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No início dos anos 1980, cresceu a produção bibliográfica sobre a questão da política não institucional dos trabalhadores no espaço fabril. Alguns autores trataram da questão do avanço político da classe operária industrial e do surgimento das comissões de fábrica, sobretudo a partir das greves de 1978/79, apontando a questão das lutas no cotidiano da fábrica e sua relação com o conhecimento das técnicas de produção e do processo produtivo como condição para o desencadeamento dessa luta. (GARCIA, 1982; GOMES; MARONI, 1984; MARONI, 1982; MARONI, 1983).

O papel do conhecimento no processo de dominação do trabalho apresenta momentos diversos, entre os quais a apropriação da técnica produtiva e a formulação de padrões de organização do processo produtivo. A expropriação dos meios de produção se completa na expropriação das técnicas produtivas e de sua guarda como propriedade dos setores técnicos e intermediários, da gerência, enfim, como um tipo de conhecimento que contribui decisivamente para a alienação do trabalhador. Com o advento do taylorismo, a organização capitalista do trabalho foi passando a utilizar, em termos mais de totalidade, toda uma construção ideo1ógica apoiada no mito do conhecimento cientifico e da tecnologia, que consolidava o processo de dominação e de controle sobre a classe trabalhadora. Da elaboração propositiva de se ter uma gerência científica, resulta que deve ser deixado para os trabalhadores o mínimo possível de iniciativa. A obra de Taylor mostra bem isso nos princípios que estabelece para a administração científica do trabalho:

Todo possível trabalho cerebral deve ser removido da oficina e centrado no departamento de planejamento ou projeto, deixando exclusivamente para os capatazes e chefes de turma o trabalho estritamente executivo por natureza. Sua tarefa é cuidar que as operações planejadas e dirigidas desde o escritório de planejamento estejam sendo prontamente cumpridas na oficina. (TAYLOR, 1912, p. 98-99).

A idéia de apropriação do saber do trabalhador é também reforçada por Taylor, pois, de acordo com ele,

[...] à gerência é atribuída, por exemplo, a função de reunir todos os conhecimentos tradicionais que no passado possuíram os trabalhadores e então classificá-los, tabulá- los, reduzi-los a normas, leis ou fórmulas, grandemente úteis ao operário para execução do seu trabalho diário. (TAYLOR, 1985, p. 49).

Procura-se consolidar aqui o princípio da separação entre concepção e execução, entre trabalho intelectual e trabalho manual, que é essencial para um processo de desapropriação do saber do trabalhador. Isto se consolida com a idéia da tarefa, que é considerada por ele como o mais importante elemento na administração científica.

O trabalho de cada operário é completamente planejado, pela direção, pelo menos, com um dia de antecedência e cada homem recebe, na maioria dos casos, instruções escritas completas que minudenciam a tarefa de que é encarregado e também os meios usados para realizá-la. (TAYLOR, 1985, p. 51).

Nesse ponto, é especificado o que deve ser feito e como deve ser feito, além do tempo exato concebido para a execução. Finalmente, a gerência científica utiliza essa espécie de

monopólio do conhecimento obtido por ela e pelo planejamento, para controlar cada fase do

processo de trabalho e seu modo de execução.

A reorganização do trabalho, partindo das operações organizadas pela administração científica de Taylor, avança ainda mais, com a aplicação da ciência patronal e do saber científico-administrativo a uma variedade cada vez maior e mais ampla de processos de trabalho. Novas máquinas, mais eficientes, mais automáticas, sob o controle de computadores, serão implantadas no processo produtivo. Mas, na seqüência desse processo, ainda na segunda década do século vinte, organiza-se o fordismo, que introduz, em 1914, a esteira rolante, na qual os componentes do carro eram transportados e, à medida que passava, realizava paradas periódicas, para que os trabalhadores executassem operações simples. Com o crescimento do poder da gerência sobre o ritmo da montagem, ela podia, agora,

[...] dobrar e triplicar o índice a que as operações a serem executadas deviam obedecer e assim submeter seus trabalhadores a uma intensidade extraordinária de trabalho. Tendo conseguido isso, Ford então passou a achatar a estrutura de pagamento como medida adicional de redução de custos. (BRAVERMAN, 1977, p. 131).

O que se observa é que o desenvolvimento trazido pelo taylorismo/fordismo no plano das relações e processos de trabalho mostram uma atualidade impressionante da descrição feita por Marx:

No sistema capitalista, todos os métodos destinados a intensificar a força produtiva social do trabalho se realizam às custas do operário; todos os meios destinados a desenvolver a produção se transformam em meios de exploração e escravização do produtor, mutilam o operário, convertendo-o num homem fragmentado, rebaixam-no à categoria de apêndice de máquina, destroem com a tortura de seu trabalho o conteúdo deste, alienam-no das potências espirituais do processo de trabalho, na medida em que a este se incorpora a ciência como potência independente; corrompem as condições sob as quais trabalha; o submetem, durante a execução de seu trabalho, ao despotismo mais odioso. (MARX, 1975, p. 267).

Nessas condições, torna-se mais profundo o processo de alienação, e podemos falar até mesmo de uma desumanização do trabalhador. Todas as atividades que tenham relação com planejamento, projeto, cálculo, modo de execução, controle do processo de trabalho, avaliação, controle do tempo de cada atividade, estarão fora do alcance do trabalhador:

[...] os processos físicos são agora executados mais ou menos cegamente, não apenas pelos trabalhadores que o executam, mas com freqüência também por categorias mais baixas de empregados supervisores. As unidades de produção operam como a mão, vigiada, corrigida e controlada por um cérebro distante. (BRAVERMAN, 1977, p. 113).

Acontece, entretanto, que se trata de um processo dialético e será a natureza mesma do capital que desencadeará parte das condições de surgimento da contrapartida a esse processo. A busca de redução de custos de produção, que levou o capital a radicalizar, tanto na padronização de operações detalhadas, repetidas e controladas no tempo, quanto na redução dos incentivos monetários à produtividade, com padronização de salários em um nível menos estimulante foram suficientes para provocar o descontentamento dos trabalhadores. Braverman observa que

[...] a nova tecnologia na Ford mostrou-se cada vez mais impopular: encontrava cada vez maior oposição. E os homens atingidos por ela começaram a rebelar-se. Manifestavam sua insatisfação vagueando de emprego a emprego. Estavam em condições de escolher e exigir. Havia muitos outros trabalhos na comunidade; era- lhes fácil empregar-se; havia pagamento também: e eles eram menos mecanizados e mais afeiçoados ao trabalho. (BRAVERMAN, 1977, p. 131).

Nesse contexto, com a implantação da linha de montagem, a empresa da Ford Motor Company chegou ao momento em que tinha uma grande fábrica, sem ter, contudo, trabalhadores suficientes para fazê-la funcionar.

Gramsci possibilita aprofundar a crítica a esse processo, de forma magistral, no texto ―Americanismo e Fordismo‖. Segundo ele, os novos métodos de trabalho são inseparáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida.

Assim, a racionalização do trabalho e o proibicionismo, por exemplo, estariam indubitavelmente conectados. Radicalizando esse modelo, poder-se-ia considerar o discurso que defende as investigações dos industriais sobre a vida particular dos operários e até o controle da ―moralidade‖ dos trabalhadores como necessidades do novo método de organização do trabalho. No seu texto, Gramsci mostra que iniciativas marcadas pelo puritanismo fizeram parte desse novo industrialismo americano, com vistas a ―conservar, fora do trabalho, um certo equilíbrio psicofísico que impeça o colapso fisiológico do trabalhador, premido pelo novo método de produção.‖ (GRAMSCI, 1975, v. 3, p. 2166). O avanço e o aprofundamento desses métodos irão contribuir para a visibilidade de contradições, já que se trata de um projeto invasivo sobre o cotidiano e trabalhador e até sobre sua vida privada.

Gramsci, trabalhando com o exemplo da legislação americana que proibiu, na época, o consumo do álcool, de 1920 a 1933, nos lembra que quem consumia o álcool introduzido por contrabando nos Estados Unidos não era a classe trabalhadora, uma vez que o álcool havia se tornado um artigo de luxo e nem os trabalhadores que tinham salários mais altos podiam adquiri-lo para seu consumo. Segundo ele, aqueles que trabalham com horário fixo e recebendo salário não teriam tempo para se dedicarem à busca do álcool, ou para iludir as leis, e esta mesma observação pode ser feita quanto à sexualidade:

Parece claro que o novo industrialismo quer a monogamia, quer que o homem trabalhador não desperdice as suas energias nervosas na procura desordenada e excitante da satisfação sexual ocasional; o operário que vai ao trabalho depois de uma noite de extravagâncias não é um bom trabalhador, a exaltação passional não pode andar de acordo com os movimentos cronometrados dos gestos produtivos ligados aos mais perfeitos automatismos. (GRAMSCI, 1975, v. 3, p. 2167).

Tanto o proibicionismo, relativo ao álcool, quanto essa moralidade que se tenta colocar para as classes trabalhadoras, enquanto necessidades da nova indústria, encontram dificuldades de se imporem aos trabalhadores, em combinação com os métodos que mecanizam os movimentos e o tempo do trabalhador, inclusive pelo conteúdo de falsidade moral da proposta, uma vez que, como mostra Gramsci, as classes dominantes não estavam sujeitas a essas limitações.

Ao fazer a sua leitura dialética desses processos, ele mostra que a mecanização dos gestos e a adaptação do trabalhador a ela significam, na verdade, que o cérebro do operário em vez de se mumificar, alcançou um estado de liberdade. Terá sido mecanizada uma série de gestos simples, com intensa repetição, deixando o cérebro liberado para outras ocupações. Trata-se de um processo semelhante ao ato de caminhar, que acontece sem que seja necessário refletir sobre todos os movimentos corporais que estão envolvidos no ato. A pessoa caminha automaticamente, e ao mesmo pensa no que quiser pensar. Na visão de Gramsci, os industriais americanos compreendem essa dialética presente nos novos métodos industriais:

Eles entenderam que gorila amestrado2 é apenas uma expressão, que o operário permanece infelizmente homem e que ele, durante o trabalho, pensa demais, ou pelo menos tem muito mais possibilidades de pensar, ao menos depois de ter superado a crise de adaptação e não ter sido eliminado. E não só pensa, mas o fato de não ter satisfação imediata no trabalho e a compreensão de que querem reduzi-lo a um gorila amestrado podem levá-lo a um curso de pensamentos pouco conformistas. (GRAMSCI, 1975, v. 3, p. 2171)..

Certamente, esse pouco conformismo será um elemento constitutivo da resistência aos novos métodos de trabalho, sendo que a resistência a eles se dará de forma localizada no próprio processo produtivo. Castoriadis mostra que

[...] a raiz do fracasso dos métodos de organização científica do trabalho é a resistência encarniçada que, desde o início, lhes foi oposta pelos operários. E, evidentemente, a primeira manifestação dessa resistência é a luta permanente que os operários travam contra os cronometristas. Em todas as fábricas, é no terreno dessa luta que os operários realizam imediatamente uma associação espontânea. (CASTORIADIS, 1985, p. 107).

Essa afirmação de Castoriadis é amplamente apoiada em autores que ele cita no texto, entre eles o próprio Taylor, que menciona o desconforto de não ser capaz de olhar para um operário qualquer nos olhos sem neles encontrar hostilidade. Outro autor que ele cita é Paul Romano, que vai lembrar a diminuição sistemática do ritmo na presença dos cronometristas, como uma regra universal e mostrar que os estudos de tempo são também uma ocasião para os trabalhadores utilizarem ritmos de movimento e alimentação inferiores aos que serão praticados depois da saída do cronometrista. (CASTORIADIS, 1985, p. 107).

É necessário observar, todavia, que essa resistência dos trabalhadores aos novos métodos de trabalho irá encontrar um espaço de luta mais ampliado, mais complexo e mais detalhado do que possa parecer a uma primeira vista, um campo que se estende muito além do chão de fábrica.

2 A expressão gorila amestrado refere-se a Taylor, que, segundo André Philip, considerava que um gorila

No plano da organização do trabalho e de seu cotidiano, a desapropriação dos meios de produção vai se completar na desapropriação intelectual (através da devolução de um "saber reelaborado segundo a estratégia patronal‖), totalizando um processo de desapropriação do trabalhador enquanto sujeito. Melhor dizendo, tal processo se realiza com o trabalhador legitimando a sua própria ignorância e se entregando ao poder do conhecimento do técnico. O parcelamento, a especialização, o afastamento entre o operário e o produto final de seu trabalho, todo o processo de alienação aí configurado guarda uma relação extremamente importante com a questão política do conhecimento. A dependência do trabalhador com relação à seção de planejamento, apoiada em valores ideológicos que promovem e legitimam a separação entre trabalho intelectual e trabalho produtivo veio agravando as condições dessa dominação. A dominação de classe, naturalmente, ultrapassa os limites do espaço produtivo, até mesmo como condição para elaborar sua legitimidade dentro e fora da fábrica. Existe um processo de destruição/mutilação do conhecimento do trabalhador, que se completa através da organização do trabalho, do parcelamento e da disciplina, do controle dos movimentos, da disposição do espaço produtivo imposta pelo planejamento, além do sistema hierárquico-que sustenta as relações no interior da fábrica. Pode-se dizer que, em grande parte, a construção do poder patronal depende desses fatores.

A referida desestruturação do saber do trabalhador participa, de forma integrada, da construção da hegemonia do saber do planejador. Também a classe trabalhadora participa dialeticamente da construção dessa hegemonia, consolidando e legitimando, através da repetição cotidiana (e de sua resposta positiva, que é a produção), esse poder que impregna o cotidiano da produção e que se dissemina entre os atores do processo produtivo. As classes subalternas, independentemente da situação de opressão através do saber, vivida na relação de trabalho, possuem uma consciência elaborada sobre a relação entre o saber e o poder.

As pesquisas que realizamos em contato com setores das classes trabalhadoras trazem informações sobre a visão que o senso comum promove acerca da legitimação de um saber institucionalizado enquanto ‗poder‘, por ser legitimado pelas hierarquias definidas, por exemplo, pelo sistema de ensino. O vínculo de um saber com a institucionalização parece projetar algo como prestígio, ou valor de 'verdade', que, por sua vez, repercute nas hierarquias estabelecidas nas relações de trabalho. e de sua vinculação com o poder.

[...] o conhecimento do intelectual, científico, é... ele neutraliza a classe operária. Queremos deixar é... sentir, o intelectual superior. É... o mesmo trabalho que existe dentro da fábrica quando se faz uma diferença, que é muito conhecida no meio operário, é...até com os companheiros que trabalham no escritório, que não trocam turno, que estudam... com os companheiros que trabalham na produção. É o peão

de gravata. Que se sente importante, se sente que tem melhores condições, quando no final é tão, é muito mais massacrado talvez de que o próprio trabalhador [...] (Mário Bigode - torneiro/educador)

Falamos do conhecimento científico, tal como ele é politicamente produzido e utilizado, e também de construção e consolidação de hegemonia, fundada nas convicções habituais do senso comum em qualquer sociedade, em relação à autoridade do saber institucionalizado. E de serem as ideologias técnico-científicas apenas disfarces da ideologia burguesa, como ensina André Gorz (1973, p. 224).

O funcionamento do saber, na sua relação dialética com o senso comum, está revestido por um detalhado sistema de rituais e concepções que participam do processo de legitimação do saber das classes dominantes enquanto verdade e enquanto um conteúdo neutro, como um valor que se coloca acima das diferenças de classes. É a forma mais adequada, utilizada pela hegemonia burguesa, para convencer o trabalhador de que a sua condição de explorado é conseqüência de sua própria ignorância, de sua própria incompetência. O conjunto de instituições e práticas do sistema educacional, com suas divisões e subdivisões em graus de ensino, seus rituais, sua estrutura interna de poder e o atendimento diferenciado que ele pratica em relação à sociedade, realiza boa parte desse trabalho, legitimando-se a si próprio, inclusive como uma barreira entre os bem-sucedidos e os que não obtiveram acesso á educação.

Todo o processo acima referido, de invalidação ou construção de conhecimento, em sua consubstanciação como projeto político, diz respeito ao papel do conhecimento na dominação de classe, na perspectiva dos setores hegemônicos. Interessa-nos observar como se dá a contrapartida dia1ética desse processo, que se manifesta através da luta dos trabalhadores. É preciso que nos detenhamos, primeiramente, na análise do papel dos canais tradicionalmente utilizados nessa luta, que se situam entre os espaços institucionais da sociedade. É justamente o caráter de instituição do sindicato e do partido político que garante ás classes em luta um espaço legalizado para o processamento dos conflitos. Como a construção da hegemonia das classes dominantes se manifesta nos diversos setores das relações políticas, pode-se dizer que um padrão de dominação se estende na luta sindical e na luta partidária, na medida em que ambos fazem parte da rede político-ideológica que corresponde a uma sociedade com hegemonia burguesa. Por um lado, o sindicato e o partido político são instâncias que representam interesses dos trabalhadores e que realizam inestimáveis conquistas para a classe, na medida em que podem utilizar o espaço legal, que é fundamental para a manutenção da hegemonia das classes dominantes, mas é um espaço de

luta. Por outro lado, as práticas políticas institucionalizadas costumam esbarrar justamente nos limites que a lei e o senso comum colocam aos projetos de transformação política.

Vale dizer que a luta ideológica desencadeada pelas classes dominantes impõe certas regras, localizadas no sistema jurídico e no senso comum, que limitam as ações na luta, ao ponto suficiente para não se ameaçar a estabilidade das relações sociais de produção. É como se a função do sindicato, no sentido de promover os interesses dos trabalhadores, fosse condicionada por hábitos e visões burguesas sobre a vida e sobre a organização das atividades políticas. Esse aspecto não poderia ser diferente, uma vez que as instituições atuam dialeticamente na luta de classes, contribuindo para manter a 'ordem' social propiciando, ao mesmo tempo, um espaço para o crescimento político das classes subalternas. Entretanto, pode-se dizer que uma parte essencial desse crescimento político tem raízes nas práticas cotidianas de resistência dos trabalhadores.