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Desde 1967, um grupo de cineastas paulistas vinha desenvolvendo formas alternativas de produção, enfocando temas considerados “malditos” pela cinematografia nacional, como a prostituição, a marginalidade, o lixo social gerado pelas grandes cidades e a corrupção de valores. O conjunto dessas produções recebeu o nome de cinema marginal.55 Mais do que a temática abordada, destacava-se o cinema marginal pela técnica pobre em recursos materiais e pela estética da agressividade. Suas personagens principais são sujeitos sem direcionamento, amorais ou em constante processo de autodestruição ou de autoconhecimento. Nada está pronto e acabado, tudo está em transformação. Permeando essa extrema exposição do ego de suas personagens principais está a violência cotidiana, registrando a sociedade brasileira daquela época como o paraíso da violência política, racial e sexual. Essa produção, no entanto, iniciou-se com um relacionamento profícuo com o Cinema Novo: Rogério Sganzerla, principalmente, admirava as produções cinemanovistas, tendo acompanhado sua trajetória e adotado certos padrões estéticos e temáticos desse movimento, embora a produção de seu primeiro longa-metragem, O Bandido da Luz Vermelha, acabasse por provocar um distanciamento dos cinemanovistas, conforme relata Geraldo Veloso:

O filme (O Bandido da luz vermelha) cai com enorme impacto sobre a comunidade cinematográfica. A inesquecível sessão na cabine da Líder com todo o Cinema Novo presente, vai desencadear uma série de reservas mais ou menos veladas, a meu ver causadas pelos ciúmes dos resultados fantasticamente criativos alcançados por Rogério em seu filme. Ferido, Rogério se recolhe e procura continuar seu trabalho em esquemas bastante pessoais. Em torno dele vai começar a surgir o movimento da Boca do Lixo paulista. (Ramos, F., 1987: 387).

Na realidade, explicações de caráter pessoal à parte, o filme de Rogério Sganzerla mexeu profundamente com as perspectivas então traçadas pelos cineastas cinemanovistas. A conquista do mercado, ponto principal desde 1966, transformara as bases estéticas e temáticas sobre as quais o movimento se construíra. O cinema marginal em gestação colocava-se na incômoda posição do filho bastardo: assumira posturas nitidamente identificadas com o Cinema Novo nas suas origens, radicalizara as temáticas abordadas e urbanizara o seu discurso, conferindo à modernidade e às transformações culturais em curso o caráter de

55 Para uma análise mais aprofundada sobre o cinema marginal brasileiro, cf. RAMOS, Fernão. Cinema

Marginal (1968-1973): A Representação em seu Limite. São Paulo: Brasiliense/Embrafilme/Minc, 1987;

alienantes e desagregadoras. Em suma, mostrava aos cineastas cinemanovistas o caminho de espinhos que haviam escolhido no afã de conquistar os míticos público e mercado. Confrontados a um autêntico retrato de Dorian Gray, os cinemanovistas viraram-lhe o rosto e adotaram uma postura de enfrentamento. O confronto entre Cinema Novo e cinema

marginal, portanto, foi algo mais do que um simples confronto de gerações. Constituiu-se

num verdadeiro confronto de ideias, em que o mercado estava presente não como um espaço a ser disputado, mas como um conjunto de condições e regras a ser refutado ou aceito.

Dentro desse quadro, a produção de Câncer pode ser vista como um ponto limite, em que Glauber Rocha exercita o que haveria de marginal dentro do Cinema Novo. A temática nitidamente urbana e de classe média, prende-se a um casal em crise, em torno do qual giram as discussões sobre sexo, drogas e alienação, assuntos tão caros aos anos sessenta, que representavam aqui uma digressão particular, devidamente transformada em película, como se o autor quisesse demonstrar uma crise interna que o dividia profundamente entre aquele que optou pela conquista do mercado (em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro) e aquele que procurava manter-se livre para explorar novas formas de linguagem e de veiculação de filmes (em Câncer). De qualquer forma, Glauber Rocha e os demais cinemanovistas situavam-se, no final dos anos sessenta, ainda dentro da linha autoral, já reconhecida no mercado cinematográfico internacional e reservada principalmente à safra de diretores europeus, principalmente àquela vinculada ao neorrealismo italiano e à Nouvelle

Vague francesa. Já os representantes do cinema marginal vinculavam-se às novas

experimentações em curso, a uma linguagem agressiva e urbana, antimodernizante, até porque demonstrava os efeitos da modernidade: o lixo e a marginalidade. Por trás de tudo, obviamente, o “espírito da época”, conforme nos lembra Ismail Xavier:

(...) Por outro lado, a política dominante que marcava o debate cultural inseria as rupturas estéticas dentro de um referencial que incluía os movimentos sociais, em particular os que atestavam a divisão aguda da sociedade no conflito armado. Tal conflito, como a própria produção cultural, se alimentou do impulso de uma juventude pouco antes ainda absorvida nos debates universitários. Juventude que assumiu aquela conjuntura do país com um desejo de cidadania, de participação muito peculiar, responsável pelo que se tem a posteriori observado como uma precipitação que se desdobrou em duras experiências que, no plano político-militar não permitiram, para muitos, uma segunda chance. (Xavier, 1993: 267-268).

Não podemos descartar, portanto, a conjuntura em que se desdobrou o debate entre Cinema Novo e cinema marginal (sarcasticamente apelidado por Glauber Rocha de udigrudi, derivado de underground), no momento, justamente, em que expoentes da cultura de

contestação dos anos sessenta optavam entre a fuga ou o confronto armado com o regime militar, entre a adaptação à modernização em curso ou a resistência in extremis às regras do jogo. O cinema marginal representou a adoção de uma postura mais radicalizada, tanto estética quanto tematicamente, explorando o submundo da modernidade e veiculando em imagens a violência crua daqueles anos. Vale ressaltar que ambos teriam atrás de si o

Leviatã, devidamente engordado pelo Ato Institucional n° 5.

A própria postura dos intelectuais cinemanovistas, nesse mesmo período, sofreu algumas modificações. Após o profícuo período em que produziram obras que tiveram relativa aceitação de público e, inclusive, um grande sucesso com Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, os cineastas encontravam-se tolhidos em sua criatividade pela presença sufocante do Estado que censurava e prendia. A saída para estes cineastas foi o apelo às formas alegóricas, enfocando situações que diziam respeito às profundas questões que assolavam o país, em que as personagens representavam não indivíduos determinados, mas estereótipos que se confrontavam, se reconheciam e se questionavam. Representativos desta safra são os filmes Pindorama, de Arnaldo Jabor, Quando o carnaval chegar, de Carlos Diegues e Quem é Beta? (Pas de violence entre nous), de Nelson Pereira dos Santos. Estas produções têm em comum a abordagem de uma ideia de Brasil entremeada por personagens que se colocam como porta-vozes (declaradamente ou não) dos anseios e das perspectivas dos autores, diante de um país em profundas transformações.

No cinema, o final da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970 também configuraram uma crise estética e política. Cercado pela indústria cinematográfica norte-americana – embora naquele momento Hollywood também não vivesse seus melhores dias – e pela tendência mais intelectualizada dos realizadores ligados ao Cinema Novo, o cinema brasileiro dependia cada vez mais do apoio oficial para realizar filmes que fossem além da demanda por lazer, marca do gosto popular pelo cinema. O Cinema Novo tinha conseguido um reconhecimento inédito para o cinema brasileiro, consagrado em festivais considerados artísticos como Veneza e Cannes, mas carecia de uma penetração maior no público mais amplo da classe média no Brasil, embora agradasse a plateias estudantis e intelectualizadas. (Napolitano, 2001: 112).

As produções citadas inserem-se como conjunto na crítica ao ufanismo próprio da época. O que poderia representar escapismo (e em Pindorama e em Quem é Beta? esta perspectiva parece sempre estar muito presente), aparece na verdade como contraponto crítico à modernização em curso. Em Quando o carnaval chegar, Carlos Diegues retoma a chanchada dos anos cinquenta como paradigma para se entender uma sociedade inteiramente entristecida. É marcante a cena em que Chico Buarque canta a música título do filme,

caminhando entre pessoas desanimadas, adormecidas, entediadas, completamente abandonadas à sua solidão e à sua tristeza. Mesmo numa época de repressão e depressão, os artistas colocavam-se na rua e resistiam, com a sua criatividade, à espera de dias melhores, como bem assinala José Mário Ortiz Ramos:

(...) Trabalhando com cantores famosos da música popular, como Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia, o diretor vai recuperar o legado da Atlântida e fundi-lo com inquietações políticas, como a do papel do intelectual numa conjuntura política desfavorável. O ludismo das chanchadas é injetado num tipo de cinema herdado do período anterior, onde a veiculação de mensagem através da obra ocupa importante lugar. Glauber Rocha, com seu estilo, define esse filme de Cacá como “a refilmagem de Cantando na chuva, com um roteiro cepecista de Brecht e o estilo ‘corte e costura’ do Cinema Novo”. (Ramos, J. in Ramos, F., 1987: 403).

Essa fase alegórica representou, portanto, a busca de uma nova forma de expressão que se contrapusesse às regras estabelecidas pelo mercado e, mais propriamente ainda, pelo Estado autoritário. Ocupar-se de seu objeto preferencial, o Brasil, no momento em que as bandeiras nacionalistas - contaminadas por um ufanismo modernizante do tipo “ame-o ou deixe-o” - encontravam-se na ordem do dia, seria tarefa das mais difíceis para os cinemanovistas. Colocavam-se, assim, num campo de reflexão oscilando entre “o elogio à modernização, por sua força dissolvente de um patriarcalismo de feição rural, e a crítica a ela, por força do caráter ‘sem limite’ deste mesmo poder de dissolvência barbarizante no seu atropelo a tudo” (Xavier, 1993: 268-269). O principal arquiteto desta conjuntura, o Estado autoritário, porém, já vinha formulando uma política para o setor, o que estreitaria, ainda mais, o espaço de sobrevivência reservado aos cinemanovistas, caso desejassem realmente preservar a sua independência política.

A resposta veio na forma de três produções que estabelecerão com o Estado um relacionamento um tanto quanto problemático, cada qual na sua linha de atuação: Os

Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade; São Bernardo, de Leon Hirszman; e Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor.

Em Os Inconfidentes, que será mais detidamente analisado no capítulo IV deste trabalho, Joaquim Pedro de Andrade dialogou com o Estado e sua política cultural. Afinal, o ministro da Educação e Cultura estabelecera um programa de incentivo e apoio às produções cinematográficas que tivessem um caráter histórico (abordando a vida de grandes vultos da

nossa história, fatos marcantes etc.)56 e também às adaptações literárias, procurando valorizar a cultura brasileira.57

Em São Bernardo, de Leon Hirszman, o problema desenvolveu-se noutro sentido. Partindo de uma adaptação da obra de Graciliano Ramos, o cineasta trouxe à tela seu realismo seco e refez a construção literária a partir das imagens. A narrativa cinematográfica centra-se na primeira pessoa do singular, no caso o fazendeiro Paulo Honório, realizando um discurso de desconstrução, colocando-o como o principal artífice de um sistema capitalista que acabará por coisificá-lo. Trata-se, de forma mais abrangente, de uma crítica ao próprio sistema que mercantiliza pessoas e termina por prender seus próprios agentes nas teias que eles mesmos teceram. O universo construído por Paulo Honório, que o leva à acumulação de riquezas, é o mesmo que termina por destruí-lo, daí a divagação de caráter psicológico, acompanhada por uma narrativa fílmica que mostra um mundo em decomposição, aliado a uma personalidade que se encontra num processo de autodestruição. Em virtude da temática abordada, uma crítica direta à reificação promovida pelo desenvolvimento das relações capitalistas em todos os sentidos, o filme foi censurado, sendo liberado para exibição somente no final de 1973, após inúmeras pressões, inclusive por parte da Igreja Católica, entidade que o agraciou com o prêmio Margarida de Prata, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, em 1972. Estranhamente, nesse mesmo ano, o filme recebera da Embrafilme a premiação de melhor adaptação literária realizada, o que não impediu a sua interdição (Ramos, J., 1983: 105-107).

Já Arnaldo Jabor, com Toda nudez será castigada, deu início a uma fase de conquista de público que marcaria as próximas produções do Cinema Novo. A escolha de uma obra de Nelson Rodrigues para transpô-la à tela já fazia parte de certa tradição cinemanovista, tendo como antecedentes O Boca de Ouro, de Nelson Pereira dos Santos, realizado em 1962, e A

Falecida, de Leon Hirszman, realizado em 1965. No momento atual, representaria mais uma

oportunidade de consolidar um diálogo com o público, tão desejado pelos cinemanovistas, misturando ingredientes que já faziam sucesso em outros gêneros como nas pornochanchadas e nos filmes eróticos em geral, mas dando-lhes, contudo, um tratamento mais refinado, ao construir personagens dilacerados pela sua própria sexualidade, pelas suas escolhas, pelas regras familiares e sociais que eles mesmos sustentam, acabando por se tornarem suas

56 Cf. O filme histórico brasileiro. In Revista Filme Cultura, INC/MEC, Rio de Janeiro, n. 23, jan. – fev. 1973, p.

32-35.

57 Sobre o incentivo a produções de caráter histórico, cf. XAVIER, Ismail. Do Golpe Militar à Abertura: a

Resposta do Cinema de Autor. In XAVIER, Ismail, PEREIRA, Miguel, BERNARDET, Jean-Claude. O desafio

do cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.27-31; e RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais (anos 50, 60, 70). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p.70-74.

principais vítimas. Como não poderia deixar de ser, o filme alcançou um grande sucesso de público:

Toda nudez será castigada é uma explosão de público, não deixando ninguém indiferente diante da exuberante e sofrida Geni (Darlene Glória). Mergulhando sem medo no universo de Nelson Rodrigues, Jabor carrega nas cores quentes de cenários e fotografia, derrama uma trilha sonora que vai da força de Astor Piazzola ao romantismo de Roberto Carlos, e principalmente consegue extrair de Darlene uma visceral e antológica interpretação. O filme causa impacto, no mínimo por abordar sem pudores os loucos desejos do viúvo Herculano (Paulo Porto) pela prostituta, e provoca a costumeira ação da censura, que o interdita juntamente com outros nove filmes em junho de 1973. (Ramos, J. in Ramos, F., 1987: 405).

Tem-se, então, três obras cinemanovistas demarcando três formas diferentes de abordagem das regras instituídas pelo Estado autoritário e respaldadas pelo mercado cinematográfico. Todas as três enfrentaram problemas com a censura e, ainda em comum, abriram a possibilidade de um novo relacionamento entre Cinema Novo e público, com o aproveitamento ao máximo das brechas abertas pelas próprias medidas tomadas pelo regime para a construção de sua política cultural. À abordagem de vultos e fatos históricos consagrados pela história oficial, responderam com a autocrítica e com o desvendamento histórico, colocando o tempo histórico e sua interpretação como personagens principais. À adaptação literária, voltada à valorização da cultura brasileira, responderam com o realismo de Graciliano Ramos e sua crítica implícita ao sistema capitalista que a tudo reifica e destrói. Às condições estabelecidas pelo próprio mercado, com o sexo como mercadoria fácil e os preconceitos trabalhados como fatores risíveis, responderam com o drama nelsonrodrigueano. Abordaram o dilaceramento dos valores de uma sociedade hipócrita, que não pode enxergar sua própria sexualidade já que ela representa uma libertação temida, porque destruidora de todo um mundo patriarcal e arcaico que se construiu às custas de sacrifícios alheios. Em suma, os autores marcaram o seu campo e estabeleceram as regras do jogo. Dar início ao diálogo seria questão de tempo.

A transição estética vivida pelo Cinema Novo a partir de 1968 teve repercussões iguais no plano da política cultural formulada pelos expoentes desse movimento, já no início dos anos setenta. Convém destacar a enorme dificuldade existente quanto a um possível diálogo entre o Estado autoritário, devidamente superdimensionado a partir do Ato Institucional n° 5. Os cineastas vinculados ao Cinema Novo representavam no campo cinematográfico a oposição política e cultural mais articulada em relação ao regime militar; identificavam-se com as propostas nacionalistas e de esquerda características do período pré-

1964, criticavam a criação do INC e veiculavam no exterior, através de mostras e festivais, uma imagem de Brasil que em nada agradava aos patronos do desenvolvimento forçado a qualquer custo. Por essas e outras razões, seria quase impensável uma aproximação entre esse Estado autoritário e os cinemanovistas, mas isso acabou acontecendo e, para um melhor entendimento desse processo, alguns aspectos, então, devem ser ressaltados.

Primeiramente, a expansão do mercado consumidor na área cinematográfica beneficiando o produto nacional, no rastro da reserva de mercado, não veio acompanhada do aumento da qualidade da produção veiculada. Dominavam a faixa reservada às produções nacionais as comédias eróticas - indevidamente chamadas pornochanchadas - quando não filmes pornográficos e de baixa qualidade de produção. Restava, portanto, buscar uma linguagem que juntasse preocupações mercadológicas com discurso nacionalista, qualidade de produção e facilidade de difusão no exterior. Somente um segmento da cinematografia brasileira estava apto a formular um projeto dessa magnitude: os cinemanovistas. Outro ponto a ser ressaltado é o inesperado diálogo entre Estado autoritário e Cinema Novo. Muito embora não se tivesse realizado dentro dos parâmetros regulares, na medida em que ambos mantinham uma equidistância salutar, é justamente por meio dos filmes produzidos na época e de algumas afirmações intempestivas feitas por Glauber Rocha, principalmente, que o diálogo viria a se estabelecer. Para exemplo, podemos citar a matéria escrita por Glauber Rocha no jornal O Pasquim, em janeiro de 1970, logo após a criação da Embrafilme, denominada Uma Carta para o Ministro Passarinho:

(...) O funcionamento ideal da indústria cinematográfica moderna é a democratização do investimento e a estatização do mercado. A medida é unitária na Europa desde os países socialistas até os países capitalistas, ou seja: nada de Empresa Produtora. Deve ter crédito pessoal aos produtores, para eles fazerem o filme que quiserem. Agora, a distribuição deve ser do Estado ou controlada pelo Estado se o Estado for nacionalista. Aí, como diria o pessoal pra frente, é ferro no concorrente estrangeiro. Agora, pra exportar não deve haver organismo estatal, porque os distribuidores europeus e americanos não gostam de negociar com o Estado. Exportadora estatal de filmes só funciona com país socialista.58

Sintomática é a preocupação de Glauber Rocha com dois aspectos citados claramente: a intervenção do Estado no setor da produção e a desejada intervenção na área de exportação e representação em mostras e festivais internacionais. Em ambos encontra-se a criatividade e a força do Cinema Novo, como movimento que aglutinava cineastas extremamente críticos à política cultural, que estava sendo construída por este mesmo Estado. Glauber Rocha

imaginou um Estado neutro, que controlasse a distribuição, calcanhar de Aquiles do cinema brasileiro, afastando o produto estrangeiro, ao criar dificuldades para a sua veiculação (a tão desejada estatização do setor) e procurou mexer com os brios do ministro ao colocar em xeque o nacionalismo tão difundido pelo regime que ele representava: só seria nacionalista o Estado que interviesse na distribuição. O cineasta chegou a propor a nomeação de um

economista ideal para a direção do INC,59

Em depoimento prestado a Silvia Oroz (Barbosa, 1993), o produtor Jarbas Barbosa, responsável pela produção de vários filmes do Cinema Novo, narra uma situação que bem pode ilustrar a difícil aproximação entre o Cinema Novo e o Estado autoritário:

acreditando, assim, ter encontrado a fórmula para a criação de uma política cultural cinematográfica neutra, num momento de trevas e sombras.

(...) Bom, fomos pedir o aumento dos dias de obrigatoriedade. Aqui vem uma coisa extraordinária. Quando entramos no gabinete do ministro Passarinho, Barreto, que entrou na frente, disse: “Ministro, está aqui a pessoa com quem o senhor queria conversar. Nós trouxemos Glauber Rocha,”

(...)

Colocamos para o Passarinho a necessidade do desenvolvimento industrial, que seria possível com o aumento de dias. A conversa, porém, não evoluía; ficava por ali, parada. Num determinado momento, o Glauber - que não defendia o mercado popular porque isso não lhe interessava mas tinha ido conosco para prestigiar - saiu do seu sofá, sentou no braço da poltrona do ministro e conversou cinco minutos com ele. Não dava para ouvir o que eles falavam, mas o Glauber começou a falar do processo cultural cinematográfico brasileiro, da sua importância, da atração do cinema e da obrigatoriedade maior. Depois de cinco minutos, o ministro se convenceu e passou de