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O PRIMEIRO PASSO PARA SER CIDADÃO: A CERTIFICAÇÃO

A busca por direitos e os entendimentos sobre a noção de cidadania parecem um processo em construção por parte de muitas comunidades. Um dos primeiros aspectos que chama a atenção nos discursos reivindicatórios da cidadania é o do reconhecimento das comunidades, antes mesmo que dos seus territórios, por parte do Estado. A legislação garante, inicialmente, a certificação da comunidade como remanescente de quilombo; após, dá-se o processo de reconhecimento dos territórios e a titulação. Ocorre que a primeira etapa de certificação habilita, ainda que com dificuldades, muitas comunidades a buscarem recursos públicos em órgãos do estado. Uma região que tenha várias comunidades certificadas com processos de titulação em curso pode almejar recursos públicos e tem mais força política para negociar investimentos e outras melhorias para as comunidades.

Uma das estratégias políticas da Federação de Associações Quilombolas do RS é, justamente, a de incidir sobre as comunidades não certificadas. Suas lideranças têm agido no sentido de orientar sobre o que é uma comunidade de quilombo, sobre os trâmites jurídicos que envolvem a formação da associação e os caminhos para encaminhar os processos de certificação.

A Federação é a representação dessas comunidades. É a gente. O que nós sempre tentamos fazer. Nós buscamos ajudar com os problemas das comunidades. A gente tenta organizar elas juridicamente. Qual o primeiro passo, qual o segundo passo, qual o terceiro passo. E não dá muita expectativa, sempre afirmando que é demorado, muito lento, mas, ao mesmo tempo, sempre botando em pauta e fortalecendo. É fortalecendo a importância da associação. Que o importante é todos tarem unidos. Daí é assim. E daí a gente tem que conversar com eles e dizendo que é muito lento e depende da união e dentro de um processo. A maioria da comunidade leva o processo em diante. Não é por causa de duas três famílias que tu vai parar o processo. Se dá um conflito ou outro tem formas. A gente conversa com as lideranças. Tem forma de contornar. Faz isso e isso e isso e daí eles vão tri bem.

(Suzana, março de 2010).

As lideranças políticas da Federação investem nas comunidades não certificadas, como uma forma de ampliar o número de comunidades do órgão representativo, a FACQ. Os passos narrados por Suzana se referem às etapas necessárias para criação de uma comunidade: o autorreconhecimento como remanescente de quilombo, a criação da associação, a organização da documentação e todas as demais etapas. As lideranças ressaltam a lentidão do processo e os conflitos entre as comunidades sobre participar ou não dessa lógica estatal. Para as lideranças da FACQ, essa é uma ação de organização e de cidadania.

Em suas visitas, elas referem as precárias condições de vida das comunidades, que envolvem falta de água potável, analfabetismo, precariedade de moradias e difícil acesso. A conversão para comunidade remanescente de quilombo representa uma possibilidade de acessar tais recursos, pois essas comunidades adquirem visibilidade política tanto no âmbito local quanto regional. A comunidade se fortalece no município, na região, e a FACQ, no estado. Essa lógica regional se expressa nos discursos das lideranças dos estados do Paraná, do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina sobre a presença de comunidades de quilombos na região sul. A história de imigração europeia e a invisibilidade negra nessa região fizeram com que o processo de reconhecimento das comunidades no estado fosse tardio em relação às regiões Norte e Nordeste. Na opinião das lideranças, esse fato representa um volume menor de investimentos por parte dos órgãos financiadores, por isso os investimentos na ampliação do número de comunidades reconhecidas. O fato foi explicitado na fala de várias lideranças presentes no fórum social mundial.

Eles não quiseram levar em conta a nossa história. O INCRA, que contrata esses antropólogos, não quer voltar atrás. Hoje, os quilombolas conseguem se mobilizar através dessa rede, também dentro do Estado; quando a gente se reúne, eles não querem fazer nada para nós, política pública, nada. Eles fizeram um primeiro levantamento de 86 quilombolas, hoje está em cinquenta e tantos, tão reduzindo, escondendo os negros do estado do Paraná. Peço mais força para brigar. Lá em cima, no sul, não temos tanta visibilidade quanto à região da Bahia. Apesar do Sul estar bem avançado. Tem que ter peso político. O peso do voto para ter força.

Seguindo a própria lógica estatal que investe apenas nas comunidades certificadas pela FCP, as lideranças têm se organizado para dar visibilidade às comunidades negras como remanescentes de quilombos. Essa estratégia foi percebida pelas entidades políticas regionais, que afirmam que as regiões Norte e Nordeste recebem mais recursos por parte do Governo Federal. Análises sobre os valores investidos nas regiões do Brasil demonstram que há um maior volume de recursos alocados nas regiões Norte e Nordeste, conforme tratado neste capítulo anteriormente.

Outra lógica que tem orientado as lideranças do movimento quilombola a investirem nas comunidades ainda não certificadas é sua representação em termos eleitorais. Uma quantidade maior de comunidades reconhecidas representa, na concepção das lideranças, um maior número de sujeitos que são computados como voto e força política. Há, portanto, uma percepção do voto como moeda de negociação política.

As expectativas da titulação e vinda de recursos e investimentos federais são alimentadas pelas agências estatais e pela própria FACQ. A titulação de uma das comunidades e a continuidade da situação precária indicam que as lutas devem continuar, pois não há garantias de mudanças imediatas. Como refere a liderança:

A Comunidade de Chácara das Rosas, depois de todas essas vitórias, depois da titulação, ainda continua a mesma no âmbito social, com muita pobreza. A gente acredita que o título vai fazer as coisas mudar, não. Não é nada daquilo que aparece na internet. Na questão da saúde, as pessoas continuam doentes. Na questão da segurança, nada. Tudo é muito mascarado. Mas mesmo assim nós resistimos. Estamos com algumas oficinas, com apoio da Universidade. O importante é criarmos apoio, as comunidades estarem juntas através das suas associações, das suas entidades, pois é daí que vem a nossa força, dos órgãos públicos acreditarem na gente como ser humano. (Diário de Campo, janeiro de

2010).

A narrativa da liderança presente no evento faz referência à necessidade de as comunidades estarem organizadas politicamente para demonstrar força política ao Estado. Os apelos para que as comunidades se organizem politicamente como uma estratégia de força política nas negociações fundamenta-se na crença de que seus habitantes, assim, serão reconhecidos como seres humanos. O reconhecimento como ser humano, nesse contexto, refere-se ao reconhecimento da sua diferença identitária como quilombola. A visibilidade política advinda da autoatribuição como quilombola é um elemento que habilita o status de cidadania e de humanidade.

Em relação às falas da liderança que explicam o processo de reconhecimento em passos para as comunidades não certificadas, poderia afirmar que o primeiro passo para ser

cidadão é existir como quilombola. Para isso, deve-se ingressar na lógica formal do estado: reconhecer-se como remanescente, criar a associação e postular o certificado na Fundação Cultural Palmares. Ou seja, no campo quilombola, a noção de cidadania se relaciona à noção de identidade. O reconhecimento do estatuto quilombola fez emergir nas comunidades suas noções de direito e de uma condição cidadã. A noção de igualdade se constrói pela diferença.

Os agentes do campo quilombola, as lideranças, os membros das comunidades e também das agências estatais utilizam-se dos discursos dos direitos conquistados na Constituição de 1988 para reivindicar ao Estado e à sociedade civil o acesso aos serviços e recursos públicos. A emissão do certificado fornecido pela Fundação Cultural Palmares ou do título emitido pelo INCRA atua como um marcador simbólico na sua relação com as agências estatais. A posse do documento autoriza-os a buscar os direitos sociais, como refere uma das lideranças:

Depois da oficialização da certidão, a gente passou a ter mais força, mais credibilidade na questão quilombola. Depois da certidão, nós passamos a ter benefícios, a ser enxergado. A certidão é muito importante. Com a certidão dá para acionar habitação, projetos na questão rural, na questão da inclusão digital, na questão da geração de renda. Acionar um monte de projetos com a certidão. Eu tenho direito a um computador porque eu sou associação, sou comunidade. Aqui é secretaria da cultura; tem que tá aberto ao público, ao povo. Eu incomodo.

(Suzana, março, 2010).

Os discursos que abordam a busca da igualdade são construídos em torno da delimitação de uma diferença identitária. Eu sou comunidade assume a conotação do eu sou

quilombola e tenho direitos, inclusive, de ocupar o espaço público. Ao assumir o discurso da

identidade quilombola, eles não apenas exigem direitos, mas, também, ampliam seus espaços de participação ao assumir um novo status social. Um status quilombola.

A possibilidade de acesso às políticas públicas garantida pela certificação e ou titulação dos seus territórios ocorre mediante um paradoxo. É pela diferença que se garante a igualdade. Essa percepção é reforçada pelas agências estatais, como explicita a coordenadora do PBQ:

Dentro desse foco, desse universo de 120 territórios, nós temos aí um quantitativo de 1340 comunidades quilombolas que são beneficiadas pelo programa, né. Essas 1340 comunidades são comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, ou seja, elas já têm, já possuem a sua carteira de identidade. Nós sabemos que o universo de comunidades quilombolas no Brasil é bem maior que isso, não passa de cinco mil, mas nós precisávamos focar nossa ação. Então, por isso, justifica a priorização nesses cinco estados, que é a maior quantidade de comunidades quilombolas certificadas. Territórios da cidadania, que é aquilo que eu coloquei pra você, são 120 territórios. Comunidades certificadas e tituladas, com os processos abertos no INCRA. Territórios com a integração das ações do programa. (Neuza,

abril de 2010)

A metáfora da carteira de identidade utilizada pela agente estatal corresponde ao nascimento civil do cidadão, que, no caso das comunidades quilombolas, é expresso pelos certificados e títulos de propriedade sobre seus territórios.

O status quilombola dá visibilidade às suas demandas aos gestores públicos. Como mostra a continuação da entrevistada anterior: ―A gente trabalha com um universo totalmente

invisível. Essa parcela da população, ela é invisível perante o poder público, ela é invisível perante a sociedade e ela é invisível perante a gestão pública”. (Neuza, abril de 2010).

A visibilidade é dada pelo fornecimento da carteira de identidade (certificação e titulação) aos novos cidadãos (os quilombolas). Assumir o estatuto quilombola é nascer socialmente para o Estado. Essa tendência é reforçada pela exigência, por parte das agências estatais, da apresentação de certificado ou título de posse sobre os territórios para participação nos processos de financiamento público das políticas públicas, ou seja, a construção de escolas, pontes, unidades de saúde, casas etc. Esse procedimento fortalece a ideia de que a cidadania se constrói pelo pertencimento ao território quilombola e não ao Estado-nação. Como colocado por um dos entrevistados que atua em um dos órgãos responsáveis pelas políticas aos quilombolas: Mas, a partir do momento que a comunidade é certificada, junto

vem a garantia de outras políticas. (Joel, abril de 2010).

O reconhecimento das comunidades de quilombos pelo Estado brasileiro está condicionado ao seu autorreconhecimento como quilombolas. Elas apenas existirão como entes políticos e jurídicos pelo autorreconhecimento. Sua inserção nas redes de serviços públicos se dá pelo mecanismo estatal do autorreconhecimento, o que nos leva às comunidades que não se reconhecem como remanescentes de quilombos ou ainda não dispõem do conhecimento necessário para demandar esse direito.