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A conhecida entrevista de Antonio Cícero de Souza, o Ciço, é rica de referências a um saber e uma aprendizagem populares:

[...] nisso tudo tem uma educação, não tem? Pode não ter um estudo. Um tipo de estudo pode ser que não tenha. Mas se ele näo sabia e ficou sabendo, é porque no acontecido tinha uma liçäo escondida. Näo é uma escola; não tem um professor, assim, na frente, com o nome professor. Näo tem. Você vai juntando e no fim dá o saber do roceiro, que é um tudo que a gente precisa saber para viver a vida conforme Deus é serv-ido.' (BRANDÃO, 1982, p. 166).

Um sugestivo trecho de uma entrevista que realizamos com um operário da regiäo industrial de Contagem traz outra ímportante referência ao saber das classes trabalhadoras:

6 Ainda, segundo as mesmas autoras: ―... os conteúdos das relações de ensino-aprendizagem não se limitam

àqueles referentes à reprodução maaterial dos trabalhadores (saberres empíricos). Têm grande importância, no interior da pequena produção, as representações de toda espécie que os camponeeses fazem de suas condições de existência: representação do sagrado, da tradição, do destino, as quais compõem, no seu conjunto, a ideologia do campesinato, responsável pela reprodução, ao nível simbólico, do conteúdo mesmo desses tipo de

Uma coisa que me manteve na firma por muito tempo foi eu saber produzir. E de eu inventar formas diferentes para produzir mais depressa, pra soltar mais serviço sair mais perfeito ...essas coisas assim. Inclusive, teve uma peça da Itaipu, um mancal; mancal é onde apoia o eixo da turbina ... Esse mancal, não teve jeito de fazer ele na mecânica Douglas, não teve jeito de fazer na mandrilhadora... Eu fiz isso no torno vertical. E isso foi um troço que eles vibraram. Foi um troço muito complicado ... Eu tive que inventar umas ferramentas para trabalhar do lado de dentro da peça, eu tive que colocar espelho pra poder enxergar a ferramenta lá dentro com facho de luz, que era um troço assim meio gambiarrado. (Roberto – torneiro/educador). Os caminhos pelos quais passa a relação entre o saber e o poder na produção apresentam um elevado grau de complexidade. Há uma dimensão em que a questão do conteúdo do saber se coloca efetivamente, como valor estratégico, onde a posse desse conhecimento é um dado concreto no processo de luta que reveste a dominação do trabalho. De outro lado, há também a dimensão formal, traduzida pela hierarquia da fábrica, sem que haja necessariamente a posse do saber ou a capacidade de produzir, da parte daqueles que ocupam as posições intermediarias de chefe, de encarregado, ou inesmo de técnico. Outro trecho de entrevista apresenta a seguinte experiência de produção de conhecimento pelo operário, sobre a forma de desenvolver o seu trabalho:

Sempre aconteceu comigo. Uma vez, pra fazer uns tambor lá, eu até briguei com um sujeito lá um tal de Joaquim que era chefe de ferramentaria. . . Porque a gente fazia uns tambor, esses tambor de ponte rolante, que ele tem umas roscas, esquerda de um lado e direita do outro, porque um enrola e outro desenrola o cabo, para descer o cabo e subir. Aproveita o mesmo redutor para fazer os dois movimentos. É um cilindro. E o cabo de aço vai em cima dele. Então, você coloca o cabo, uma rosca direita e outra esquerda, pra poder subir e descer. E a luneta, que ele é comprido e então ele tem de ter lum apoio; luneta é uma coisa que apoia. Então eu bolei um rolamento, para poder pegar ele pra trabalhar mais fácil. Bolei, fiz ela toda, né? E afinal de contas, quando saiu o desenho lá, assinou no desenho um cara lá, eu fui lá discutir com ele e aí ficou por isso mesmo. Acabou que ele é que ficou dono da idéia. (Roberto – torneiro/educador).

Conhecimento adquirido nas práticas cotidianas, ou criatividade que se manifesta conjunturalmente, tudo faz parte de uma totalidade, que é o saber produzido e processado fora dos locais ou canais oficializados e legitimados pelo senso comum e pela ideologia dominante, com sua específica e diferenciada valoração estratégica. Da mesma forma que se delimitam com o rótulo de ciência, de técnica ou de educação, áreas e regiões de poder associadas aos processos de produção e de circulação do conhecimento, é preciso notar que este processo se estende para fora e para além da produção e das relações de trabalho. O senso comum, as idéias morais, o saber fazer, as concepções do cotidiano estão manifestas enquanto luta ideológica e luta cultural, nas diversas dimensões da vida das pessoas. Vão além do

processo de dominação que o trabalhador vive no seu trabalho e se complementam no conjunto de seu cotidiano.

Vale dizer que existe não só um conhecimento específico do tipo de vida das populações, como também a produçäo de uma ética e de uma política, de uma resistência que corresponde a uma determinada posiçäo na luta de classes. Naturalmente trata-se de um tipo de senso comum dominado, produzido e vivido nas relaçöes com um poder que se afirma por diversos meios, além do controle e da produçäo de conhecimento, num certo sentido, com a própria produção de poder estando articulada com a produção de uma ‗verdade‘.7 O que

importa ver é até que ponto esse ‗conhecimento dominado‘ se estende como percepção de relações entre dominação no trabalho e dominação na sociedade. E descobrir se as condições de vida, na fábrica e na cidade são percebidas como ligadas ao cotidiano de opressão e exploração. A partir daí, não seria difícil observar que as classes populares podem desenvolver a percepção da necessidade delas construírem politicamente o seu próprio saber e de se voltarem estrategicamente para o acesso ao conhecimento das classes dominantes. Mais ou menos como uma elaboração a partir das práticas de resistência.

No cotidiano das populações periféricas, podem-se detectar sinais dessa resistência, às vezes marcada por uma indiferença com relação àquilo que procede de fora da comunidade ou da classe social. E de referência freqüente o exemplo da escola de periferia:

Raros sujeitos subalternos se envolvem pessoalmente e a comunidade nunca se envolve coletivamente, e não porque todos se sentem alheios à escola e pouco dignos ou preparados para ela, para servi-la, para desfrutá-la. Eles apenas consideram a escola uma necessária presença alheia ao mundo da classe, da comunidade. Do mesmo modo como a delegacia de polícia o posto de saúde, as agências regulares ou episódicas de 'bem-estar-social' ou de ‗participação

comunitária‘, a escola é sempre uma coisa ‗de fora‘. Uma agência com poderes e

serviços aproveitáveis que invade um espaço social de vidas e representações coletivas de uma vida que vive como sua a Escola de Samba e o terreiro de Umbanda e, como ‗de fora‘, a escola dos filhos, o MOBRAL e todas as outras agências exteriores de mediação de serviços setoriais à comunidade e controle político sobre a classe. (BRANDÃO, 1982, p. 177).

Como já foi dito antes, julgamos importante identificar os caminhos pelos quais passam as práticas de resistência da produção ao espaço vivencial total dos trabalhadores. Na

7 ―Em nossas sociedades, a ‗economia política‘ da verdade tem cinco características historicamente importantes: a ‗verdade‘ é centrada na forma do discurso científico e nas instituiições que o produzem, está submetida a

uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômioca, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios e comunicação);enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ‗ideológicas‘)‖. (FOUCAULT, 1984, p. 13).

verdade, a relação não corresponde exatamente a uma extensão da resistência do trabalho para a comunidade. É algo que, de certa forma, "já estava lá", tanto na produção como na vida no espaço urbano, como resposta das classes populares às condições de vida e de trabalho. Nesse sentido, suas práticas culturais são também práticas políticas, mas falamos, mais precisamente, de uma ligação consciente entre o dia-a-dia e as condições de exploração e de opressão. Não é difícil para o trabalhador perceber que ele não deixa de ser explorado ou oprimido ao sair pelo portão da fábrica.

É nesse sentido que a trajetória e as experiências dos trabalhadores-educadores que se construíram nas mobilizações em fábricas, que se organizaram no grupo Mutirão e caminharam para a criação do CAT, no bairro Jardim Teresópolis, em Betim, surgem para nós como um trabalho revestido de conotação política consciente e integrado no quadro da luta de classes. Surgem como a marca de uma construção do movimento operário enquanto luta urbana e luta social, com um projeto político vivido e amadurecido em uma experiência de autoconstrução como sujeito político.

O registro das lutas é que vai trazer a história dos sujeitos ou dos pequenos grupos que não apenas fundam novas formas de luta, mas que também dão continuidade a um processo mais amplo, que é o da luta cultural, que afirma identidade e que fortalece a cidadania de determinados grupos sociais.

3 A CLASSE TRABALHADORA E AS LUTAS CONTRA O AUTORITARISMO

3.1 Antecedentes: a região de Betim, a industrialização e a formação da classe