):

A intenção do legislador, fantasmagoria e recorrentemente citada nos textos de hermenêutica jurídica, dificilmente pode ser reivindicada como chave de compreensão dessa nova realidade. Ao tentarmos dar conteúdo sociológico a essa suposta ―intenção‖, no caso do ―artigo 68‖, encontramos pressupostos obscuros e confusos, um conhecimento muito limitado da realidade que nele se faria representar e uma discussão que, em momento algum, apontou para o futuro, mas sempre para o passado. Paradoxalmente, foram aqueles que se opuseram ao artigo que pareciam ter alguma clareza sobre suas possíveis implicações sociais (p.66-67).

O movimento negro, eminentemente urbano, desconhecia, em parte, as questões fundiárias, contudo, o quilombo continha a representação da ―resistência‖, elemento impulsionador das suas lutas naquele período histórico. Foi esse ―espírito‖ que motivou a inclusão do artigo 68 do ADCT na Constituição. Ainda de acordo com um constituinte integrante da Comissão de Índios, Negros e Minorias, o artigo ―teria sido incorporado à Carta ―no apagar das luzes‖ (p.67), o que revela que a aprovação do artigo 68 foi resultado de intensas negociações políticas, ainda que seu objeto não estivesse devidamente claro para seus proponentes. Arruti (2006), ao analisar os dados do período, joga luz sobre aquele contexto, como fica explicitado no relato de um dos seus informantes:

Segundo Flávio Jorge, do Fórum Estadual de Comunidades Negras de São Paulo, a militância negra, na época, tinha de fato, mais dúvidas que certezas; com relação ao artigo e o seu texto final, teriam sido resultado de um esgotamento do tempo e das referências de que o movimento dispunha para o debate, mais do que de qualquer consenso. A decisão teria passado, principalmente, pela avaliação de que seria necessário lançar mão do ―momento propício‖, mesmo que não se soubesse ao certo o que se estava fazendo aprovar. Tanto o desconhecimento sobre a realidade fundiária de tais comunidades por parte dos constituintes quanto o contexto de comemoração do Centenário da Abolição (nós vinculamos que quem votasse contra o ―artigo 68‖ poderia levar a pecha de racista) formaram o caldo ideológico que permitiu o surgimento do ―artigo 68‖. Só uma coisa parecia estar fora de discussão, segundo o deputado Luis Alberto (PT/BA) – coordenador nacional do MNU: que o ―artigo 68‖ deveria ter um sentido de reparação dos prejuízos trazidos pelo processo de escravidão e por uma abolição que não foi acompanhada por nenhuma forma de compensação, como o acesso a terra. (ARRUTI, 2006, p.67-68).

O depoimento torna explícito os interesses e as estratégias dos indivíduos e grupos de um campo de lutas em formação. Os militantes do movimento negro e os deputados dos partidos políticos envolvidos com o tema (Partido dos Trabalhadores – PT e Partido Democrático Trabalhista – PDT), na época, estavam empenhados na formulação de um texto que abarcasse as reivindicações de regularização fundiária dos territórios historicamente ocupados pelas populações negras rurais ou urbanas que estavam em áreas sem regularização fundiária. O tema, pelos relatos dos participantes da constituinte, ainda era pouco conhecido; em vista disso, para que houvesse a aprovação do texto, a estratégia adotada pelos indivíduos foi a de articular as acusações de racismo com o discurso da reparação histórica.

A avaliação que pautou o movimento foi política e refletia uma determinada conjuntura histórica, na qual as relações de força entre os proprietários de terras e as populações negras, sujeitos diretamente envolvidos com o tema, tiveram menos relevância; a questão foi tratada no âmbito político e cultural – valorização da identidade negra, reparação histórica, racismo –, o que permitiu a aprovação da demanda.

Os políticos e seus assessores tiveram papel fundamental na negociação e aprovação do texto; os principais propositores foram os deputados constituintes do Rio de Janeiro, Benedita da Silva (Partido dos Trabalhadores - PT/RJ) e Alberto Caó (Partido Democrático Trabalhista do Rio de Janeiro - PDT/RJ), demais integrantes do Movimento Negro, da Comissão de índios, Negros e Minorias e o Deputado Alberto Caó, responsável pela formulação do texto final.

A emenda original teve três emendas modificativas propostas pelos deputados Aluízio Campos (Partido Movimento Democrático Brasileiro de Pernambuco - PMDB/PB), José Richa (PMDB do Paraná/PR) e Eliel Rodrigues (PMDB/PA). O primeiro deputado propunha o reconhecimento da posse das terras ocupadas, aproximando o estatuto do domínio

dos remanescentes de quilombos, tanto ao dos indígenas, ao lhes garantir apenas o reconhecimento da posse. A emenda do segundo tinha uma formulação mais avançada, pois reconhecia a propriedade definitiva, e o último, ao propor o tombamento das terras, apresentava duas divergências em relação ao texto original: a primeira, relativa à conceituação das comunidades que seriam objeto do artigo, e a segunda, relativa ao objeto do reconhecimento. Com relação à primeira, ele inseria o termo ―antigo‖ para qualificar o termo remanescente a um vínculo histórico. Com relação à segunda, ele limitava o reconhecimento aos direitos culturais, propondo que as terras fossem apenas tombadas, sem a possibilidade de titulação pelo Estado. (ARRUTI, 2006).

O contexto de formulação da proposta e as emendas modificativas, apresentadas pelos deputados constituintes, já antecipavam as discussões futuras sobre o tema: a tensão entre o reconhecimento da posse, o tombamento e a propriedade definitiva e a vinculação histórica para a qualificação de um território como ―quilombola‖.

Observava-se, naquele período, portanto, um realinhamento das posições dos agentes no campo entre os indivíduos e grupos favoráveis e os opositores às demandas reivindicadas. Delineavam-se, ainda, os elementos centrais que dariam base aos conflitos: as disputas em torno do território de base étnica. O texto, finalmente aprovado no artigo 68 da Constituição, ficou assim redigido: ―Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

É relevante salientar, contudo, que o texto aprovado pela carta constitucional foi o possível naquele contexto, seja pelas limitações dos próprios integrantes do movimento negro, que ainda não dispunham de conhecimento suficientes sobre a situação das comunidades negras na área rural ou urbana brasileira, seja pelas imposições dos partidos que se opunham à concessão de terras para as comunidades.

A análise histórica sobre o processo de aprovação do artigo na Constituição é importante não apenas pelo conhecimento de um evento significativo na história da sociedade brasileira, mas também pelo fato de que algumas vezes as narrativas em torno do tema assumem um caráter quase ―mítico‖.

Não há como negar a importância do momento político que marcou a aprovação da Constituição na década de 1980. Havia, naquele momento, um desejo de mudanças sociais e políticas pelos diferentes segmentos da sociedade brasileira, mitigadas durante o período de ditadura militar. Nesse sentido, o contexto de democratização refletiu um texto constitucional

que buscava compatibilizar duas grandes promessas: a distribuição mais justa da riqueza produzida no país e uma maior democratização do sistema político.

Embora o texto aprovado tenha introduzido mudanças importantes no campo dos direitos, sua formulação envolveu diferentes grupos em um intenso processo de mobilização e negociação entre interesses e valores sociais a respeito dos modelos de estado, direitos, sociedade, república e democracia.

O texto constitucional aprovado foi, portanto, o possível, e certamente excluiu sujeitos e demandas sociais, assim como manteve ambíguas determinadas questões. Muitas das reivindicações dos movimentos sociais das mulheres, dos homossexuais, dos trabalhadores da saúde, do movimento negro, dentre outros, não conseguiram traduzir-se em direitos ou foram parcialmente inseridos no texto constitucional. Os debates sobre o direito ao aborto e à união civil entre homossexuais são apenas alguns desses exemplos. Por ora, cabe ressaltar a importância de a Constituição Federal ter garantido juridicamente o reconhecimento cultural dos remanescentes de quilombos, seja em relação aos territórios ocupados, seja em relação aos direitos sociais. Houve um reconhecimento jurídico das demandas do Movimento Negro, trazendo para o campo formal a ampliação de seus direitos individuais e coletivos e, ao mesmo tempo inserindo, na esfera pública, condições para a participação dos sujeitos.

No próximo tópico, serão apresentados os processos de operacionalização do artigo 68 nas estruturas institucionais.