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A construção de uma política cultural em terras tropicais

Introdução

A Política Cultural como política pública e objeto de estudo tem uma história recente. Tanto a análise historiográfica quanto a prática de política pública têm como base o modelo de Estado interventor, que ganhou espaço a partir do início da década de 1930, em função do desgaste do modelo liberal até então dominante. É justamente como consequência da crise de 1929 que os Estados nacionais passaram a se municiar de instrumentos capazes de intervir na economia, muitas vezes controlando-a por completo, e, por conseguinte, intervir também em todos os outros setores que dizem respeito à relação entre o aparelho estatal e a sociedade. Daí o surgimento das chamadas políticas públicas ou políticas sociais, conforme o objetivo a ser atingido. A política cultural tem sua semente plantada nesse momento, de remodelação e de redefinição do papel do Estado perante a sociedade.

Se o momento de origem é esse, as particularidades de cada país onde se desenvolveu fizeram com que se demorasse pelo menos até os anos sessenta para que pudéssemos ter uma visão mais completa e definida do que essa política representaria para as sociedades às quais se dirigiu. No caso francês, paradigmático e modelar, conforme Philippe Urfalino, só podemos falar efetivamente numa política cultural a partir de 1959, com a nomeação de André Malraux ao recém-criado Ministério de Atividades Culturais (Ministère des Affaires

Culturelles), com o objetivo de tornar acessíveis a todos os franceses as grandes obras da

humanidade, particularmente as francesas, favorecer a criação de obras de arte e o aprimoramento do espírito artístico (Urfalino, 2004: 31-33).

Eduardo Nivón Bolán, analisando a experiência mexicana, estabelece a relação entre o populismo, desenvolvido nos anos trinta, particularmente no governo Lázaro Cárdenas (1934- 1940) e a produção artística dos muralistas, dentro de um claro processo de construção de uma identidade nacional em tempos de forte intervenção do Estado na sociedade e do fortalecimento do regime de partido único. Citando Octavio Paz, Bolán conclui que tal

projeto poderia ser resumido numa “estatização da estética artística” (Bolán, 2006: 13-17). Marilena Chauí, Antonio Candido, Lélia Abramo e Edélcio Mostaço, analisando a construção de uma política cultural no Brasil, indicam sua origem justamente nos anos trinta, quando a relação Estado/sociedade é redefinida em outras bases contrapostas à postura liberal até então predominante. Denominam a política cultural, em sua fase embrionária, como uma política social, no bojo de várias políticas com o mesmo sentido, ou seja, legitimar uma determinada estrutura política, no caso o Estado remodelado e interventor, perante a sociedade, atendendo demandas provenientes desta e construindo, através do atendimento dessas demandas, um novo pacto social, emoldurado por uma nova configuração de identidade nacional, na qual o Estado assume papel principal (Chauí, Candido, Abramo, Mostaço, 1985: 7-9).

Nesses dois casos, o mexicano e o brasileiro, a construção de uma política cultural, ainda que não colocada dessa forma, mas no bojo de um conjunto de políticas públicas ou políticas sociais, tiveram sua origem datada nos anos trinta, momento de redefinição dos Estados nacionais junto às sociedades que representavam: uma conjuntura marcada pela crise de 1929, pela ascensão dos regimes totalitários na Europa e pela fragilidade momentânea dos Estados Unidos da América. Assim, as políticas confirmaram o papel do Estado como interventor e regulador de todos os aspectos da vida social, criando um modelo administrativo centralizado, bem como formulando políticas e formas de intervenção que atravessaram décadas, esgotando-se somente nos anos noventa. Essas políticas desenvolveram-se dentro de um processo de construção de uma identidade nacional, com todas as contradições e diversidades próprias das sociedades latino-americanas.

Assim, o caso francês, analisado por Philippe Urfalino, pode ser considerado paradigmático, dada a autonomia concedida à área cultural, com o desenvolvimento de uma política pública específica para essa área, porém seguiu a dinâmica da sociedade francesa do pós-guerra e da IV República, em um momento de rearranjo das forças políticas internas e de redefinição das mesmas diante do trauma causado pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o colaboracionismo, do início do processo de libertação das colônias afro-asiáticas e da Guerra Fria, a exigir um redimensionamento do papel político da França no cenário internacional (Urfalino, 2004: 13-30). A nomeação de André Malraux, um intelectual com trajetória política na esquerda francesa, integrante do governo da Frente Popular entre 1936- 1938 e membro da resistência francesa durante a Segunda Guerra, porém, crítico do regime soviético, serviu como referência a essa necessidade de redefinição do papel político interno e externo da França.

Por outro lado, tais políticas culturais encontraram seus momentos de crise nos anos sessenta, tanto a francesa quanto a mexicana; o que não diz respeito ao caso brasileiro, pois nesse momento estava justamente em curso a construção de uma política cultural pelo Estado autoritário que se afirmava no cenário político nacional a partir de abril de 1964. Enquanto as idas e vindas da política brasileira, entre 1945 e 1964, fizeram que a construção de uma política cultural fosse sempre posta em segundo ou terceiro plano, nos casos mexicano e francês ocorreu um desgaste dessa proposta. Maio de 1968, na França, e o massacre de Tlatelolco, no México, também em 1968, foram momentos catárticos quando foram colocados em xeque justamente os fundamentos sobre os quais estavam assentadas a política e a estrutura estatal francesa e mexicana (Urfalino, 2004: 235-266; Bolán, 2006: 44-48). Com variações sensíveis, muitas vezes perdendo sua referência como uma política pública abrangente e totalizante, as políticas culturais prosseguiram nesses países, em linhas gerais até os anos noventa, quando os novos ventos neoliberais e a redefinição do papel dos Estados nacionais na nova ordem internacional surgida após 1989, provocaram seu fim ou mesmo sua continuidade agora num assumido segundo plano, mais subordinada aos limites estabelecidos pelas novas práticas liberalizantes e às condições criadas pelo mercado

Assim, cabe definir, para melhor situar nosso objeto de estudo, o que significou, no âmbito dessas políticas públicas, uma política cultural. Segundo Philippe Urfalino, toda política pública persegue objetivos gerais e complexos; seu aspecto instrumental é fundamentalmente comum, operacionalizando os objetivos e selecionando os recursos a serem alocados, independentemente do seu objeto. O que define, então, uma política pública cultural é justamente o conjunto de crenças e de concepções que se coloca entre seus meios e seus fins (Urfalino, 2004: 130). Assim, tal política afirma-se através de um discurso que indica a necessidade de se construir ou de se redefinir uma identidade, reconhecida pela sociedade. Esse discurso é operacionalizado por meio de medidas, regulamentos, atos administrativos e projetos culturais que, no seu conjunto, ensejam a construção de um amálgama de perspectivas e objetivos comuns, bem como de características que possam ser apontadas como componentes de uma dada identidade. Segundo Eduardo Nivón Bolán, dentro dessa perspectiva, a política cultural seria uma política regulatória, pois sua eficiência se basearia na capacidade dos que tomam decisões para mobilizar recursos humanos e econômicos, com o objetivo de garantir um desenvolvimento equitativo dos diversos agentes institucionais atuantes nessa área, bem como daqueles interessados nessas atividades culturais (Bolán, 2006: 63). Logo, o estudo de uma determinada política cultural comporta dois tipos de preocupação: a análise dos discursos que a embasam, em que podemos vislumbrar os

objetivos ideológicos e políticos que se encontram na sua elaboração (Chauí, Cândido, Abramo, Mostaço, 1985: 38-45) e o mapeamento do conjunto de medidas, regulamentos e projetos culturais que constituem sua prática e desvendam sua eficácia promovendo o contato do aparato estatal voltado para essa área com a sociedade que gera demandas nesse sentido. Segundo Lia Calabre:

Por uma política pública cultural estamos considerando o planejamento e a execução e um conjunto ordenado e coerente de preceitos e objetivos que orientam linhas de ação mais imediatas no campo da cultura. (...) A recuperação de uma política cultural levada a cabo por um determinado governo ou em um período da história de um país pode ser realizada através do mapeamento das ações do Estado no campo da cultura, ainda que este não as tenha elaborado ou reunido como um todo coerente, como uma política determinada. (Calabre, 2010: 11).

Discurso e prática, os dois elementos que norteiam a construção de uma política cultural, são colocados como objetos de análise para a compreensão da mesma, para sua historicização. A intervenção do Estado no campo cultural, em terras brasileiras, remonta às origens da formação do próprio Estado nacional, no início do século XIX; entretanto, a elaboração de uma política nacional de cultura só ocorrerá na segunda metade dos anos setenta, em pleno regime militar e dentro dos ditames de uma estrutura estatal autoritária. Entre esses dois momentos, a cultura brasileira, com suas práticas e representações, não passará incólume à ação estatal, quer seja através do apoio, quer seja através da censura e da repressão. Da mesma forma, a dialética do construir e compreender far-se-á presente em todo esse período, ora de maneira mais exacerbada, ora tão fugaz e subliminar que foge à percepção menos cuidadosa. Em função dessas características, a trajetória tem que ser delineada, considerando suas contradições e sua dialética, até para que possamos compreender como se constrói uma política cultural em tempos de arbítrio, na sufocada efervescência dos anos setenta.