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CAPÍTULO I O RETORNO À IDEOLOGIA

P ENSAMENTO E LINGUAGEM : INCURSÕES SOBRE O SIGNIFICADO A PARTIR DE V IGOTSK

4.1. Pensamento e linguagem

Considerando que a unidade do significado apenas tem relevânc ia em face da relação entre pensamento e linguagem, é necessário, inicialmente, estabelecer as legalidades desse vínculo. Como consequência do paradigma dicotômico que imperava na Psicologia do início do século XX, a abordagem desse tema sempre deixa escapar o seu caráter dialético. Dessa forma, ou se apresentava uma relação externa, mecânica, como se o pensamento e a linguagem fossem processos que corressem em paralelo ao desenvolvimento psicológico; ou considerava-se que pensamento e linguagem se tratavam de um mesmo fenômeno, advogando por uma identidade entre eles.

Como que uma terceira via a essa dicotomização, Vigotski denuncia a parcialidade de cada visão, pela sua estreiteza de análise. Aos que consideravam a relação

entre pensamento e linguagem de forma isomórfica, ele apresenta a especificidade e relativa autonomia de cada um desses processos.

Essa relativa autonomia entre pensamento e linguagem permite que seja observada gênese histórica distinta de ambos os processos, bem como a fluidez de sua relação. Caso contrário estaria impedido que “uma mesma frase expresse vários pensamentos e que um pensamento possa ser expresso por várias frases” (Vigotski, 1934/2009, 477). Igualmente, pensamento e linguagem são processos que possuem estruturas particulares, haja vista que o primeiro se mostra à consciência de maneira integral, volumosa e plena (conforme constado por diversos trabalhos elaborados pelo campo da Gestalt); enquanto que a linguagem apenas pode existir de maneira gradual, parcelar e sequencial (como demostrado pelos estudos da linguística de sua época).

Por outro lado, à abordagem que cinde a relação entre ambos processos, incutindo uma aproximação externa e mecânica entre pensamento e linguagem, ele apresente a dinâmica indissociável entre eles, constituindo uma unidade dialética, na qual um determina o desdobramento do outro em cada momento específico do desenvolvimento dos indivíduos. Essa imbricação é tamanha que leva o próprio autor a caracterizar que os momentos do desenvolvimento infantil têm como sua principa l caracterização o modo como essa relação ocorre (Vigotski, 1934/1934/2009).

Portanto, o pensamento e a linguagem constituem uma unidade dialética de processos com origens e funções genéticas distintas, mas que ao longo do desenvolvimento humano vai se revelando a mútua determinação destes, estabelecendo uma ligação que se torna apenas dissociável do ponto de vista didático.

Precisando que relação específica é estabelecida entre pensamento e lingua ge m, Vigotski (1934/1934/2009, p. 412) escreve:

A linguagem não serve como expressão de um pensamento pronto. Ao transformar-se em

linguagem, o pensamento se reestrutura e se modifica. O pensamento não se expressa, mas se realiza na palavra. (grifos nossos).

O que à primeira vista pode aparentar ser uma distinção sutil, o posicioname nto da relação entre pensamento e linguagem como uma forma de realização, e não de expressão, é significativo para apreensão da dialeticidade dessa unidade. Ora, caso a relação fosse de expressão, estariam em jogo duas instâncias que funcionariam em paralelo, com uma ligação mecânica de expressão unilateral utilitária: o pensamento buscando na linguagem uma forma de externalizar, de se manifestar. Quando posto em forma de realização, a passagem do pensamento à linguagem, os termos são outros, haja vista que agora, sem a linguagem o pensamento não completa o seu ato de “tornar-se real”, de efetivar-se na realidade (seja psíquica, seja social). Além disso, quando o pensamento está realizado na linguagem, se constitui precisamente uma unidade indissociável entre um e outro.

Isso não significa que o pensamento se igualou a linguagem, ou vice e versa: o que se constata na relação de realização é que há um momento em que o pensamento e a linguagem, dois processos relativamente autônomos, que respondem a leis e dinâmicas distintas, sintetizam-se em uma unidade indivisível – a palavra.

Essa unidade responde a sua dupla natureza, constituindo sua faceta fásica (som, escrita, sinais etc.) e semântica (significado), possibilitando que a linguagem cumpra todas as suas funções. Contudo, aqui, mais uma vez, a relativa independência entre pensamento e linguagem se manifesta e ratifica que, mesmo existindo uma ligação indissociável entre os dois processos, eles não coincidem:

Exatamente porque um pensamento não coincide não só com a palavra, mas também com os significados das palavras é que a transição do pensamento para a palavra passa pelo significado. (Vigotski, 1934/1934/2009, p. 478).

Logo, a passagem do pensamento para a linguagem é um profundo esforço dos sujeitos em procurar nos significados sociais das palavras o melhor modo de se realizar seus pensamentos, sendo a ligação entre esse pensamento e a palavra, precisamente, a sua dimensão semântica. Sem tal dimensão, a palavra não carregaria a realização do pensamento e, consequentemente, se tornaria apenas um som sem significado humano, não conseguindo estabelecer nem a função primária da linguagem que é a comunicação (a passagem do pensamento de uma consciência a outra)74. A palavra é o mediador dessa

relação. Vigotski descreve precisamente como ocorre essa passagem da seguinte forma: O pensamento não é só externamente mediado por signos como internamente mediado por significados. (...). Isto [comunicação entre as consciências] só pode ser atingido por via indireta, por via mediata. Essa via é uma mediação interna do pensamento, primeiro pelos significados e depois pelas palavras. Por isso o pensamento nunca é igual ao significado direto das palavras. O significado medeia o pensamento em sua caminhada ruma à expressão verbal, isto é, o caminho entre o pensamento e a palavra é um caminho indireto, internamente mediatizado”. (Vigotski, 1934/2009, p. 479, chaves nossas).

Assim, a passagem de um pensamento para o meio externo é mediado, necessariamente, em primeira instância pelo significado internalizado, posteriorme nte pelos significados socialmente aceitos das palavras para, somente assim, encontrar um signo-palavra que o realize de maneira adequada. Mesmo após todo esse movimento, o autor ainda alerta que essa complexa tradução do pensamento para as palavras deixa vestígios que não encontram tradução, sempre sobrando um subtexto que é decisivo para se apreender completamente e corretamente um determinado pensamento.

74 “O fato mais relevante do aspecto sonoro da palavra é que ele só tem importância para o ser humano por estar associado, necessariamente, à um significado” (Vigotski, 1934/2009, p. 15).

É importante destacar que esse processo apenas está completo após longos períodos de desenvolvimento infantil (exatamente, durante a puberdade), no qual é necessário, primeiramente, que a criança descubra a relativa autonomia das duas dimensões da linguagem (a fásica e a semântica) e, assim, manipule de acordo com o seu interesse as ferramentas sociais linguísticas para a realização do seu pensamento75.

Diante dessa centralidade do significado da palavra na mediação entre o pensamento e a linguagem – mais precisamente na conversação de um no outro –, estão postas as condições de precisar com maior clareza qual a dimensão da palavra que congrega essa unidade entre os dois processos. Assim a real unidade que carrega as propriedades da totalidade que participa (binômio pensamento-linguagem) não é a palavra, mas sim o seu significado76. Ela carrega essa característica por conseguir “unir

os eventos da consciência (fato psicológico) e o som das palavras (fato fásico)” (Vigotski, 1934/2009, p. 08).

Estando situado o significado da palavra como a unidade dialética entre pensamento e linguagem, é necessário um aprofundamento quanto as suas características e peculiaridades.