• Nenhum resultado encontrado

Procurando atender os objetivos deste trabalho, consideramos política cultural como um conjunto de regras, regulamentos, propostas e projetos que procura construir uma intervenção sistemática na produção cultural de uma determinada sociedade, de forma seletiva

ou abrangente, legitimando a ação do Estado como regulador e interventor na ordem social, ao mesmo tempo em que busca consolidar uma determinada concepção de identidade nacional, que sirva aos interesses daqueles que se encontram no poder e seja aceita pela maior parte da sociedade à qual se dirige essa política. Assim compreendida, podemos aceitar como momentos-chave de construção de uma política cultural na história do Brasil somente o período 1937-1945, que abrange o Estado Novo, e o Regime Militar, particularmente o governo Ernesto Geisel (1974-1979), quando esses elementos acima enumerados se fizeram presentes.

Mesmo não se constituindo como uma política cultural, há momentos de intervenção do Estado na produção cultural que devem ser considerados para que possamos compreender como se desenvolve a ação estatal nessa área; bem como para que possamos diferenciar a construção de uma política cultural, de forma sistemática e colocada em plano principal na relação do Estado com a sociedade, desses momentos em que tal ação se fez de forma pontual e secundária.

A relação entre o Estado e a cultura na sociedade brasileira sempre foi de grande proximidade e interseções. Podemos considerar o primeiro momento na chegada da Corte portuguesa ao Brasil, em 1808, quando foram adotadas medidas que tinham como objetivo principal transformar o Rio de Janeiro no espaço apropriado para ser a sede do reino de Portugal e de seu império colonial. A pequena cidade portuária passou por reformas urbanas, com construção de palácios, calçamento de ruas, ampliação do sistema de esgoto e de fornecimento de água, além da criação de espaços de artes e ciências como os cursos superiores, a Biblioteca Real, o Jardim Botânico, o Observatório Astronômico, dentre outros (Malerba, 2000: 125-194; Botelho, 2000: 38-39). Algumas dessas medidas, como a criação dos cursos superiores, estendeu-se a outras cidades coloniais como Recife, Salvador e São Paulo, pois o objetivo era formar mão de obra especializada para o desempenho das funções que seriam necessárias à consolidação da monarquia e à administração do seu império colonial.

As medidas mais diretamente relacionadas à produção cultural chamam a atenção, ao percebermos o início de uma intervenção do Estado, naquele momento ainda em construção, nesse setor da vida social. A transferência da Corte portuguesa para o Brasil, particularmente para o Rio de Janeiro, implicou não só o transplante de todos os seus órgãos administrativos e políticos para as terras tropicais, mas também dos seus projetos culturais, que há muito animavam a dinastia Bragança. Aqui, ganharam importância a música erudita, tanto a de natureza sacra quanto a profana, as artes plásticas e a Biblioteca Real. D. João VI criou,

ainda, espaços de produção e de estudos na área musical, como a Capela Real, o Real Teatro de São Carlos e câmaras reais no Paço Real ou no palácio da Quinta da Boa Vista. Todos esses espaços possuíam seus próprios administradores, na qualidade de inspetores e destinavam-se não só ao treinamento de músicos para execução de peças musicais, como também à educação musical, à copiagem e à produção dessas mesmas peças. Destacaram-se, nesse cenário musical, o padre brasileiro José Maurício Nunes Garcia, o maior destaque na produção e na copiagem de obras sacras, e o compositor português Marcos Portugal, especializado no gênero operístico, dando destaque à produção musical profana (Lange, 1985: 374-383).

A transferência da Biblioteca Real transformou-se, por si só, numa epopeia à parte, tendo em vista a grandiosidade da mesma e as dificuldades próprias da travessia do Atlântico de um tesouro daquele porte. O transporte do acervo foi feito em três viagens e foi necessário todo um trabalho de preparação de infraestrutura para que a mesma pudesse ser guardada e preservada a contento num clima tropical. Inicialmente, grande parte do acervo foi guardada nas dependências do Hospital da Ordem Terceira do Carmo e uma menor parte, no Paço Real. Em 1813, foi construído um prédio próprio, onde antes se localizavam as catacumbas dos religiosos da Ordem Terceira do Carmo, ali reunindo todo o acervo e sendo o mesmo aberto à consulta pública após a sua organização definitiva, em 1814 (Schwarcz, Azevedo, Costa, 2002: 261-286). A epopeia que caracteriza a transferência da Real Biblioteca justifica-se pelo fato de, primeiramente, ser um verdadeiro tesouro, no que concerne às artes e às ciências e, em segundo lugar, de ser vista como um índice do processo civilizatório que a partir daquele momento se estabelecia no Brasil e que teria continuidade com a proclamação do Império. Quando das negociações envolvendo o reconhecimento da independência do Brasil por Portugal, com intermediação inglesa, D. Pedro I ofereceu, para a compra do acervo da Real Biblioteca, naquele momento já denominada Imperial Biblioteca, a quantia de oitocentos contos de réis, uma verdadeira fortuna (Schwarcz, Azevedo, Costa, 2002: 387-416). A permanência da biblioteca em terras brasileiras significava, pois, a continuidade de um projeto político identificado com a dinastia Bragança; também significava um marco no processo civilizatório que se iniciou com a transferência do Corte portuguesa para o Brasil em 1808.

Outro aspecto relevante a ser destacado dentre as intervenções realizadas por D. João foi seu apoio às artes plásticas, representado pela vinda de uma missão artística francesa ao Brasil em 1816. Aproveitando-se da perda de status de vários artistas na França, em decorrência da derrota de Napoleão Bonaparte e do fim do seu governo, assessores de D. João convidaram vários deles para vir ao Brasil, com o objetivo principal de construir aqui uma

Real Academia de Belas Artes. Dentre os que aceitaram tal empreitada destacaram-se Joachim Lebreton (ex-secretário perpétuo da classe de belas artes do Instituto de França), Nicolas-Antoine Taunay (pintor do mesmo Instituto), Auguste-Marie Taunay (escultor), Jean- Baptiste Debret (pintor de história e decoração) e Grandjean de Montigny (arquiteto); destes, apenas Nicolas-Antoine Taunay permaneceu no Brasil após o retorno de D. João a Portugal, integrando, na Corte, o círculo mais próximo ao novo Imperador (Schwarcz, 2008: 197-1998). Isso é explicado porque o projeto de constituição de uma Real Academia de Belas Artes demorou a sair, tendo sido criada em 1816, por decreto real, somente a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, o que não atendia às expectativas dos artistas imigrados. Só em 23 de novembro de 1820, também por decreto real, a referida Escola Real foi transformada em Academia Real de Belas Artes, consolidando assim a proposta original e constituindo-se em mais um marco no processo civilizatório desencadeado com a transferência da Corte (Schwarcz, 2008: 234-235). Formados e influenciados dentro dos parâmetros e dos princípios do neoclassicismo, dominante no cenário europeu desde o fim do século XIX, os artistas franceses demoraram a se integrar na sociedade brasileira, desenvolvendo seus trabalhos mais com interesse científico, de observadores. Com o passar dos anos, alguns conseguiram adequar-se à exótica sociedade tropical, pois estranhavam, e muito, os costumes e os hábitos das gentes que aqui habitavam, assim como estranhavam a luminosidade e a exuberância das cores, da fauna e da flora, tudo se constituindo para eles num cenário a ser desvendado, conhecido, para que pudessem, enfim, produzir.

Estabelecidas as bases do processo civilizatório, com a independência e a proclamação do Império, D. Pedro I deu continuidade aos esforços de seu pai, D. João. Tratava-se, pois, de transportar para o novo Império os marcos civilizatórios europeus, consolidando a instalação de uma corte europeia em terras brasileiras, bem como de suas instituições e de seus princípios legais, religiosos e científicos. O Império brasileiro foi continuidade e não inovação, mantendo o projeto cultural de caráter civilizatório referenciado na cultura européia, embora não fosse possível ignorar a realidade cultural brasileira que todos os dias invadia os espaços civilizados onde a Corte se refugiava. Foi preciso a renúncia do imperador e a instauração da Regência, em 1831, para ter início um processo de absorção lenta da cultura que se produzia nas ruas e se fazia presente nas casas grandes e nas senzalas, nos sobrados e nos mocambos.

Durante a Regência (1831-1840) foram criadas três instituições de grande importância que juntamente com a Imperial Biblioteca e a Imperial Academia de Belas Artes consolidaram o processo civilizatório desejado pelo Império: o Imperial Colégio Pedro II, o

Arquivo Público e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O Imperial Colégio de Pedro II, criado por decreto de 2 de dezembro de 1837, data de aniversário do jovem imperador, sob inspiração do ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, teria como objetivo servir de inspiração aos demais estabelecimentos de ensino secundário existentes no país, bem como formar uma elite que teria acesso aos cursos superiores e aos altos cargos da burocracia imperial. O Arquivo Público, criado em 2 de janeiro de 1838, subordinado à Secretaria do Império, teria como objetivo sistematizar a coleta, a guarda e a preservação de documentos e informações necessários ao bom desempenho da administração imperial, obedecendo a um processo moderno, inspirado no arquivo público francês, diferente daquele adotado pela prática arquivística portuguesa. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 21 de outubro de 1838, teve como modelo o Instituto Histórico francês e seria o principal estimulador de estudos sobre aspectos históricos e geográficos brasileiros, construindo um mosaico que, arrumado convenientemente, formularia nossos primeiros ideais de brasilidade, de identidade nacional (Neves, Machado, 1999: 258-269).71

O Segundo Reinado, entre 1840 e 1889, aprofundou a presença do Estado no campo das atividades culturais mediante uma série de intervenções e de apoios um tanto quanto desconexos, mas cujo objetivo principal foi o de situar o Império brasileiro no campo das nações civilizadas, um representante da cultura europeia na América. Assim, D. Pedro II, pessoalmente ou através de ordens religiosas, de sociedades comerciais ou de instituições do Estado e particulares, apoiou e promoveu artistas, concedendo-lhes bolsas de estudos, financiando espetáculos e promovendo a presença brasileira em exposições realizadas na Europa e nos Estados Unidos. Pessoalmente, o Imperador participou ativamente de exames realizados para ingresso de professores e para acesso às cátedras do Colégio Pedro II, estimulou os estudos e pesquisas nos cursos superiores, inclusive, convidando especialistas estrangeiros nas áreas de medicina e engenharia para que ministrassem cursos e formassem pesquisadores. No campo das artes plásticas, destacou-se seu apoio à Imperial Academia de Belas Artes e, no campo da música erudita, a fundação do Conservatório Nacional de Música, em 1848, o qual se transformaria, em 1857, na Imperial Academia de Música e Ópera Nacional (Lange, 1985: 389-396). A atuação do Imperador no campo das ciências e das artes foi reconhecida não só no Brasil como nos grandes centros cosmopolitas europeus e norte- americanos, sendo objeto de admiração (Queiroz, 2010: 95-110; Schwarcz, 1998: 125-157).

71 Sobre o IHGB, cf. tb. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 5 – 27.

Durante o segundo reinado, o Rio de Janeiro tornou-se a capital cultural da América do Sul, os cursos superiores desenvolveram-se e os artistas brasileiros foram consagrados no exterior. Consolidou-se uma imagem do país em que a cultura européia aparecia como hegemônica contrapondo-se a uma natureza exuberante, diversificada e rica, onde se destacava, pela submissão, o indígena, servindo como fundamento da identidade nacional (Mello e Souza, 1985: 343-355). Colaborando com essa construção idealista, no campo das artes plásticas, destacaram-se os pintores Pedro Américo e Vitor Meirelles (Barata, 1985: 409-424), sempre desenvolvendo temas referentes à história brasileira e às guerras pátrias e, no campo da música erudita, o compositor Antonio Carlos Gomes, autor de óperas aclamadas na Europa, seguindo um estilo wagneriano (Lange, 1985: 400-406). No decorrer do longo reinado de D. Pedro II, o incentivo às artes e à ciência tinha por objetivo situar o Império brasileiro entre as nações civilizadas e, por meio da concessão de bolsas a artistas e cientistas para estudos no exterior e da participação nos salões e nas exposições realizadas nos grandes centros, divulgar a imagem de um país exótico, porém integrante do processo civilizatório cuja referência era a cultura europeia. Assim, éramos originais, pois estávamos afastados dos grandes centros da cultura, em uma terra exótica e exuberante; porém, ao mesmo tempo, reproduzíamos valores e padrões estéticos europeus, afirmando a supremacia do homem e da cultura sobre a natureza.

Tais valores foram perpetuados na primeira fase do período republicano, influenciados por um cientificismo caboclo que apresentava a natureza como uma fera a ser domada e o homem brasileiro como um modelo a ser esculpido pelas duras ferramentas do racionalismo científico. A recusa aos elementos característicos dos tipos populares, à cultura indígena e à africana, somava-se à orientação liberal que preconizava a arte como mercadoria. Nesse mesmo período, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, o advento do cinema e do teatro popular acabou por fortalecer a ideia de consumo e diversão como parâmetros para a produção artística da época, além de aprofundar a separação existente entre cultura erudita, destinada ao consumo das elites, e cultura popular, voltada para o consumo dos segmentos populares ou produzida por estes mesmos segmentos. Quanto à intervenção do Estado na área cultural, predominaram ações de natureza educativa e científica: as instituições artísticas criadas durante o Império foram colocadas a serviço de um racionalismo científico e republicano, em moldes liberais. Por outro lado, o Império foi apresentado como símbolo de atraso cultural, pela manutenção do vínculo com a monarquia portuguesa e pela ligação extrema com a Igreja Católica e, consequentemente, com o período colonial. Destaca- se, pois, uma produção literária na qual o Naturalismo e o Parnasianismo foram os estilos

consagrados e a cultura bacharelesca, que faz questão de determinar a separação entre o erudito e o popular, reservando ao primeiro os espaços civilizados e, ao segundo, às manifestações populares, o atraso e a barbárie (Bosi, 1985: 293-319). Ironia do destino, foi justamente no campo da cultura popular que houve maior desenvolvimento das práticas culturais, que acabariam, mais à frente, por se tornar fundamentos da brasilidade, o que ocorreu, por exemplo, com o samba.72

Na década de 1920, as contradições emergiram com força, destacando-se a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922. A economia cafeeira, de base agroexportadora, possibilitara o crescimento do mercado interno, uma relativa urbanização e o crescimento da classe média urbana; nos grandes centros, aparecia uma classe operária que se organizava em sindicatos, adotando ideologias como o anarquismo e o socialismo; ao mesmo tempo, um empresariado industrial exigia maior intervenção do Estado na economia, contrariando os interesses dos grandes exportadores que desejavam manter o livre comércio e a tímida presença estatal no setor. A produção cultural acompanhou essa tendência, realizando crítica às produções literárias parnasianas, tidas como excessivamente referenciadas na cultura europeia, e à produção musical dos grandes salões da elite política radicada no Rio de Janeiro.73 Temáticas nacionalistas se desenvolveram: a preocupação com o homem brasileiro e com a nossa identidade nacional, uma nova forma de se ver a cultura popular, tudo isso enriquecido pela importação de técnicas e de propostas estéticas estrangeiras de vanguarda, o que preparou o terreno para o desenvolvimento do modernismo brasileiro. Toda essa conjuntura, somada à crise de 1929 e às pressões da sociedade para a efetivação de políticas públicas, acabou por redefinir o papel do Estado, como interventor, uma tendência que se consolidou a partir de 1930.

72 Sobre o desenvolvimento do samba como estilo musical genuinamente brasileiro, cf. VIANNA, Hermano. O

Mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor: Ed. UFRJ, 1995.

73 As transformações ocorridas na produção intelectual, que acabaram por produzir a base sobre a qual se erigiu

o movimento modernista, podem ser verificadas com mais atenção em SEVCENKO, Nicolau. Literatura como

missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 25-119;

e MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 6 ed. São Paulo: Ática, 1990, p. 17- 51; MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979, p. 1-68.