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1° CAPÍTULO

1. ARTE PÚBLICA DE NOVO GÊNERO

1.2. A contribuição de Miwon Kwon quanto à espacialidade em arte pública

A partir do final da década de 1970 ocorreram novas práticas artísticas que partiram de uma reflexão crítica gerada a partir de um contexto e condições específicas do espaço e suas diferentes possibilidades de intervenção em colaboração com diferentes setores. Como uma espécie de reação ao modernismo, sua excessiva autonomia formal e seu descolamento da realidade social, o site

specific surge como uma prática artística dedicada à criação de obras a partir de um

diálogo com o espaço e o contexto de criação.

Este tipo de obra foi primeiramente criada de acordo com o ambiente e seu espaço determinado, tratando-se em geral, de um trabalho planejado e produzido à convite para locais em que os elementos esculturais dialogavam com o meio circundante, para o qual a obra era elaborada. Esta noção enfatizava a idéia de uma tendência da produção pós moderna de se voltar para o espaço - uma forma de incorporar a obra ao espaço ou ser transformada nele, seja ele o espaço da galeria ou externo a ela, natural ou de áreas urbanas. Esta definição se desdobra e modifica desde a land-art, já que inicia uma relação com o ambiente natural, não como paisagem a ser representada, mas como o princípio de uma noção de arte pública em seu sentido imediato, por tratar-se de uma arte realizada fora dos espaços tradicionalmente dedicados a ela.

As obras em site specific instaladas em ambientes urbanos tiveram a particularidade de serem desenvolvidas segundo características físicas e formais, envolvendo um estudo sobre o espaço que recebia a intervenção, temporária ou permanentemente. As obras, uma vez construídas a partir dessa relação, passavam a fazer parte deste lugar e não poderiam ser transportadas para outro lugar.

23 O conceito de site specific ganha relevância na medida em que as obras baseadas em seus pressupostos configuram-se como prática artística que tinha, entre suas razões formais, a orientação para políticas públicas, planos diretores, programas culturais e iniciativas da sociedade. O site specific como forma de arte, passou então, a exigir múltiplas negociações entre os interesses do artista, da instituição patrocinadora , assim como de arquitetos e urbanistas.

O exemplo do artista Richard Serra problematizou a questão apontada pelo

site-specific quanto à reverberação das obras em espaço público. Em 1981, o

programa Art in Architecture, gerenciado pela Administração dos Serviços Gerais (GSA) do Governo Federal Norte-Americano, encomendou ao artista uma escultura que seria instalada na Federal Plaza, em Nova York. O artista não havia recebido nenhuma restrição ou orientação específica do programa quanto aos limites físicos que a obra poderia ocupar. Na obra intitulada Tilted Arc [figura 9], o artista realiza uma gigantesca parede de aço inclinada e a coloca na Federal Plaza, em Nova York.

A escultura em aço – muito mais alta que um homem – cortava a praça, restringindo em muito a visão dos pedestres. Em 1985, o protesto dos que trabalhavam em edifícios das imediações tornou-se tão intenso que a Administração dos Serviços Gerais [...] anunciou que ela seria removida. Seguiu-se um processo jurídico, com Serra afirmando que sua remoção constituiria uma violação ao seu contrato e que uma proposta de deslocamento para um dos lados da praça era inútil, pois a obra havia sido concebida para ocupar sua posição original. [...] Ela foi finalmente removida em 1989. (ARCHER, 2001:196-197)

Tilted Arc foi retirada do local em 1989 após longa disputa judicial pelo

governo federal dos Estados Unidos em função dos sucessivos conflitos entre o artista e a opinião pública. A escultura chegou a mobilizar protestos de trabalhadores das redondezas que a viram como um obstáculo de passagem e de visibilidade para os prédios vizinhos. Para R. Serra, o observador deveria apenas "confiar em sua

experiência no momento que está entre as paredes"43. Ou seja, render-se à

experiência promovida pelo lugar.

10 COLOMBO, Silvia . No Brasil, Richard Serra diz que arte é experiência física. Folha de S. Paulo,

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u467195.shtml 13/11/2008 - 08h08 em 17/09/2011.

24 Figura 9 Richard Serra - Tilted Arc, 1981. Nova York, EUA

O site specific surge em um momento em que a criação artística é resignificada por diferentes artistas que se distanciam do trabalho solitário para se aproximarem de experiências mais diretas com o cotidiano das cidades, em colaboração com o público e seus governos. Estas novas obras se posicionam como crítica às faltas culturais e às banalidades do cotidiano promovidas pela lógica do monumento e posteriormente pela lógica modernista ainda fortemente percebida no contexto artístico. Ao representar valores e ideologias que destacam referências locais, o site specific estabelece novos caminhos para um tipo de entrada do espectador na obra. Em outras palavras, a inserção do site specific nos espaços públicos pode promover uma discussão entre a comunidade e seu cotidiano.

Miwon Kwon descreve em Um lugar após o outro44, os diferentes aspectos

pelos quais o site specific assume a formulação do conceito de site orientado, contribuindo para o entendimento de uma arte pública de novo gênero. Para a autora, o conceito de site-specific inicialmente tomou o local (site) como uma realidade e identidade composta por uma combinação exclusiva de elementos físicos constitutivos e herdeiros de um legado modernista. Estes elementos marcavam a obrigatoriedade do estudo e do levantamento do lugar, assim como as especificidades que determinavam o ambiente em que estava descrito. Informações

25 quanto ao espaço físico e um estudo do lugar serviam de elementos suficientes para a abrangência do site specific.

Baseada nas considerações propostas por Rosalyn Deutsche, em que “a

arte do site specific foi sendo absorvida pelo seu contexto ambiental, sendo formalmente determinada e dirigido por ela”45, Miwon Kwon (1997) coloca que as

forças contrárias à herança modernista teriam como fundamento o deslocar do significado individualizado do objeto artístico para o seu contexto. Desta forma, junto ao objeto artístico, emerge um sujeito reestruturado de um modelo individualizado para uma experiência corporal vivenciada e contextualizada por um ambiente social emergente. Por outro lado, o desejo de resistir às forças da economia capitalista de mercado, que também faziam circular os trabalhos de arte como uma mercadoria, tornou-se um impulso para a condição da arte expressa por trabalhos em site

specific que não podiam ser repetidos em outro lugar. A desmaterialização do site

ocorre toda vez que uma proposta conceitual pode provocar uma percepção crítica e não somente física do espectador, dando-lhe autonomia sobre as condições ideológicas dessa experiência.

(...) a garantia de uma relação específica entre um trabalho de arte e o seu site não está baseada na permanência física dessa relação (conforme exigia Serra, por exemplo), mas no reconhecimento da sua impermanência móvel, para ser experienciada como uma situação irrepetível e evanescente. (KWON, 1997)

Tendo em vista tais questões, Kwon (1997) aponta para as práticas orientadas para o site, chamadas sites orientados como uma proposta de um engajamento maior com o mundo externo e a vida cotidiana, o que inclui os espaços, as diferentes instituições e as questões não especializadas em arte. Trabalhos contemporâneos orientados para o site ocupam espaços do cotidiano e utilizam de meios midiáticos como o rádio, o jornal, a televisão e a internet. Além dessa expansão espacial, o site orientado também é caracterizado pela ação simultânea de diferentes áreas do conhecimento como antropologia, sociologia, literatura, entre outros, e em sintonia com discursos populares.

26 Esta abordagem discursiva dos sites orientados, salientada pela forma de relação de localidade em si (site), assim como pelas condições sociais do contexto institucional as quais estão subordinadas. Um site orientado estaria determinado discursivamente por um campo de conhecimento que lhe permite uma troca ou debate cultural, diferentemente do modelo de site specifíc iniciado por uma condição anteriormente relacionada com um levantamento topográfico e formal. O site orientado é gerado por um trabalho que se relaciona diretamente ao seu conteúdo, dando ênfase a sua formação discursiva eminente. Neste sentido, artistas engajados em projetos de site-oriented operam em múltiplas definições de site, muitas vezes em âmbito discursivo, promovendo “não mais um conhecimento territorial de ações

através de espaços, mas sim por uma narrativa nômade cujo percurso é articulado pela passagem do artista.46

O site-oriented parte então de questões sociais, às quais o artista compartilha e que podem incluir a participação colaborativa do público para a conceitualização e produção do trabalho. Pode ser visto como uma forma de fortalecer a capacidade da arte de penetrar na organização sociopolítica da vida, gerando impactos e novos significados. O site passa a ser mais do que um lugar, mas um deslocamento do artista e do papel do lugar público. Este deslocamento dará sentido a uma pratica nômade que se estabelece no ir e vir de novas escolhas. Pode-se dizer que as primeiras marcas deste nomadismo vinham com ações de desprendimento em relação à preocupação de permanência definitiva no lugar (site), onde surgem as performances, dando força às ações como a documentação fotográfica, esboços, desenhos e anotações como forma de registro de um trabalho em um lugar. Esta também seria a única forma de remeter este tipo de obra ao circuito de exposições de museus e ao mercado de arte. Neste sentido, muitos dos trabalhos em site produzidos na década de 1970 foram substituídos por réplicas ou levados em outra escala para museus.

27 Para Miwon Kwon (1997), estes movimentos de deslocamento do site o recontextualizaram a todo o momento, permitindo reversões, afastando e reaproximando da experiência estética suas significações. O princípio nômade dos sites atuais denota uma configuração in situ de projetos em uma ação temporária, não sendo possível sua reapresentação em outro lugar sem a alteração de seu significado. Cada site passa a ser não mais como um lugar específico, mas uma ação em um lugar que possui a sua especificidade, o que abrange uma ação única e específica. De um site a outro, tudo se modifica, desde aquilo que define o local do site, até as relações não previstas que se desdobram no local. Com base nesta premissa, a autora define que

A presença do artista tem se tornado um pré requisito absoluto para a execução/apresentação de projetos site-oriented. Agora é o aspecto performativo de um modo característico de operação de um artista (mesmo quando em colaboração) que é repetido e transportado como uma nova mercadoria, na medida em que o artista funciona como o veículo principal de sua legitimação repetição e circulação. (MIWON, 1997)

Desta forma, as condições físicas do site tornam-se cada vez mais irrelevantes, podendo ser discursivas, dando-lhe assim, uma mobilidade discursiva. Miwon Kwon (1997) aponta ainda para a mobilidade quanto à autoria do artista junto ao site, já que nesta forma orientada, a ação poderia incluir colaboradores. Questões específicas que abrangem a mobilidade do site permearam a discussão sobre a impossibilidade do site specific em ser transportado para outro lugar, sem perder suas características fundamentais, resistindo assim à comercialização em galerias. Já o site orientado, possui uma mobilidade que também o afasta de um mercado de arte. A trajetória desenvolvida pelo site specific desde a década de 1970 culminou em uma lógica e princípio nômade (possibilidade de deslocamento) que deu ao site orientado uma forma de resistência às ideologias hegemônicas.

No fluxo que parte do site specific ao site oriented, o artista desloca seu papel de produtor de objetos estéticos para um agenciador em arte. Neste sentido, haverá sempre uma necessidade do artista como produtor de um significado, mesmo quando a autoria é compartilhada com colaboradores ou com a estrutura institucional. Por sua vez, esta noção de autoria compartilhada, resulta da

28 tematização de sites discursivos como lugar específico de uma história e discurso da identidade do artista ou dos colaboradores do site.

O conjunto de significados dos sites orientados é construído principalmente pelo movimento e decisões do artista e a elaboração crítica do projeto que se desdobra ao seu redor. Isto é, os sites discursivos e literais criam uma narrativa nômade, onde o artista atua como narrador-protagonista. Neste contexto, os trabalhos em site orientado também reforçam a cultura de diferentes lugares, já que tem como foco a experiência levada pelo artista. Esta desterritorialização do site desloca a identidade daquilo que o remeteria a um lugar específico para um modelo migratório, que dá sentido à produção de múltiplas identidades, formadas por encontros e circunstâncias imprevistas, promovendo o encontro de diferenças. Para Miwon Kwon (1997), o paradigma dos sujeitos e sites nômades é viver em uma ideologia de liberdade de diferentes escolhas que lhe permitam reinventar seu cotidiano, restabelecendo assim, outros paradigmas, podendo ainda, pertencer a uma multiplicidade de lugares ou até mesmo em nenhum lugar.

O entendimento desse poder de escolha torna-se uma construção cultural de identidade múltipla e que flui dando o privilégio ao trânsito nômade entre a mobilidade e a especificidade.

Somente essas práticas culturais que tem essa sensibilidade relacional podem tornar encontros locais em compromissos de longa duração e transformar intimidades passageiras em marcas sociais permanentes e irremovíveis – para que a seqüência de lugares que habitamos durante a nossa vida não se torne generalizada em uma serialização indiferenciada, um lugar após o outro.(MIWON,1997) Desta maneira, os lugares que habitamos durante a nossa vida não são lugares passageiros e inespecíficos, mas lugares modificados a partir da nossa vivência. Estes caminhos apontados por Miwon Kwon dão sentido para um novo campo que trata de uma noção de espacialidade contextual e dialógica que não partiria da obra em si, como no modernismo, mas sim de suas múltiplas relações sociais e culturais com o entorno e o espectador.

Estas novas formas contextualizadas permitem a abertura para uma discussão em arte pública, abrindo possibilidades de atuação de artistas junto ao

29 espaço público, dando início a um período de abertura para os problemas do mundo. Podemos falar em uma ruptura espacial desde a tradição artística moderna, que ao enfrentar novos os paradigmas sociais e políticos de um espaço público concreto e suas crises sociais, passa a dar sentido a este novo contexto como uma busca, uma caminhada.