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CAPÍTULO I O RETORNO À IDEOLOGIA

F UNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DA IDEOLOGIA

3.1. A conversão de ideia em ideologia

Analisando detidamente cada um desses elementos da conceitualização lukacsiana, primeiramente, fica patente a existência de um processo de conversão de algo em ideologia – o que, no trecho, Lukács trata como ponto de vista. Em diversos outros momentos, esse elemento que pode assumir o lugar de uma ideologia se resume ao conjunto de ideias, pontos de vista, posicionamentos entre outros elementos relativos à esfera espiritual humana. Dessa forma, para toda a produção espiritual humana há a possibilidade de se fazerem em ideologias. Portanto, uma ideia nunca é de partida uma ideologia, não é algo que vem circunscrito em seu próprio ser, mas corresponde à função social que essa determinada ideia assume em um determinado hic e nunc (aqui e agora) histórico-social. Mais especificamente, depende de como essas ideias serão metabolizadas na totalidade social nos momentos específicos de conflitos sociais.

Para maior compreensão do primeiro trecho da passagem lukacsiana em tela, é necessário recorrer às ilações marxianas presentes nA Introdução a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - Introdução (Marx, 1844/2010):

A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material

quando se apodera das massas. (p. 151, grifos nossos)

É precisamente essa capacidade da “teoria” (ideias, pontos de vista, visões de mundo etc. – as produções espirituais humanas) de se converter em “força material quando se apodera das massas” que Lukács corresponde à conversão de uma ideia em

ideologia, de uma produção espiritual que passa a determinar (com diversas mediações8)

a práxis dos sujeitos frente a um dado conflito social.

Dois fatos históricos levantados por Lukács são exemplares quanto à relativa independência da correção empírica de uma ideia para a sua conversão ideológica. Um, é a forma como a teoria de Galileu serviu ao processo de sepultamento do Antigo Regime na Europa. Inicialmente, as pesquisas desse cientista resultaram em um conjunto de dados e de reflexões inovadoras para a sua época e de profunda correção quanto à reprodução ideal da realidade física. Em que pese ser, inicialmente, uma teoria científica, rapidamente, suas produções foram apropriadas pelo movimento político da época como estratégia de enfrentamento da visão de mundo medieval, confrontando-a com novos achados científicos com poder de fogo suficiente para refutar os dogmas religiosos.

O segundo é fornecido por Marx (1841/1971, p.90), ainda em sua tese doutoral, quando questiona-se (retoricamente) acerca dos efeitos que as crenças nos deuses em diversas civilizações possuíam, tendo um real impacto no modo de organização da vida social “¿No ha reinado el antiguo Moloch? ¿El Apolo délfico no era una potencia concreta en la vida de los griegos?”. Lukács (2013) complementa essa reflexão:

Pode-se até caracterizar Moloque e Apolo como ‘asneiras’ no sentido gnosiológico, mas, na ontologia do ser social, eles figuram como poderes realmente operantes – justamente como poderes ideológicos. (p. 481).

Mais uma vez, esse caminho de análise reafirma o falso dilema do critério de verdade da ideologia, já que tanto crenças incorretas do ponto de vista epistemológico, como produções teóricas corretas com a realidade podem desempenhar a mesma função social no quadro dos conflitos existentes em um determinado contexto histórico social.

8 "A passagem de uma ideia para o plano ideológico pode dar-se no trajeto percorrido através de múltiplas mediações, inclusive de tal maneira que só no processo de mediação essa transformação se torne fato." (Lukács, 2013, p. 468).

Esse traço principal da teorização lukacsiana a respeito da ideologia se contrapõe, diametralmente, às reflexões produzidas no seio da II Internacional dos Trabalhadores (com exceção das assertivas de Lenin – conforme já relatado no capítulo anterior) e, consequentemente, por Engels. Esse radical combate à conceitualização oriunda da II Internacional no trato da ideologia era coerente com o objetivo da Ontologia, como já relatado: o de resgatar as raízes marxianas no marxismo, eliminando muitas das reflexões idealistas e mecanicistas que tomavam conta dessa tradição no início do século XX. Assim, a negação do critério ideológico como qualquer ideia distorcida, falsa consciência, é substituído positivamente pela função social que um determinado conjunto de ideias assume.

Nos termos postos, função social corresponde à localização e a dinâmica da ideologia dentro da totalidade social, diferenciando-se dos princípios funcionalistas. Esse distanciamento ocorre, principalmente, quanto aos pressupostos ontológicos e metodológicos de fundo: enquanto que para o marxismo trata-se de uma totalidade dinâmica e dialética, na qual a sua construção é realizada pelos homens e mulheres na produção de sua vida material (e, consequentemente, espiritual), no funcionalismo a produção é assumida como um fato óbvio da vida, não tendo papel relevante na compreensão da dinâmica da realidade. Essas considerações de fundo desaguam em outra diferenciação fundamental: para o marxismo, tendo em vista a dialética da totalidade, há uma contínua transformação dessa realidade, tencionando-a para uma revolução orientada às reais demandas humanas que irrompa com o atual conjunto das relações sociais; já para o funcionalismo o ideal de sua práxis é a garantia da homeostase social, ou seja, a identificação dos componentes disruptivos a fim de equalizá- los com os demais elementos do sistema (ou do organismo), garantindo, assim, a continuidade do establishment (Silva, 2012).

Contudo, ainda que a real determinação da ideologia seja a circunscrição de um dado conjunto de ideias dentro do quadro dos conflitos sociais, não se trata de uma análise estritamente pragmática do uso das ideias na vida cotidiana9. Mais uma vez, o que fica

evidente é que nenhuma ideia, a priori, carrega consigo traços ou elementos que já a inaugurem enquanto ideologia: quantas elaborações teóricas se pretenderam arregime ntar um determinado movimento histórico e apenas compuseram a decoração de alguma biblioteca? Quantos tratados científicos não foram concebidos por seus autores como pura descrição da realidade, mas de fato, municiaram movimentos revolucionários (ou reacionários)? Se por um lado a determinação de uma ideologia é sempre post festum, e o seu escrutínio gnosiológico não chancela a real conversão de uma ideia em ideologia, historicamente, a condução da crítica ao conteúdo das ideologias (principalmente, as ligadas à classe dominante ou a parcelas desta) foi fundamental no processo de desmistificação, enfraquecimento e enfrentamento em uma situação de disputa política (e, portanto, ideológica). Assim, se por um lado a crítica gnosiológica é insuficiente na determinação de uma ideologia, o seu abandono significa um erro estratégico no processo de combate às ideologias que corroboram para a manutenção do status quo (Lúkacs, 2013).