• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I O RETORNO À IDEOLOGIA

D E D ESTUTT A L UKÁCS : PERCURSO HISTÓRICO CONCEITUAL

2.5. De Marx a Althusser

Uma linha de discussão em certa medida, diferente da conduzida por Gramsci, é a dotada por Althusser em Ensaios sobre o Aparelho Ideológico do Estado (1971/2010) e em algumas passagens em Pour Marx (1965/2005). Para o autor argelino a ideologia seria uma representação das relações estabelecidas com a realidade, havendo, ao mesmo tempo, uma relação real e uma relação imaginária vivida (que pressupõe a primeira). Dessa forma, ela antropomorfiza a realidade para os homens e mulheres, aparentando que

o mundo é posto em função do ser humano (Eagleton, 1997). Assim, Althusser elenca uma teoria do imaginário para tratar da questão da ideologia (Rooter, 1995; Sotiris, 2009). Com isso, a ideologia atuaria em níveis inconscientes da subjetividade humana , agindo muito menos no nível cognitivo (ideias, conceitos, pensamentos) e mais na dimensão atitudinal/comportamental (sentimentos, ações, práticas). Não é desprezível a influência da tradição psicanalítica nessa tentativa de Althusser em reposicionar o tema da ideologia dentro do debate marxista, e, como herança dessa abordagem, o sujeito é visto como determinado por um segundo ser. Nesses termos, Althusser teria utilizado a chave compreensiva da psicanálise para interpretar o fenômeno da ideologia: ela estaria para a sociedade, como o inconsciente estaria para o sujeito, na psicanálise (Vaisman, 2006).

Essa posição se contrapunha ao pensamento humanista que invadia os redutos marxistas do século XX, no momento em que anula a existência de qualquer essência humana e, de maneira mais precisa, o papel ativo da consciência dos sujeitos. Ao tratar de ideologia – e no todo de suas construções teóricas –, Althusser privilegia o sentido etimológico do termo sujeito, enquanto “assujeitado”, como um ser, que em si, não possui determinações ou proatividade, ou, em última análise, é a saturação de determinações. Nesse sentido, a ideologia é quem formaria os sujeitos, conferindo-os a impressão de que são autônomos e autoconscientes, quando, materialmente, não o são (Eagleton, 1997). Conforme alerta Eagleton (1997), o combate althusseriano ao humanismo no marxis mo é exemplificado pela alegórica contraposição entre “consciência” e “matéria ”, defendendo a hierarquia da última sobre a primeira. Para Althusser, não fazia sentido algum para o materialimo histórico se ater à categoria do sujeito, sendo essa uma invenção do ideário burguês (Vaisman, 2006).

Nessa direção, o papel dos aparelhos ideológicos seria posicionar a consciência dos sujeitos com relação ao seu papel dentro da sociedade. A garantia da dominação das classes dirigentes seria conduzida, por um lado, pela violência de Estado e, por outro, pelos aparelhos ideológicos do Estado (AIE), quais sejam, as escolas, as igrejas e a mídia. Seria função desses AIEs garantirem a reprodução das relações sociais de um modo de produção, no caso, do capitalismo (Rooney, 1995). Se é papel dos AIE interpelarem os sujeitos sobre quem eles são e devem ser, não são os AIE os produtores da ideologia em si. Nesse instante, Althusser não abandona o legado marxista em situar essa discussão no âmbito da luta de classes, sendo delas que são emanadas as ideologias em si (Eagleton, 1997).

Associado com a compreensão da ideologia enquanto práticas sociais, os AIEs completam o binômio conceitual que auxiliaria a conferir materialidade à ideologia, escapando das ciladas metafísicas desse debate.

A ideologia, nesse sentido, assumiria o lugar de um sistema inquestioná ve l. Como ele determina o próprio sujeito, este não poderia/conseguiria questionar aquele. A ideologia, por si só, ofereceria os substratos às questões que são postas a ela mesma, gerando respostas tautológicas que, apenas aparentemente, apontam algum progresso. Ao contrário, a ciência é que possuiria um sistema de respostas abertas e capacidade de apresentar novidades na forma de conhecimento (Eagleton, 1997).

A contraposição entre ciência e ideologia é um ponto decisivo da teorização althusseriana, sendo corte com a própria tradição marxista existente até então – inclus ive com as posições defendidas por Lenin e Gramsci. Para Althusser, ciência e ideologia seriam contrapostas por serem modos distintos de se conhecer a realidade: a primeira estaria no campo da teorização, a segunda no da experiência cotidiana (Vaisman, 2006).

Precisamente, a ideologia não poderia ser considerada realmente uma forma de conhecer, por que não atuaria nesse nível. Larrain (2001) polemiza com Althusser por essa posição, no momento em que remete ambas (ideologia e ciência) ao âmbito da superestrutura, privilegia a ciência acima da ideologia, o que garantiria a existência de um terceiro lugar para a ciência – o qual não é claramente delimitado por Althusser e escapa à alegoria original da relação entre estrutura e superestrutura. Não obstante, nessa contraposição é possível identificar possíveis evocações das posições racionalis tas (ideologia como verdade/mentira) e positivistas (como uma questão não possível de ser investigada) no modo de compreender a ideologia, localizando-se, em alguma medida, próximo às teses iluministas acerca do papel salvador da ciência (Eagleton, 1997).

Em que pese essa definição genérica de ideologia, conforme pontua Larrain (2001), é possível extrair dos escritos da AIE como de Pour Marx duas concepções distintas de ideologia quanto à amplitude do conceito. Ao mesmo tempo em que Althusser tenciona a sua teorização em direção a uma teoria geral da ideologia, também apresenta uma teoria específica de ideologia na sociedade capitalista. No primeiro caso, a ideologia seria algo inerente a toda sociedade complexa, necessária para a garantia da reprodução do ordenamento social e de oferecer alguma explicação (mesmo que mística) do todo da sociedade. Estaria contida na própria natureza humana a necessidade da ideologia – o homem como “animal ideológico” (Vaisman, 2006).

Ela seria necessária no momento em que a diversidade das relações sociais (seus tipos, números e determinações) fosse tamanha, sendo impossível para os sujeitos singulares apreenderem a totalidade dessas relações. Com isso, Althusser nega as teses correntes do socialismo/comunismo de sua época em que creditava às sociedades comunistas do futuro a possibilidade dos sujeitos apreenderem o todo da realidade. Nesse sentido, a ideologia seria necessária para simplificiar a totalidade das relações sociais e

apresentar um todo coerente e acessível para os sujeitos, permitindo-o participar do ordenamento social e das regras necessárias à reprodução das sociedades (Eagleto n, 1997; Larrain, 2001).

Em sua acepção geral a ideologia estaria próxima a um conceito neutro, diferentemente de quando Althusser tratava da ideologia em seu sentido particular, no capitalismo. Nessa segunda elaboração, a ideologia corresponderia a todo o processo de dominação instaurado pelas classes dirigentes, sendo operada pelos AIE. A ela estaria creditada o processo de mistificação, distorção e falsificação inerente ao debate político da época, devendo ser, reiteradamente criticada. Ainda, segundo Larrain (2001), Althusser esboça a compreensão de que haveria uma ideologia produzida pela classe trabalhadora, contudo, é um elemento teórico que entra em colisão com a arquitetura de todo o seu desenvolvimento teórico.

Em síntese, a tese central de Althusser é que o papel da ideologia é converter os “indivíduos concretos” em “sujeitos concretos”, condicionando a existência do primeiro ao segundo e vise e versa. Entrelaçada a essa proposição espinhal, estão outras quatro teses: 1) os seres humanos, necessariamente, representam em seu imaginário, as relações que desenvolvem com a realidade; 2) tal caráter imaginário é insuperável; 3) essas representações não pertencem a nenhum mundo ideal, mas estão encarnadas em materialidades; 4) as materialidades da ideologia são os aparelhos ideológicos de Estado (Vaisman, 2006).

Em que pese as possíveis contradições e limitações da teorização althusseria na, essa foi, sem sombra de dúvidas, a teoria marxista mais influente entre os marxistas e não marxistas durante os vinte anos seguintes (Larrain, 2001). Mesmo sendo atacado como tendo produzido uma teoria a-histórica e funcionalista, ele foi um importante intelect ua l

no trabalho de reposicionamento da ideologia fora do conceito de falsa ideologia e em precisar a relação entre os indivíduos/sujeitos com esse fenômeno (Sotiris, 2009).

A relação mais evidente entre Lukács e Althusser, quanto ao conceito de ideologia, é o seu antagonismo, no instante em que o primeiro critica o ponto de vista gnosiológico para determinação da ideologia – algo que Althusser realiza ao vislumb rar na ideologia a distorção da realidade. Contudo, provavelmente a obra de Lukács é a negação do legado althusseriano, acerca da ideologia, por, exatamente, ter como princíp io o resgate do papel ativo dos homens e mulheres na transformação da realidade. Nessa direção, enquanto que para Althusser esses seriam assujeitados pela ideologia – resvalando no mecanicismo próprio de algumas correntes marxistas, mas aqui, de outra natureza –, para Lukács a compreensão acerca da determinação da consciência desses sujeitos não resultaria na negação da sua atividade transformadora. Contudo, é um ponto de convergência que ambos, de modos distintos, vislumbram a ideologia tanto como um fenômeno próprio das sociedades humanas – enquanto que para Althusser, algo próprio da natureza social humana, para Lukács, seria um complexo resultante do desenvolvimento histórico- material do ser social –, como com características específicas no capitalismo.

O breve estabelecimento das aproximações e distanciamentos da obra lukacsiana com os principais teóricos marxistas (ou, que de algum modo, são importantes para essa tradição) demarcou de forma mais ou menos precisa o lugar em que se situam as reflexões do filósofo húngaro. Igualmente revela as razões pela escolha da teoria lukasciana para a condução do presente trabalho: a mesma apresenta avanços sobre as suas antecessoras, ao mesmo tempo em que busca uma radicalização da compreensão marxiana sobre essa questão. Deste modo, é possível agora passar em revista os principais elementos inerentes a essa teorização.

CAPÍTULOIII