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A corrida da Lebre e da Tartaruga

Capítulo 2 Definição da problemática do estudo

2.3. A corrida da Lebre e da Tartaruga

A vossa filosofia de vida é o quê? É acordar de manhã, ir trabalhar, vir do trabalho para casa e é todos os dias esta história. E trabalham em empenho de quê? Para ter uma casa, pagar a casa, ter um carro, pagar o carro, e andam 50 anos a sacrificar-se para pagar essas coisas. E a vida passa ao lado. Fazem logo planos para 50 anos. Isto a mim, mete- me muita confusão. Vocês vivem em função daqui a 50 anos e o cigano vive um dia de cada vez. Hoje tenho 20, vivo com os 20. Amanhã tenho 10, vivo com os 10. Não fazemos grandes planos. Mas isto está a mudar. Esta vossa maneira de ser e de estar na vida tentam-na transmitir a nós. E hoje em dia também já há muitos ciganos a pensar assim. (Leandro)

Utilizo a Fábula78 de La Fontaine “A Lebre e a Tartaruga” com o propósito de nos levar a imaginar o seguinte cenário: suponhamos que a Lebre representa a sociedade maioritária, onde os grupos ciganos estão inseridos, e que a Tartaruga representa os grupos ciganos.

Pretende-se analisar os comportamentos da Tartaruga na sua corrida na e pela vida para chegar à meta, isto é “acompanhar a evolução dos tempos” (expressão referida pelos entrevistados). Contudo, esta parece não possuir os mesmos recursos, as mesmas condições de partida que a Lebre, a sociedade maioritária, pois carrega um fardo secular – simbolizada pela carapaça que representa não apenas a sua cultura secular como

78 Para reforçar a ideia de sobrevivência e de adaptação, Dinis Abreu, Presidente da Associação Cigana de

Leiria, utiliza uma imagem semelhante à da fábula “Le Chêne et le Roseau” de La Fontaine quando diz que “os ciganos são como as palmeiras: com o vento vergam até ao chão, mas depois passa o vento e levantam-se novamente”, assim como o Provérbio cigano que diz “A erva curva-se ao vento e levanta-se

de novo quando o vento passa” (in Boletim Informativo nº81, ACIDI, Junho 2010, p 7) http://www.acidi.gov.pt/docs/2010/publicacoes/BI/81/100712_BI_ACIDI81br.pdf

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também as vulnerabilidades e constrangimentos que lhe são atribuídos - que a leva a ser mais vagarosa, “atrasada ou arcaica”, na perspectiva de alguns e contestada por outros, nomeadamente pelos entrevistados: “As pessoas não dão a oportunidade para conhecerem as pessoas e as coisas dos ciganos. Pensam que nós ficámos atrasados no tempo” (Cláudio). Todavia, a dita “carapaça” também pode revelar uma inegável persistência, tenacidade e capacidade de adaptação às circunstâncias adversas para chegar à meta, evidenciando capacidades de manutenção de uma vigorosa identidade étnica, manifestando renovadas reconfigurações (ou evoluções, na óptica dos entrevistados) de formas de etnicidade cigana, apesar de e/ou por causa das condições adversas à sua própria existência.

Mas essas reconfigurações são apenas detectáveis numa temporalidade longa, o que nos obriga a olhar para as transformações sócio históricas, como recomenda António Carmona Fernández (2005:20), pois “um dos maiores problemas para compreender o transcorrer da cultura é analisar adequadamente os momentos históricos essenciais que enunciaram as mudanças quando estas se deram”.

Ao longo da história, como qualquer outra etnia, os grupos ciganos, confrontados com as suas mutações e variações, não sendo, pois, a-histórico (isto é, sem passado histórico), têm revelado proceder a adaptações aos contextos históricos, económicos, culturais e sociais, as quais podem ser lidas sob várias perspectivas.

A verdade é que as comunidades ciganas têm demonstrado saber manejar algumas competências ao conseguirem sobreviver, enquanto um povo com identidade étnica reconhecida transnacionalmente, às diversas perseguições das sociedades maioritárias por onde foram passando (cujo itinerário e história de perseguições já foram amplamente abordados79). Pode dizer-se que a própria adesão maciça à Igreja Evangélica mostra uma certa modernização que vai no sentido de preservar os traços mais conservadores da cultura.

79 Nomeadamente por Lopes da Costa (1996), Nunes ([1981]1996), Auzias (2001), Pereira Bastos (2007),

Costa (2006), Casa Nova (2008; 2009), Kenrik (1995), Fraser (1998), SOSRacismo (2001) e o site do Conselho da Europa sobre os Rom e Viajantes (2008).

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O processo de modernização80 – entendido como um processo de mudança social, de adaptação ao envolvimento social e económico em mutação - é inevitável. E esse processo é, com frequência, doloroso para quem o sofre. Há quem tenha chamado esse processo perturbante, desequilibrante e doloroso como uma “deriva” (Lopes, 2008), por desconcertar tantos os ciganos, no cumprimento das suas leis (normativos socioculturais), como os não ciganos que vêem nessa “desordem” uma certa desorganização social dos ciganos sofrendo mutações que os tem fragilizado, nomeadamente, considerando que a sua organização social está enfraquecida no que toca à regulação social interna: “já não há patriarcas que sirvam de interlocutores privilegiados e que ponham ordem não apenas nas brigas internas mas que os discipline também”. Aliás esta soi-disant carência de “patriarcas” (na perspectiva do não cigano) pode até denunciar uma permeabilização à democraticidade, mas também pode ser encarada como um reforço à colegialidade consensual que enforma as decisões tomadas pelos conselhos de anciãos. Ou pode ainda ter vindo a ser substituídos, paulatinamente, pelos pastores evangélicos ciganos, que viram na Igreja Evangélica de Filadélfia um esteio para a manutenção da sua cultura. Estaremos face a mais um dos aparentes paradoxos da cultura, que consegue, dialogicamente, conjugar visões e práticas antagónicas, dando forma à sua complexidade. Assim, essa “deriva” pode ser lida como um processo de adaptação às relações de poder que regulam as relações assimétricas entre a sociedade de acolhimento e as comunidades ciganas, demonstrando que a “baixa permeabilidade à assimilação” (Casa Nova, 2009) pode ser reveladora sim de uma capacidade de “aciganar” sempre renovada e de uma elevada capacidade de adaptação e de renovação interna, “apayonando” alguns elementos da cultura, reforçando a ideia de Casa-Nova (2009:17) de que “as reconfigurações não significam uma perda de identidade, [mas, pelo contrário] tendo-se reconfigurado, a cultura continua a expressar uma forma de ser cigana e a identificar os elementos portadores da mesma”.

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Segundo Raymond Boudon e François Bourricaud (2004:396-404) a modernização caracteriza-se por um processo de mobilização (rapidez com que os bens, as pessoas, as informações circulam no interior de uma mesma sociedade, dando lugar ao crescimento urbano, à proliferação dos bairros de lata, ao aparecimento dos mercados financeiros e à intensificação das trocas); de diferenciação (definição de estatutos e de papéis ligados ao bom funcionamento da sociedade e não segundo regras imemoráveis investidas de autoridade sagrada, onde prevalece a burocracia, a meritocracia); e de laicização (separação instituída da igreja, do Estado e das instituições de investigação e de ensino). Importa, pois, perceber se a exposição de sociedades tradicionalistas à modernização ocidental pode ocorrer sem que a identidade cultural destas sejam postas em perigo (p.403).

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Existem evidências de que os grupos ciganos têm desenvolvido novas estratégias de adaptação ao processo de modernização, as quais os têm interpelado, provocando perplexidades difíceis de gerir, acarretando algum mal-estar face às normas estabelecidas (numa sociedade tradicional) e induzindo mudanças – ou evolução, de acordo com os entrevistados – das suas regras e normas. “A manutenção da identidade étnica cigana não pressupõe necessariamente a cristalização de algumas formas culturais nem o seu total isolamento relativamente à dinâmica sociocultural que marca o quadro macrossocial” (Mendes, 2005: 38).

Os colectivos de indivíduos sujeitos a mudanças políticas, económicas e sociais, adaptam-se sem terem, muitas vezes, consciência das alterações que se vão fazendo, a não ser que, num curto período de tempo surjam mudanças e ajustamentos rápidos numa mesma geração (considerando que podem coexistir várias gerações facilmente nas comunidades ciganas – netos, filhos, pais, avós, bisavós), porque a longo prazo, as mudanças são sentidas como evolutivas e naturais.

Terá sido o caso, em Portugal, desde 1974, em que em três décadas aconteceram mudanças aceleradas, nomeadamente no que aos ciganos diz respeito, que passaram de uma invisibilidade social para uma marginalidade incómoda ao sistema – quando confrontados com a escolaridade obrigatória compulsiva, com a concentração e sedentarização nos bairros sociais (com o desenvolvimento do PER), com a passagem de trabalhadores sazonais e independentes a assistidos socialmente (com o advento do RMG/RSI e a perda dos nichos económicos tradicionais, tais como a venda ambulante e o trabalho agrícola sazonal), com a implementação do sistema nacional de saúde pública (saúde materno-infantil e médico de família), com o aumento da esperança de vida (abrindo ajustamentos a fazer no que toca à idade dos anciãos e ao que fazer com os mais velhos incapacitados, realidade muito recente e raramente abordada), e com a penetração da Igreja Evangélica de Filadélfia e o surgimento do associativismo cigano (reconfigurando as relações de poder na hierarquia cigana, surgindo oportunidades para os mais jovens adquirirem mais poderes).

Várias foram as alterações introduzidas no sistema político e social português que influenciaram algumas mudanças nos costumes ciganos, tais como: i) a atribuição da cidadania portuguesa (consagrada na Constituição de 1822) aos ciganos e consequente deslocalização das zonas rurais e sedentarização nas zonas urbanas, ii) a implementação

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da democracia após o 25 de Abril de 1974, levou a maior parte dos ciganos actualmente a residir em bairro municipais, implicando o cumprimento de certas regras; iii) o aumento da idade dos casamentos (apesar de continuarem a ser, comparativamente, muito precoces); iv) a diminuição do número de filhos (apesar de continuarem a ter mais filhos do que os não ciganos, já existe alguma prática de contracepção); v) a ida de crianças e de adultos à escola (apesar de, numa grande parte dos casos, ser uma imposição); vi) a enorme dependência económica das prestações sociais de uma parte significativa da população ciganas; vii) o declínio da importância atribuída à palavra dada, também referida pelos entrevistas, ainda que considerem ser esse um dos valores nucleares da cultura; viii) as alterações no papel da mulher (a detenção de familiares e a toxicodependência têm levado as mulheres a desempenhar papéis mais autónomos dentro da cultura) (Magano, 2007b:8).

As mudanças significativas e relativamente céleres no campo das normas e dos valores da sociedade englobante reconfiguram a ordem exterior a que os ciganos estavam habituados, reclamando uma nova série de adaptações. É o que terá acontecido em Portugal, nas últimas três (e quase 4) décadas, em que se considera ter havido mudanças estruturais (medicalização, mecanização da agricultura, migração para os centros urbanos, ofertas de medidas e serviços de apoio social, escolarização e burocratização, cultura democrática), que obrigaram o povo cigano a ter de “optar” entre a “deriva” ou assimilação, segundo advoga Daniel Seabra Lopes (Lopes, 2008: 284).

Para Manuela Mendes (2005: 39), “a Cultura nos últimos anos tem vindo a conhecer transformações com uma outra visibilidade e densidade, nomeadamente nos últimos 30 anos, patamar temporal em que se assistiu aos processos de sedentarização. A partir daqui, as mudanças ocorridas no seu quadro de vida aceleraram-se e os traços definidores parecem estar a perder-se ou a transfigurar-se”. Contudo, esta transfiguração étnica, verificando-se nalgumas mudanças culturais, não significa o desaparecimento de elementos estruturantes do repertório cultural do grupo, mas a sua transformação, originando uma “redefinição do ser cigano” (p.171). Nos g r u p o s ciganos, evidenciam-se alguns elementos de mudança que, numa perspectiva diacrónica, indiciam uma maior aproximação aos não ciganos em aspectos, como: o exercício de uma actividade profissional por conta de outrem, a sedentarização e estabilização geográfica e residencial, o acesso a um alojamento e a condições de habitabilidade, a posse de um maior volume de capital escolar, as uniões conjugais

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mistas, a separação entre cônjuges, a menor rigidez com que se praticam algumas tradições (luto, casamentos prometidos, o uso do “traje cigano”, a utilização do romanon), e a crescente influência da religião evangélica (instância de controle social) nos seus comportamentos. Entre os valores e práticas socioculturais que fundam os grupos ciganos e que são essenciais à sua reprodução, não há rupturas de fundo, já que na sua essência ainda se mantêm (Mendes, 2007:567).

A ideia de, nas últimas décadas, a sociedade portuguesa ter exercido pressão sobre as comunidades ciganas, aumentando a intensidade e densidade das relações entre ciganos e não ciganos, é também defendida por Olga Magano (2010:149) mencionando alguns factores que aceleraram esse processo: os meios de comunicação social, os avanços tecnológicos e de infra-estruturas (incluindo a televisão, as vias de comunicação, as telecomunicações), os realojamentos habitacionais, a obrigatoriedade da frequência escolar, as políticas sociais (que apoiam em “troca” de uma participação activa).

No estudo sobre os ciganos de Madrid, Paloma Gay e Blasco (1999) também registou processos de mudança acelerada após a queda do franquismo em 1976, em que o IMI (o equivalente ao RMG/RSI) foi introduzido em 1990 em Espanha, bem assim como o processo de realojamento e uma sedentarização em massa acompanhada por uma escolarização compulsiva, entre outros, trouxeram transformações e opções dilemáticas aos grupos ciganos, para identificar novas formas de viver a ciganidade constantemente ameaçada e renovada.

Reforçando esta ideia de mudança nas últimas décadas, Ruy Blanes (2004:30-31) referindo-se à Península Ibérica, diz-nos que “a partir da segunda metade do século XX, algumas variáveis mudaram drasticamente a situação social dos ciganos”: i) importantes reconfigurações ao nível das estruturas económicas-políticas de ambos os países: êxodo rural, economia de escala, urbanização e periurbanização; ii) transições políticas para regimes democráticos introduzindo mudanças irreversíveis no “estilo de vida tradicional cigano”: nas dinâmicas familiares e residenciais e práticas socioeconómicas. Segundo este investigador, este período corresponde a um momento fracturante no que diz respeito não só à situação dos ciganos na era moderna (no sentido económico, político e social) como à percepção de si mesmo enquanto colectivo que se habituara a construir- se, por acção ou reacção, como uma alteridade – uma ‘raça’, com usos e costumes diferenciados, minoritária num contexto hegemónico. Essa fractura implicou um

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confronto dos ciganos com a sua própria modernidade, obrigando-os a questionar os seus estatutos, tradições, discursos ao nível de redes familiares, práticas residenciais, sistema de autoridade (2004:31).

Ainda na vizinha Espanha, Carmen Méndez (2005: 54) identifica algumas alterações ocorridas na vida dos ciganos, que também podem ser extensivas a Portugal:

“A história dos ciganos, e não apenas a história recente, deixa entrever as constantes adaptações e mudanças que foram fazendo. A passagem do nomadismo ao sedentarismo, implicando uma autêntica revolução; a perda das suas profissões tradicionais como a cestaria, o comércio de cavalos e a forja, adoptando outras, como a venda ambulante que se adapta às suas estratégias familiares, chegando a ir mais além seguindo o trabalho assalariado como os trabalhos agrícolas sazonais; a passagem de perseguidos a incorporados; de desescolarizados a escolarizados; a contracção das famílias extensas a nucleares ou pelo menos muito mais reduzidas na sua extensão, no que diz respeito à organização e desempenho das actividades quotidianas, cada vez mais frequente; a mudança de uma religiosidade católica sem prática para a igreja evangélica e sua prática diária; da transmissão oral ao clientelismo televisivo; do sentido de grupo e de solidariedade ao crescente individualismo e a imersão numa sociedade de classes, tributária do próprio processo de integração social; e de vendedores a consumidores”.

Estas mudanças podem ainda revelar-se através de várias e diversas manifestações do modo de ser cigano, cuja heterogeneidade e variabilidade deve ter em consideração a idade, o género, o estatuto, o nível de integração, a religião, a origem territorial, as trajectórias adaptativas, cujas adaptações, pelo caminho, com frequência, seleccionam umas características e sepultam outras. Perante tal variedade torna-se difícil dizer o que é a cultura dos ciganos. Dificilmente se pode falar dos ciganos como um todo cultural e social, uniforme. “A cultura é o plano de vida para a existência de um povo, o projecto que um povo traça. O que podemos enumerar são certos traços, certas formas organizativas, certas estratégias que constituem o núcleo cultural comum, ou pelo menos amplamente partilhado, ainda que em cada momento, cada lugar e cada conjuntura podem apresentar-se variações adaptativas e pode mudar dinamicamente” (Méndez, 2005:53-54).

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Porque o povo cigano soube, historicamente, “converter os perigos em oportunidades e as ameaças em sobrevivência”, Ximo Garcia Roca (2005:175) identifica algumas mutações - à semelhança das mutações identificadas por Liégeois em 1976, no seio das comunidades ciganas, fruto de “transformações sociais contínuas, lentas e silenciosas”, que ao acumularem-se e ao retroalimentarem-se dão lugar a mutações: i) a mutação que produz um mundo único, interconectado e interrelacionado; ii) a mutação social que afecta o modo de viver juntos na sociedade mestiça feita de cruzamentos, de intercâmbios e de identidades plurais; iii) a mutação que se desvela no modo de se representar enquanto ser humano através do princípio da individualização, cujo horizonte é uma sociedade de indivíduos autónomos e fragmentados. Este autor também defende que estas mutações, por serem silenciosas, se podem observar melhor nos limites e nas fronteiras, sendo este o lugar onde melhor se conhece os limites de um sistema. Ximo Roca assinala alguns caminhos da miscigenação que se observam actualmente: i) a diversidade cultural (consubstanciando-se em elementos étnicos, religiosos, culturais e políticos); ii) da identidade à identificação, originando identidades múltiplas, consubstanciando-se na simultaneidade de se “ser cigano, madrileno, espanhol, europeu e cosmopolita” (p.179), defendendo que seria preferível pensar em termos de identificações do que em termos de identidades - aliás ideia também defendida por Jean-Claude Kauffmann (2008:b); iii) a cidadania incondicional (cosmopolita e pertencente à humanidade) de ser-se pessoa cuja centralidade reside no reconhecimento da dignidade de todo o ser humano em toda a sua diversidade.

Para Ximo Roca, o mais desafiante neste processo de mutação é, sobretudo, a emergência do indivíduo, em que se passa de uma cultura do colectivo para uma cultura do sujeito, do protagonismo dos povos à centralidade das pessoas, requerendo uma reorientação dos mapas conceptuais e novas linhas de acção. O nascimento do sujeito, com os seus direitos e deveres individuais, será um desafio importante para o Povo cigano em três direcções complementares: 1) os limites da comunidade (sobretudo advindo nos anos 90), com a “dissolução das sabedorias”, em que os “patriarcas do povo cigano testemunham as dificuldades que têm na governação dos jovens ciganos, para quem o próprio sujeito é o fundamento dos valores”; 2) a autoridade da consciência, em que “o jovem reivindica ser senhor do seu destino”, rejeitando a autoridade dos pais/patriarcas que impõe casamentos arranjados, por exemplo. Assim, a autoridade da consciência converteu-se no referente dos valores morais; 3) o

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reconhecimento da dignidade inseparável da afirmação das capacidades dos indivíduos, uma vez que “as pessoas têm problemas mas também têm soluções, têm carências mas também têm potencialidades”.

Com alguma frequência, ouço queixumes dos não ciganos, reféns de algumas ideias feitas sobre os ciganos (livres, anarquistas, patriarcais, nómadas, atrasados, analfabetos, machistas, desconfiados, mentirosos, agressivos, violentos, ladrões, trapaceiros, preguiçosos, parasitas, porcos, etc…), dizerem que já não se encontram, nas comunidades ciganas, pessoas que sirvam de interlocutores credíveis capazes de serem disciplinadoras de comportamentos pouco civilizados, modernos e/ou democráticos. Também escuto desabafos de pessoas ciganas que se confrontam com exigências que lhe são feitas pelas instituições do sistema politico e social, às quais gostariam de corresponder positivamente (no intuito de serem aceites/incluídas na sociedade maioritária) mas que lhes colocam dilemas (Mendes, 2005), com os quais ainda não sabem como lidar, por um lado, mas também porque as obrigam a adaptações que vão ao arrepio das tradições e da lei cigana, revelador de que através de um “processo interior de tensão entre estrutura e agência no que concerne à necessidade de obediência à chamada lei cigana e à normatividade sociocultural comunitariamente imposta e ao desejo de mudança, assiste-se a conflitos latentes intra e intergerações no que diz respeito à preservação e mudança de valores, reconfigurando práticas culturais e contornando a Lei cigana” (Casa-Nova, 2009: 196).

Ouvir queixumes e desabafos pode alimentar a experiência vivida do investigador e, por isso, constituir aquilo a que Bogdlan e Biklen (1994:84) traduzem por “os investigadores qualitativos partem para um estudo munidos dos seus conhecimentos e da sua experiência…” e que “as convicções teóricas e políticas prévias do investigador se baseiam e são transformadas pelas experiências vividas pelo grupo que investiga” (Bogdan e Biklen, 1994:61). Assim, é através de um trabalho constante de vigilância crítica que opero sobre mim, que vou desconstruindo ideias feitas e sentimentos arreigados, contribuindo para um estar e um pensar desassegado e interpelador.

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