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Transformar a experiência em consciência

Capitulo 3 – Processos de construção das identidades: socialização, aprendizagem

3.3. Transformar a experiência em consciência

Se a aprendizagem é um processo que gera o saber por via da conceptualização da experiência e que a experiência implica um vivido, significa que toda a aprendizagem supõe uma transformação. Tal mudança intervém no momento da compreensão (apreender) que a pessoa inicia quando se interroga sobre «Quem é? Qual a sua relação com o mundo?» Este processo de consciencialização é considerado o núcleo central, ou o fim último, da aprendizagem experiencial. Assim, a biografia pessoal articulada à história social, as narrativas de vida devem ser vistas sob o prisma das relações de poder que existem numa dada sociedade, pois toda a experiência se desenvolve num contexto fortemente carregado de sistemas de valores dominantes. Será esta compreensão (apreender com) que conferirá à pessoa a capacidade e o poder para agir, adquirindo novas formas de pensar, de se posicionar em relação à sua vida e a reinventar-se. Este processo consubstancia o que Paulo Freire designa de conscientização, o qual impulsiona o sujeito para agir sobre o seu contexto de vida e a mudá-lo (Barkatoolah, 1989: 51-52). Todavia, a conscientização confere capacitação, já o poder pode não induzir a conscientização.

A noção de experiência, na sua relação com a aprendizagem, sublinha o esforço de explicitação de que a experiência é objecto na abordagem da entrevista compreensiva, ou em profundidade, tornando-se numa oportunidade de aprendizagem. Mas a experiência pode também justificar o hábito e estar na origem de conformismos (Dominicé, 1989:58). Daí que seja necessário, por vezes, desaprender, na acepção de Christine Josso (2002), o que torna o processo de transformação e reconfiguração sentidos, por vezes, como “desorientadores”.

Reforçando a ideia do modo como a “aprendizagem guiada” é realizada nas comunidades ciganas, está a concepção da construção do conhecimento tácito através dos processos de socialização em que este ocorre por via do diálogo frequente e comunicação face a face, com intuições valorizadas em grupos restritos, através de uma relação mestre aprendiz, por “observação, imitação e prática acompanhada por um tutor”, enfim, em que há “uma troca de conhecimentos face a face entre pessoas” (Silva, 2004:145). Por outro lado, o processo de tomada de consciência individual e colectiva,

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no seio das comunidades ciganas, também passa por um processo de “externalização”, em que o conhecimento tácito é convertido em conhecimento explícito através de metáforas (muito usadas na linguagem e discursos ciganos) e da oralidade, nos conselhos de anciãos e nas tomadas de decisões colegiais, e nos ensinamentos entre mãe filha ou pai filho, ou ainda entre “tios” e membros da comunidade.

A propósito do papel atribuído ao aprendiz, Ana Gimenez (2003: 211), antropóloga cigana catalã, diz-nos que as crianças ciganas referem-se às aprendizagens realizadas “eu aprendi” o que reforça o papel activo do sujeito nos processos de apropriação da aprendizagem e dos conhecimentos. “Na família cigana, a criança vive uma aprendizagem cooperativa, mimética, prática, onde a utilidade é fundamental. Trata-se de um ato individual que mostra um sistema pedagógico baseado na invisibilidade daquele que ensina. Aquele que ensina, num contexto cultural cigano, podendo ser o irmão, o pai ou parente, não adopta uma função explícita de ‘ensinador’. Trata-se de um processo de aprendizagem por imitação em que a criança aprende de modo natural, sem nenhum tipo de imposição e sem que ponham em jogo os papéis de autoridade entre aquele que ensina e o que aprende.” Deste modo, a criança percebe que a assimilação do conhecimento se produz de modo próprio, e é ela própria que adquire os conhecimentos e os expressa com este significativo conceito de eu aprendi. Para esta autora a educação faz-se imersa num processo de enculturação ou de socialização, global e processual, através de uma aprendizagem cooperativa e prática, num continuum entre grupos de idade – adultos, jovens e infância – sustentado em relações afectivas fortes e de mútua protecção. “Este sistema integrado de aprendizagem e de relações intergeracionais muda drasticamente, no meio escolar, em que a infância é socializada num sistema de aprendizagem individual e competitivo ”(Gimenez, 2003:210), centrado no “ensinar”. Esta ideia de educação comunitária, proporcionada por vários agentes educativos na comunidade cigana é corroborada por Jean-Pierre Liégeois (2001:70) quando diz que ‘‘crescer cigano” significa ter pelo menos três categorias de educadores e ser, ao mesmo tempo, educador: i) os avós (pessoas idosas) que fazem a ligação com o passado, os anciãos ancestrais e a memória do grupo; ii) os pais (pessoas casadas), a quem deve imitar e dos quais recebe responsabilidades que deve assumir para aceder à autonomia progressiva; iii) os pares (irmãos, primos, outras crianças), nomeadamente as irmãs mais velhas, que assumem o papel de mediação e de ligação entre os adultos e os indivíduos da mesma idade. Desta forma, no processo de aprendizagem, a criança

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cigana vive processos horizontais e verticais de apropriação de saberes e poderes, vivendo a reversibilidade de papéis socioeducativos. Assim, os procedimentos pedagógicos ciganos distinguem-se dos não ciganos, porque “desenrolam-se num contexto de tarefas reais, através da participação, em vez de uma instrução verbal fora do contexto, e como preparação para uma futura participação. Os conteúdos pedagógicos são, também eles, diferentes uma vez que os problemas quotidianos das pessoas ciganas são sobretudo problemas de interacção pessoal, as generalizações lógico-formais são desconhecidas e inúteis, sendo substituídas por simbolismos concretos e específicos, que remetem para experiências partilhadas e recíprocas. O conhecimento adquire-se não ‘fazendo perguntas’ mas vivendo respostas não pronunciadas” (Piasere, citado por Liégeois, 2001:71).

Retomando a exposição de Gaston Pineau (2001), tenta-se situar a “aprendizagem guiada” “à maneira cigana”, os processos de escolarização e formação “à maneira dos senhores” e os processos de transmissão oral da lei cigana aproveitando o quadro conceptual apresentado.

Aprendizagens experienciais pela acção

Aprendizagens de interiorização por aplicação

Aprendizagens formais por transmissão articulada

Saberes tácitos Saberes explícitos

Aprendizagens de expressão por explicitação

Processos de socialização primária que permitam a “aprendizagem guiada” no processo de formação endógena

(“agir contextualizado”)

Processos de socialização secundária inerentes à Escolarização no processo de

formação exógena

Processos de transmissão oral contextualizada da Lei cigana que permitem a reprodução

cultural

Articulando as aprendizagens de si (subjectivação), dos outros (socialização) e das coisas (ecologização). Fonte: Pineau (2001:340)

Neste estudo, parte-se do princípio que as pessoas ciganas têm capacidade de agir sobre as suas escolhas de vida, apesar de uma aparente socialização endógena predeterminante das suas vidas “à maneira cigana”. Resta saber qual o grau de profundidade da acção e da sua consciencialização, porque “todo o actor social mergulhado numa prática social, num grupo social, tem um conhecimento empírico dessa prática, das leis que regem o grupo, na medida em que faz o que é preciso fazer para que as coisas corram normalmente. A maior parte do tempo, esses conhecimentos não emergem na consciência, mas esse saber implícito exprime-se na vida do quotidiano, nos gestos, nos saberes fazer, nos saberes ser, nos saberes viver. As condutas desviantes têm a

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propriedade de virem provocar ou revelar estes saberes, semear a perturbação naquilo que se faz e não se faz” (Le Grand, 1989:114), fazendo emergir a explicitação de tais saberes. Por outro lado, o facto dos grupos ciganos estarem a viver momentos perturbadores trazidos pelos acontecimentos sociais e medidas de política social98, pode despoletar esse sentimento de que as coisas não estão a funcionar bem, levando-os a tomarem consciência delas e do quanto já se adaptaram, mudando algumas práticas sociais e culturais.

Para Christine Josso (1989), o processo de formação revela-se através “de desafios nascidos da dialéctica entre condição individual e condição colectiva da nossa humanidade.” E a “integração social para os sociólogos ou a enculturação para os antropólogos” designam a interiorização de representação “sobre as idades, os estatutos, as tarefas e os papéis da vida comunitária” recordando os momentos de rupturas ou de “escolhas intuitivas” verbalizadas como sendo óbvias. Assim, “se os nossos comportamentos socioculturais são esquemas relacionais de base que foram aprendidas pelas experiências, exercidas e integradas nos rituais próprios a cada comunidade, não deixam também de ser remodelados pelos temperamentos, as sensibilidades, as infinidades de nuances que manifestam esta originalidade a que somos sensíveis cada vez que encontramos personalidades que nos surpreendem na sua redefinição dos esquemas” (Josso, 1989: 165). O que tenho vindo a observar nas conversas que tenho tido com pessoas ciganas, nomeadamente algumas alvo deste estudo, que conseguiram contrariar o determinismo sociocultural, através das suas “escolhas intuitivas” ou da sua capacidade de escolha e de inovação que “testemunham uma frágil tensão entre a tradição (perpetuação de experiências conhecidas) e modernidade (abertura a uma outra experiência)” (p.165) confirma a visão de Josso. Deste modo, as experiências que relatam contam-nos, para além do que aprenderam da vida, o que experienciaram das circunstâncias das suas vidas. Concebe-se o processo de formação como sendo um processo que “salienta o inventário de recursos experienciais acumulados e as transformações identitárias. Coloca também em evidência as tensões dialécticas particulares tais como: capacidade de reacções programadas e capacidade de iniciativas, capacidade de identificação e capacidade de diferenciação, capacidade de submissão e

98 “A vida das comunidades ciganas é condicionada por normas criadas por não ciganos, pensadas por

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capacidade de responsabilização, capacidade de orientação imitada de modelos culturais e capacidade de abertura ao desconhecido” (p.166).

3.4. Cruzamentos de olhares: educadora de infância, formadora de adultos e