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Na linha do que foi dito acima, este trabalho pretende contribuir para explicitar uma questão que, embora se ponha como subjacente a todo o "fazer política" da classe trabalhadora, está sempre a merecer mais atenção nas discussões que se tem produzido sobre o tema. Referimo-nos à relação entre o saber e o poder, considerada sob o prisma da luta política, na vida das classes trabalhadoras. Não nos colocamos, aqui, em uma perspectiva 'nova', do ponto vista teórico. Pretendemos, antes, ampliar a discussão no sentido de uma descrição das condições sob as quais a classe trabalhadora se relaciona com o conhecimento, visto este sob o ponto de vista de seu papel na luta de classes.

Na medida em que a forma como se dá a exploração do trabalho tem sido construída também sobre modelos diferentes de apropriação-controle do conhecimento e sobre elaborações ideo1ógicas destinadas a estruturar politicamente a relação entre conhecimento e processo de trabalho, é válido dizer que a questão do conhecimento participa da luta de classes de forma abrangente e total.

Interessa-nos, num primeiro momento, mostrar que o conhecimento - tal como é percebido e validado no senso comum - participa da permanente construção da hegemonia das classes dominantes, tanto nas relações de trabalho (e a partir delas) quanto no espaço e no tempo restante do cotidiano das classes subalternas. Em seguida, discutiremos a questão da construção da política do trabalhador no espaço produtivo e sua extensão ao espaço da convivência do cotidiano, suas manifestações na vida do trabalhador enquanto participante do espaço urbano, mais precisamente no bairro em que ele vive, para finalmente, colocarmos em questão perspectivas teóricas que as lutas dos trabalhadores permitem identificar e elaborar.

Tratar dessa questão, no entanto, impõe esclarecer e tornar mais precisa a utilização dos termos que se referem aos sujeitos históricos, sociais e políticos que focalizamos aqui. Cumpre deixar claro, igualmente, que não buscamos chegar a um conceito estático, fixo, de classe trabalhadora, classe operária, ou classes subalternas. Na verdade, enquanto realidade histórica e transformação permanente, a classe trabalhadora pode ser abordada de diferentes lugares ou pontos de observação e, para a finalidade de se obter, sobre ela, um conhecimento mais consistente e que possa ser estrategicamente útil para ela própria. Seria o caso de buscar, sobre ela, a compreensão mais integrada possível, no sentido de se captar a sua dinâmica transformadora, seu processamento histórico. Dizer, com Thompson, que a classe ―não é‖,

mas ―acontece‖, talvez seja a forma mais aproximada do sentido que pretendemos atribuir aqui:

[...] a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. (THOMPSON, 1987, p. 10).

Todavia, fica ainda necessário esclarecer como se concretiza a classe ou setor de classe de que falamos, como trabalhar um pouco mais essa elaboração conceitual, como refinar mais o conceito, uma vez que tratamos de sujeitos específicos, em uma região específica, em um momento histórico singular. Referimo-nos a um contexto de transformações que, tendo paralelo em outras regiões do Brasil, tornou possível perceber sua integração com um processo mais abrangente, que afetaria a classe trabalhadora do país nos anos subseqüentes ao período que abordaremos neste estudo. E o mesmo contexto de transformações exige que o observador leve em conta a fluidez, a necessidade de se considerar a noção de classe trabalhadora enquanto uma relação histórica que, nas palavras do mesmo autor, ―escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura.‖ (THOMPSON, 1987, p. 10). Analisar as experiências de grupos de pessoas em um contexto de significativas transformações históricas, por outro lado, aponta para a necessidade de se terem referências que possibilitem a compreensão dos processos e sua atribuição a sujeitos históricos determinados. Se considerarmos que existe alguma imprecisão, quando apenas dizemos classes trabalhadoras, podemos tentar reduzir essa imprecisão, esclarecendo de quais setores dessas classes estamos falando, em que época, em que contexto histórico, político, cultural e econômico. Inicialmente, podemos dizer que o termo classe trabalhadora corresponde à totalidade das pessoas que vivem apenas do seu próprio trabalho. O foco de nossa atenção, todavia, neste trabalho, dirige-se a um setor mais específico dessa classe, marcado pela realidade de uma área industrial, num período em que os movimentos sociais haviam voltado a se manifestar na vida política do Brasil, mais exatamente, no final da década de 1970.

Referimo-nos, além disso, a um fazer política, a um fazer-se como classe, como coletivo que se movimenta pela concretização de objetivos. Nesse sentido, e até para sermos fiéis às autodenominações que esses sujeitos históricos mesmos utilizaram, ao nos informarem sobre suas experiências, acreditamos poder utilizar uma nomenclatura mais abrangente. Eles próprios se referiram à classe operária, às classes trabalhadoras, em geral ou ao setor metalúrgico, fazendo convergir o foco da referência para o mesmo grupo social.

Acrescente-se que, como nos mostra NEGRI, ―em cada momento histórico, nós nos encontramos frente a uma composição particular da classe operária‖. Segundo ele,

A composição da classe operária não é simplesmente o resultado de uma fase ou de uma forma de desenvolvimento capitalista, do andamento do capital constante sob novas relações capitalistas, mas é também uma realidade continuamente modificada, não só pelas necessidades, mas pelas tradições de luta pelas modalidades de existência, de cultura, etc, em suma, por todos aqueles fatos políticos, sociais, morais, que vem a determinar conjuntamente a estrutura do salário, a estrutura da relação de reprodução dessa classe operária. A composição de classe muda com o tempo e com as lutas, e pode mudar de maneira substantiva: assim podemos falar da época de um tipo particular de operário, de um tipo particular de classe operária. (NEGRI, 1979, p. 59-60).

Mas o que realmente conta, nesse conjunto de circunstâncias históricas, é que diversos setores sociais viviam, no período, um processo de retomada da cena histórica e que se tratava da recomposição das forças e da iniciativa política pelos trabalhadores e pelos movimentos sociais de modo geral.

Pensar em movimentos sociais e classe trabalhadora é algo que pode sugerir uma centralidade de movimentos de setores de classe, como as lutas no campo, ou as lutas da classe operária industrial, ou, ainda, as lutas dos trabalhadores do setor público, comerciário e outros. Neste trabalho, dentre os diversos setores da classe trabalhadora, estaremos nos referindo à classe operária industrial, que cresceu significativamente na região de Belo Horizonte, Betim e Contagem, com a vinda de grandes indústrias metalúrgicas e mais especificamente a automobilística. Importantes greves operárias aconteceram na região, no contexto da retomada e da eclosão de inúmeros movimentos sociais em diversos pontos do Brasil, naquela etapa do longo período da ditadura militar. Essas greves foram estudadas por Le Ven (1987 e 1988), por Neves e Freitas (1999), pela equipe do Instituto de Relações de Trabalho da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, entre outros e as formas de mobilização que as prepararam e o desenvolvimento que elas tiveram mostram uma clara mudança na inserção dos sindicatos junto às lutas dos trabalhadores, em direção ao que se chamou ―novo sindicalismo‖, como será visto no capítulo três.

Naquela etapa do desenvolvimento histórico das lutas sociais no Brasil, fica visível uma centralidade das movimentações de iniciativa popular, com pautas abrangentes sobre as condições de vida que a população enfrentava. Ao mesmo tempo, os trabalhadores se mobilizavam no espaço fabril para fazer as suas reivindicações e levavam, às vezes, as suas lutas para o espaço público.

É possível, também, identificar um papel histórico para a classe operária industrial, nas obras de diversos autores, entre os quais, citamos Lenin: ―[...] só uma classe determinada, a dos operários urbanos e, geralmente, os operários das fábricas, os operários industriais, tem condições de dirigir toda a massa de trabalhadores e explorados na luta para derrubar o jugo do capital.‖ (LENIN, 1961, t. 3, p. 241). No entanto, faz-se necessário ampliar a referência que trabalharemos aqui, se considerarmos que o período mostrava um contexto de movimentações da sociedade, em diversas frentes, como parte de um processo que começava a questionar o regime autoritário que o país vivia. Muitos desses movimentos se complementavam entre si, associando greves com a ação de moradores da região, com a participação de agentes da Igreja, com o acompanhamento e o interesse de grupos e pessoas que participavam de outros movimentos por direitos e liberdades democráticas, com setores do movimento estudantil em processo de reorganização e com uma imprensa de oposição que já voltava a se fazer notar e que incluía órgãos como o ―Jornal Movimento‖, ―Opinião‖, ―O Pasquim‖, o ―De Fato‖ e, em nível local, o ―Jornal dos Bairros‖ e o ―Boletim da Pastoral Operária‖. Essa identificação ou interação tem, a seu favor, outros argumentos que nos fazem ampliar o foco para além da luta política, em direção às transformações na dinâmica do capital. Harry Braverman, a propósito da estrutura da classe trabalhadora, vai dizer que ela é ―a parte animada do capital, a parte que acionará o processo que faz brotar do capital total seu aumento de valor excedente.‖ (BRAVERMAN, 1977, p. 319). Segundo ele,

[...] esta classe trabalhadora vive uma existência social e política por si mesma, fora do alcance direto do capital. Protesta e submete-se, revela-se ou é integrada na sociedade burguesa, percebe-se como classe ou perde de vista sua própria existência, de acordo com as forças que agem sobre ela e os sentimentos, conjunturas e conflitos da vida social e política. Mas, a partir de então, em sua existência permanente, é a parte viva do capital, sua estrutura ocupacional, modos de trabalho e distribuição pelas atividades da sociedade que são determinadas pelo processo em curso de acumulação do capital. É captada, liberada, arremessada pelas diversas partes da maquinaria social e expelida por outras, não de acordo com sua própria vontade ou atividade própria, mas de acordo com os movimentos do capital. (BRAVERMAN, 1977, p. 319-320).

No período a que estamos nos referindo, o processo de transformações na estrutura produtiva de Minas Gerais, com incentivos ao capital internacional que trouxeram a montadora Fiat e suas subsidiárias, a Krupp, a FMB e outras indústrias, além da modernização de indústrias já existentes, tanto na área dos equipamentos, quanto na forma de gestão da força de trabalho, provocou mudanças na estrutura e na composição da classe trabalhadora de Minas Gerais, além de possibilitar altas taxas de exploração da força de trabalho. Segundo Le Ven:

A grande novidade foi a criação de um pólo automobilístico, com um novo segmento de força de trabalho. Portanto, o proletariado mineiro se renovou e diversificou, tanto nas novas indústrias como nas antigas, que conheceram também novas formas de gestão da força de trabalho. (LE VEN, 1987, p. 28).

Esta reflexão nos lembra um trecho da obra de Marx e Engels:

As camadas inferiores da classe média de outrora, os pequenos industriais, pequenos comerciantes e pessoas que possuem rendas, artesãos e camponeses, caem nas fileiras do proletariado: uns, porque seus pequenos capitais, não lhes permitindo empregar os processos da grande indústria, sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas; outros, porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos métodos de produção. Assim, o proletariado é recrutado em todas as classes da população. (MARX; ENGELS, 1998, p. 31).

No entanto, falamos de mudanças que resultaram, desde muito antes do período aqui tratado, embora já no século vinte, em uma imensa variedade de categorias ocupacionais, dentro de uma definição niveladora de classe trabalhadora, que significa a classe que possui apenas a sua força de trabalho e que a vende para o capital, para ter a sua subsistência, sendo, portanto, assalariados. Sem dúvida, a variada escala de níveis salariais, os tipos de ocupação, as composições comportamentais e culturais daí resultantes, vão sugerir diferentes posicionamentos e disposições ideológicas, mostrando que nem todos os assalariados são proletários. Multiplicaram-se os ―burgueses assalariados‖, com o desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, aqueles que ocupam posições de poder na escala hierárquica das grandes empresas, podendo contratar e demitir, na condição de administradores, de executivos, de representantes dos proprietários. Há também os que ocupam posições inferiores na hierarquia administrativa. E aqui, podemos observar que

[...] pertencer a uma classe resulta das relações concretas que as pessoas mantêm na vida social. Alguém é proletário ou burguês conforme o modo como se insere na produção social; em determinadas posições, ele pode mudar de classe em função do relacionamento global entre as classes. Para os que se encontram nos níveis médios e baixos da hierarquia administrativa, ao menos, tal mudança é relativamente fácil, sendo produzida pela maior atração que um ou outro lado exerce sobre eles. (SINGER, 1985, p.8).

Pode-se acrescentar que as mudanças das condições materiais também modificaram profundamente a consciência da classe operária. O crescimento do desemprego, a precarização das relações de trabalho, a terceirização, os diversos estímulos que chegam pela mídia à construção do desejo de ser empreendedor, de ‗ser dono de seu próprio negócio‘ fazem parte de um conjunto de transformações que incidem sobre o senso comum e sobre os projetos pessoais. Se, há vinte ou trinta anos atrás, em seus bairros e comunidades, a classe

trabalhadora recebia algum resultado do trabalho dos agentes pastorais da teologia da libertação, que contribuía para a construção de um sujeito político coletivo, os novos apelos das religiões que cresceram com o avanço do neoliberalismo e da teologia da prosperidade, trabalham mais na construção de um sujeito econômico individual, apelando bastante para a questão do individualismo, da competitividade (ver HORTA, 2013, p. 146). A classe operária não estaria imune a essas transformações e aos seus impactos no senso comum. Mudanças que poderiam sugerir que ela não seria mais o sujeito por excelência da transformação política e social. Por outro lado, há autores que ampliam também esse papel histórico:

[...] se a classe operária não representa mais o sujeito exclusivo da transformação, o movimento dos trabalhadores constitui um sujeito decisivo e insubstituível para qualquer perspectiva futura da sociedade (e isto, pelo seu passado, rico de tantos valores; por seu presente, enquanto permanecer uma grande organização de milhões e milhões de trabalhadores, de mulheres, de jovens, de aposentados, de imigrados, e pelo seu futuro, porque o trabalho continuará a ser importante. (ANTONIAZZI; TOTARO, 1989, p. 28-29).

É fundamental lembrar o crescimento da participação dos trabalhadores do setor de serviços, que, certamente, altera em profundidade a configuração da classe trabalhadora. São alterações que avançam delineando novas aspirações e projetos de vida, e apontam para a construção de novas identidades dos sujeitos. O crescimento da variedade de ocupações intermediárias e da participação dos autônomos na força de trabalho diversifica ainda mais a configuração da classe trabalhadora e abre espaço para novos referenciais de análise.

As mudanças atendem a uma demanda diversificada e dinâmica do capital, que multiplica funções não diretamente ligadas à atividade de produção, caminhando em direção a uma identificação mais abrangente de classe trabalhadora, que se espalha por outros setores da vida social, e que vai estar representada na diversificação assumida, posteriormente, pela Central Única dos Trabalhadores, que se formou em 1983, em conseqüência das lutas do período. Os dados a seguir, de quando a central tinha dez anos de existência, trazem um perfil, com certeza, próximo da realidade dos anos em que aconteceram as experiências de que tratamos:

[...] existe imensa polêmica na tradição marxista sobre a ampliação ou não do conceito de classe operária, como esta incorpora o moderno operariado industrial, os setores médios, se há proletarização ou não de tais setores, se há a emergência de uma nova classe operária. Esta questão é importante, considerando que a CUT, em 1993, tinha o seguinte peso por setor econômico: rural – 18%; industrial – 27%; serviços – 55%. Marx assinalou a heterogeneidade da classe trabalhadora. (COSTA, 2000, p. 37).

É, portanto, heterogêneo e diversificado o perfil da classe trabalhadora representada pela maior central sindical do Brasil. E isto acompanha todo um processo histórico, de transformações na estrutura e na composição das classes trabalhadoras. Tal processo, nas décadas seguintes, viria a ter uma participação decisiva na vida da sociedade brasileira. Assim, podemos entender a importância das experiências de grupos de trabalhadores que desenvolveram sua prática política em greves, movimentos sociais e práticas de educação voltadas para a formação profissional e para a formação política, naqueles anos que marcaram o início de mobilizações e lutas, que caracterizaram a caminhada do Brasil no rumo da superação da fase mais autoritária e mais violenta da nossa história política.