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QUILOMBOLAS X AGÊNCIAS ESTATAIS: NEGOCIANDO A CIDADANIA

Dentre as comunidades quilombolas pesquisadas ao longo do presente estudo, a ideia de autorreconhecimento, ao menos do ponto de vista formal, estava superada. Finalizada a etapa da certificação pela Fundação Cultural Palmares, elas ingressam noutro campo de negociação, o dos processos jurídicos e administrativos que envolvem a titulação dos territórios e a busca de investimentos públicos para suas comunidades.

Após a certificação, portanto, as comunidades passam a exigir seus direitos ao Estado, pois ele detém o poder de titular e investir recursos públicos nas comunidades. Vera Telles (2004) vai chamar os processos de reivindicação de direitos de cidadania como linguagem dos direitos.

Para as comunidades quilombolas, as exigências de cumprimento das suas demandas por políticas públicas são tratadas como direitos quilombolas. Uma linguagem que passa a ser utilizada nos espaços públicos e nos processos de negociação com as agências estatais. Essa linguagem dos direitos associa o pertencimento étnico ao direito sobre recursos públicos. O discurso da cidadania quilombola busca instituir, por meio da linguagem dos direitos

quilombolas, uma fronteira entre aqueles sujeitos que assumem um status diferenciado frente

ao Estado-nação e passam a dispor de direitos associados a esse novo estatuto. As agências estatais têm reforçado esse discurso pela imposição de mecanismos legais e burocráticos às comunidades.

O reconhecimento dos direitos quilombolas por parte das agências estatais, entretanto, passa pela imposição de um aprendizado sobre a condição cidadã no Estado-nação. Esse processo ocorre por meio da realização de cursos, seminários, encontros, com o objetivo de capacitar as lideranças e demais integrantes das comunidades (mulheres, jovens, crianças) com ações voltadas para a formação da cidadania.

Dados do Relatório de Gestão 2008 do PBQ mostram que a Secretaria de Direitos Humanos realizou, em 184 municípios, diversos projetos denominados ―Balcões de Direitos‖, voltados às comunidades quilombolas. Revelam ainda que a SEPPIR, Ministério do Desenvolvimento Social, Secretaria Nacional de Justiça e Fundação Cultural Palmares organizaram, conjuntamente, a Conferência Nacional da Juventude Negra, incluindo as deliberações dos povos tradicionais, com a eleição de delegados quilombolas em três regiões do país. A SEPPIR realizou também oficinas de socialização do PBQ, com o

propósito de disseminar conhecimentos, de modo a fortalecer políticas públicas de promoção da igualdade racial em suas etapas de elaboração, planejamento, execução, monitoramento e avaliação, com o objetivo de sensibilizar gestores públicos municipais e estaduais no que concerne à implementação de políticas públicas voltadas às comunidades quilombolas e à capacitação de lideranças quilombolas, com foco no controle social e diagnóstico dos resultados das políticas públicas aplicadas às comunidades. (Relatório de Gestão, Seppir, 2008).

Os investimentos em processo de capacitação das lideranças se constituem, inclusive, como uma estratégia do PBQ. Como destaca uma das coordenadoras do programa:

Um momento de socialização, também de avaliação. Socialização do que tá sendo proposto pra aquela região, pra aquele estado. O que eles podem estar acessando e de que forma. Qual é o formato dos procedimentos pra eles acessarem as políticas públicas. Então tudo isso é feito nesses seminários. Após cada seminário se constrói uma agenda de compromisso, ou seja, o que leva pro prefeito encaminhar, o que leva pro governo do estado encaminhar. Qual é o papel da liderança? É uma forma da gente otimizar um pouco a execução da agenda. Então, o foco é todas as comunidades certificadas daquele estado, ou pelo menos uma liderança de cada comunidade participa dessa atividade, então leva informação pra dentro da comunidade, né? (Neuza, abril de 2010).

Essa estratégia é objeto de críticas por parte de um dos integrantes do MNU entrevistados. Suas críticas ao PBQ dirigem-se explicitamente às capacitações voltadas às lideranças quilombolas que teriam por objetivo cooptá-las frente ao poder de negociação que o governo dispõe na liberação dos recursos públicos.

É óbvio e o que acontece, essa é a grande moeda de troca pra cooptação, entendeu? Só que se você ver o índice de execução orçamentária do projeto Brasil quilombola é pífio, entendeu? É pífio. É só cursinho de capacitação, puramente, com medidas puramente eleitoreiras. Sabe se utilizar dessas intervenções para agir dentro do movimento quilombola é o estado intervindo, cooptando lideranças, manipulando.

(Marcus, março de 2010)

Os discursos em torno dos processos de formação para a cidadania por parte das agências estatais visam a aproximar as lideranças e comunidades dos mecanismos públicos de acesso aos recursos e das estruturas burocráticas. Buscam, ainda, estabelecer uma aproximação entre os discursos das agências e das comunidades, de modo a impor suas visões de mundo por meio da aceitação das proposições estatais. É uma relação de poder assimétrica entre quem dispõe de recursos públicos e quem possui o poder de barganhar prestígio político. Entendem-se as críticas do MNU ao denominar essa estratégia de cooptação.

Dagnino (2002), ao discutir as formas de participação da sociedade civil, chama a atenção para o modo como os sujeitos se inserem nos espaços públicos. Para a autora, a participação da sociedade civil de modo mais igualitário exige uma qualificação técnica e

política, em face da necessidade de participar da formulação de políticas públicas que efetivamente expressem suas necessidades. Um dos desafios desse processo é o de garantir que os membros da sociedade civil não percam sua autonomia nem a capacidade de negociação dos seus interesses coletivos. O domínio de um saber técnico especializado, do qual os representantes da sociedade civil, em geral, não dispõem, como o entendimento do orçamento, de uma planilha de custos, de opções de tratamentos médicos, dentre outros, aliado à necessidade de se apropriar dos mecanismos burocráticos e administrativos do estado são exigências cada vez mais presentes no dia a dia de negociação das lideranças com o estado. É necessária a qualificação técnica e política das lideranças, o que envolve um aprendizado.

Desse modo, ainda que tenham sido realizadas formações junto às lideranças, como explicitado no Relatório de Gestão do PBQ, cabe avaliar em que medida essas formações contribuíram efetivamente na qualificação dos sujeitos, pois, embora as lideranças não se utilizem exclusivamente dos espaços de formação promovidos pelo Estado, eles podem se constituir como um efetivo instrumento de qualificação para os membros das comunidades. O processo, contudo, não deixa de ser uma aprendizagem política da cidadania. Afinal, a cidadania também trata de elevação de um status político a ser negociado com base nos interesses coletivos e individuais.

5.3 AS POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS NOS MUNICÍPIOS: A VIDA COMO ELA É