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Da ideia de fragilidade à ideia de escolha selectiva

Capítulo 2 Definição da problemática do estudo

2.2. Da ideia de fragilidade à ideia de escolha selectiva

“Mesmo em contextos sociais marginalizados, desfavorecidos social e economicamente, é possível ter espaço para a tomada de opções sobre o projecto de vida de cada um, de forma autónoma, distanciada do grupo, que, por seu lado, interfere continuamente sobre as perspectivas de identificação com o grupo de pertença e de afirmação identitária adaptada, reconfigurada e reconstruída num processo contínuo” (Magano, 2010:152).

Pretende-se, com esta afirmação, realçar a possibilidade de escolha e de opção que cada um é convocado a fazer sobre o seu projecto/trajecto de vida, “brigando” com ou “manejando” as forças atractivas do grupo de pertença. Essa capacidade de opção vai sendo burilada pelas experiências de vida pessoal, social e profissional, ou seja pelas várias instâncias de socialização da pessoa. Assim, de uma ideia de vulnerabilidade das comunidades ciganas, opta-se pela ideia da sua capacidade de escolha e de opção selectiva das várias atracções que se atravessam nos seus percursos de vida pessoal e colectiva.

Os estudos produzidos sobre as comunidades ciganas em Portugal69 focam alguns dos lugares e contextos de desencontros que têm incomodado várias instituições do sistema

69 Para além do levantamento feito por Maria José Casa Nova (2009: 17) que dá conta de 33 teses de

mestrado concluídas entre 1990 e 2004, e de 3 teses de Doutoramento entre 2004 e 2008, ver os vários estudos da colecção “Olhares”, disponíveis na biblioteca on line do site “Ciga-nos” do ACIDI

http://www.ciga-nos.pt/Default.aspx?tabindex=8&tabid=15 . Posteriormente, tive acesso a mais três teses de Doutoramento: Manuela Mendes (2007), Olga Magano (2010) e Lurdes Nicolau (2011), sobre as comunidades ciganas em Portugal. Sei que existem mais três teses de doutoramento de Ana Brinca, de Carlos Jorge Sousa e Micol Brazzanenni, mas às quais não tive acesso. Acrescenta-se também os estudos de José Gabriel Pereira Bastos sobre os ciganos sintrenses e de Alexandra Castro sobre os mediadores municipais.

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estatal Português, como as escolas, os hospitais, as prisões, a segurança social, a justiça, o mercado de trabalho, os bairros sociais e a religião. Da minha parte, gostaria de contribuir para a desocultação dos esforços de adaptação que as comunidades ciganas têm vindo a realizar, ideia também corroborada por Olga Magano (2010:151), reveladores de potencialidades mais do que de fragilidades.

“A vida comunitária, a economia marginal e de subsistência, viver o presente, a mobilidade, a variedade dialectal, a solidariedade, etc…elementos que fazem a força dos membros de uma cultura não apreensível que querem levar uma existência na convivialidade e na diversidade, fazem a sua fraqueza quando se encontram imersos numa sociedade que os quer assimilar e que apresenta características inversas: individualismo, capitalização, previsão, sedentarismo, uniformidade, competitividade, dependência, etc.” (Liégeois, 2007:98).

Para Jean-Pierre Liégeois (2007), as forças da cultura são, simultaneamente, as suas fragilidades, numa sociedade em processo de modernização acelerada, em que se vê confrontada com “regulamentos, dependência das prestações sociais, a intrusão das masse média e a imposição do trabalho social que os coloca sob tutela, o grupo vê violada a sua intimidade cultural” (p.98). Face a estas mudanças, cada vez mais “o território cigano está nele próprio e as fronteiras são psicológicas” (p.98), obrigando-o a reagir ao seu envolvimento. Mas o espírito de resistência cigano mantém-se: se não houvesse cultura, porquê esta luta constante para permanecer cigano e, simultaneamente, evoluir em direcção ao que pretende ser? Seria mais fácil integrar-se ou deixar assimilar-se. Se não houvesse identidade cigana, mais forte que as induzidas e utilizadas para os classificar e dispersar, porquê a similitude entre grupos e famílias e este forte sentimento de pertença a um conjunto mais vasto? (p.100).

A ideia de fraqueza da cultura sujeita a processos de aculturação,70, fruto de contactos com as comunidades de acolhimento71 - processos que caracterizaria antes por

70 Sobre o grau e intensidade do processo de aculturação, esclarece o Dicionário de Etnologia e

Antropologia: “Processos complexos de contacto cultural através das quais as sociedades ou grupos sociais assimilam ou se vêem impostos traços ou conjuntos de traços provenientes de outras sociedades”. (Baré, in Bonte & Izard, 2008:1).

Ainda a propósito dos processos de aculturação, Bernado Bernadi (2007:109-113), atribui à enculturação o processo de socialização primária que pode acompanhar ou sobrepor-se à aculturação. Enculturação diz respeito à dinâmica interna de uma cultura particular em relação aos seus membros e a aculturação refere-se às relações existentes entre as demais culturas e aos efeitos que derivam do seu contacto. Este autor assinala diferentes fenómenos fruto desses contactos: a simbiose cultural, que deriva da

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dinâmicas de trocas e intercâmbios, isto é, processos de “apayonar” e de “aciganar” – não tem em conta a capacidade reinterpretação permanente que a Cultura manifesta, fruto de processos de socialização e não tanto de hereditariedade - tese também defendida por Casa Nova (2008) – que Liégeois, já em 1976, identificava.

“Não é a hereditariedade mas sim a socialização que permite ter uma atitude face aos diversos tipos de ciganos:

- o velho cigano perante as correntes de mudança não se sentia ameaçado e conservava os seus costumes;

- o cigano intelectual, virado para o grupo, para as mudanças e que introduz inovações para melhor guardar as suas tradições;

- o cigano aculturado que perdeu a quase totalidade dos seus valores fundamentais, isto é, aculturou-se pelo casamento, pelo trabalho, pela riqueza, não se reconhecendo no grupo de origem” (Liégeois, 1976:188).

A esta classificação – velho cigano, cigano intelectual e cigano aculturado - acrescento a figura do jovem cigano, portador de mudança, ainda que não seja intelectual, pelo facto de conviver mais assiduamente com não ciganos, não se sentindo assimilado mas “aculturado QB”, não renegando as suas origens e os seus valores, reinterpretando-os

coexistência ou convivência de duas ou mais culturas e que exige um convívio não ocasional ou temporário; a osmose cultural que deriva dos contactos de vizinhança ou fronteiriços, como trocas comerciais ou alianças matrimoniais; a fusão cultural que origina um povo mestiço. Para este autor, cada cultura desloca-se e entra em contacto com outras formas de cultura da maneira mais inesperada, seja por via individual ou seja por via colectiva, e, uma vez que toda a cultura é dinâmica, a aculturação representa uma constante da cultura. Por isso, os contactos culturais causam as transformações no interior de uma cultura, tanto por vias informais como por vias formais, ocultas e patente, dando lugar a fenómenos de encontro e desencontro, de aceitação e de recusa. Nesse sentido, o factor tempo é fundamental, porque as transformações exigem tempo e medem-se no tempo.

71 Acolhimento remete-nos para uma noção positiva de hospitalidade, o que nem sempre acontece. A verdade é

que os ciganos vivem como uns estrangeiros no seu próprio país. Podemos substituir pela expressão sociedade de inserção, ou sociedade maioritária, sendo que ambas nos reenviam para a noção de vulnerabilidade e de menoridade, reforçando a ideia de minoria étnica, não tanto por serem em número inferior mas porque não têm acesso às redes de poder. A este propósito ver Montenegro (2008), Saber receber, saber acolher…Um

contributo para um diálogo, a propósito do Ano Europeu do Diálogo Europeu, in REDEITEA nº42, REAPN.

Pp.34-35. A propósito deste sentimento de ser estrangeiro na sua própria terra, sentimento que muitos ciganos experienciam, António Carmona Fernández (2005: 27) sustenta que as sociedades pós-modernas puseram em marcha um poderoso gerador de estrangeiros “de dentro”. Agora todos nós somos estrangeiros para a empresa global que produz uma enorme oferta de estrangeiros nacionais. No nível inferior está o estrangeiro de sempre (mouro, negro, islâmico, …). A seguir vem o estrangeiro recente (o espanhol em Euskadi, o sérvio na Croácia, o albanês na Macedónia) e, por fim, os estrangeiros de alta especialização (o doente, a mulher, o homossexual e todas as minorias: os ciganos, etc..).

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(Liégeois, 1997:200). Nesse sentido, partilho com Maria José Casa-Nova, a ideia de reconfigurações identitárias que permitem a coexistência imbricada de identidades complexas.

Num estudo de Olga Magano (2010,2008:10) apesar de ter distinguindo “subculturas ciganas” mais ou menos tradicionalistas, mais ou menos permissivas (os urbanizados e os rurais) “no que toca a viver a cultura porque, no que toca o viver a Lei cigana, usos, costumes e valores, é rigorosamente igual em todas as subculturas” identificadas. Albert Garrido (1999:39-40) também classifica os ciganos em três tipos de tendências comportamentais face à sua ciganidade:

- a tendência ortodoxa, maioritária e dominante que tem uma ideia do grupo muito forte e arreigada;

- a tendência mista, que vive numa permanente tensão entre abandonar a ortodoxia e soltar-se do que não considera essencial. Esta tendência é maioritária nos espaços em que a convivência entre ciganos e não ciganos é antiga, pacífica e sólida;

- a tendência heterodoxa, em que o preço individual a pagar por se ser heterodoxo é muito alto e a sua capacidade de modificar a imagem monolítica que o resto da sociedade tem dos ciganos é muito escassa. Esta tendência vive no receio permanente de colocar em perigo a própria existência dos ciganos. Esta última é uma tendência rara, sendo que a maioria prefere “agarrar-se” a velhos costumes do que adentrar-se em territórios inexplorados. O autor reconhece que não conhece ciganos que tenham posto em dúvida “elementos vitais da identidade cigana”.

Por sua vez, Paloma Gay e Blasco (1999:58), distinguiu, na sua relação com não ciganos, quatro grupos-tipo de ciganos:

- o primeiro e o menos numeroso, descrito como sendo a elite72 no interior da minoria cigana: jovens e mulheres com um nível de escolaridade elevado, de famílias social e/ou

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José Gabriel Pereira Bastos (2011), antropólogo português, identificou seis critérios para classificar as pessoas ciganas nas diversas elites: 1) a nível interno, cultural, a «honra», de acordo com a Lei cigana; 2) depois, em certos meios, a liderança religiosa, de acordo com as hierarquias das Igrejas Ciganas; 3) usando critérios economicistas, a riqueza, expressa nas «festas»; 4) a liderança associativa tradicional; 5) a dignidade intelectual dos universitários e 6) a capacidade política dos que têm sido apoiados por ONG's e pelo ACIDI (os mediadores, etc.). (Fonte 5) Por outro lado, efectivamente, as próprias comunidades ciganas, falam das famílias com mais poder económico (associada a antigos negociantes de gado que

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economicamente na sociedade dominante, que militam em associações ciganas, casados com não ciganos;

- também em número reduzido, o grupo dos que vivem ‘à maneira cigana’, conservando as tradições e formas de vida, desenvolvendo actividades tradicionais ciganas de forma rentável, tais como o flamenco, o comércio de antiguidades, etc..; - o grupo mais numeroso que atravessa um forte processo de mudança, os que vivem em zonas marginalizadas, em bairros sociais em conjunto com os não ciganos, vivendo precariamente ou sobrevivendo dos subsídios sociais e cujas crianças frequentam a escola assiduamente;

- um grupo desestruturado e marginal, o segundo mais numeroso, que vive em áreas desfavorecidas e segregadas, vivendo ao dia-a-dia muito precariamente, fortemente dependente de subsídios, mantendo pequenos negócios ilícitos, encarado como uma população problemática e difícil pelos outros ciganos que os percepcionam como falhando no cumprimento das normas da lei cigana, com grau de instrução muito baixo, cujas crianças raramente vão à escola e que, embora sedentarizados, deslocam-se frequentemente.

Continuando na linha de caracterização/tipificação de graus de aculturação de indivíduos e grupos ciganos, a antropóloga Teresa san Roman (1997:204-208) afirma que a aculturação pode produzir graus distintos em que a cultura mantém-se com adaptações, selecções e empréstimos diferentes consoante outros factores de integração e da qualidade das relações sociais interétnicas, sendo que a permanência da identidade étnica e o nível de militância étnica estariam mais relacionadas com a eficácia da cultura herdada, que Maria José Casa-Nova designa por “segurança para acção”, e com as novas estratégias de intervenção política e social, ou seja, os impactos das políticas sociais. Conjugando alguns factores, a investigadora identifica sete grupos-tipos de ciganos na vizinha Espanha:

- Ciganos muito pobres que ocupam bairros de lata ou povoações isoladas e anacrónicas, cujo nível de aculturação é baixo e o interesse pela escola é mínimo.

ainda hoje detém poder financeiro para investir em lojas, em empregados, em determinado tipo de mercadoria, por exemplo).

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- Pequenos vendedores de drogas, que vivem nos mesmos locais que o grupo anterior, cujas frequência e rendimento escolares é muito baixa e a manutenção da cultura e identidade étnica é a menor de todos os grupos-tipos.

- Ciganos pobres de bairros de lata, povoações, prédios e casas em bairros sociais, que raramente convivem com os dois grupos anteriores e vivem da venda ambulante legalizada. São mais constantes na escolaridade dos seus filhos e esperam mais da escola do que os dois grupos anteriores. Exibem uma identidade étnica robusta e estável, mantendo os traços culturais herdados.

- Ciganos ocupados em tarefas não assalariadas, tais como vendedores, equiparáveis às classes populares do país, vivendo em pequenas casas ou apartamentos, espontaneamente adquiridos. Mostram-se realmente interessados na escolarização dos seus filhos e mantêm-se fiéis à organização e cultura. Neste grupo nota-se, por vezes, uma certa tendência em passar-se por “paítos” (não ciganos) sem contudo renunciar nem à cultura nem à sua identidade no espaço intraétnico, transmitindo uma identidade étnica forte e militante.

- Ciganos cuja integração é antiga, com uma forte tendência de trabalho autónomo (pequenos negócios e comércios). Atribuem um grande valor à educação nas suas várias dimensões. A manutenção dos traços culturais é forte, na qual a sua ciganidade se mostra forte, ocultando-a apenas nalgumas ocasiões muito pontuais. Integram com frequência associações e as igrejas evangélicas.

- “Novos plenos integrados”: são ciganos que realizaram o seu processo de integração através da sua incorporação em postos de responsabilidade nas associações ou nas igrejas evangélicas. Vivem uma certa ambivalência nos seus papéis como líderes ciganos em estruturas não ciganas, originando conflitos com a tradição cultural herdada, em que a solidariedade do parentesco se opõe, por vezes, às obrigações inerentes ao desempenho dos seus cargos, cedendo de parte a parte para conseguir um certo equilíbrio. Têm um forte interesse pela educação dos seus filhos e uma certa tendência para individualização. A sua identidade étnica é a mais militante dos grupos anteriores, em que a manifestação da cultura se vê tanto a nível dos símbolos étnicos como nas formas organizativas e regras e valores associados, tais como a solidariedade parental e

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translocal, estratégias alternadas, a mobilidade, a idade de entrada no matrimónio, o número de filhos e os valores associados.

- Ciganos dedicados ao tráfico de droga como vendedores directos e estáveis, ainda que sejam muito poucos os que chegam a este nível e, com frequência, estão associados a uma organização de venda que utiliza a sua rede de parentesco, reforçando traços culturais herdados.

Destes sete grupos-tipo, a investigadora refere que o mais numeroso se situa nos quatro primeiros tipos e que o sexto tipo é o mais reduzido de todos.

A ideia de aculturação pode denotar uma perspectiva depreciativa sobre a pessoa portadora de uma determinada cultura, a qual foi aculturada, no sentido de “adulterada”, “dominada”, “descafeinada” (Enguita, 1999). Aculturação também pode acontecer quando duas culturas distintas, ou parecidas, são absorvidas uma pela outra, equidistantemente, formando uma nova cultura diferente, onde essa nova cultura terá aspectos da cultura inicial e da cultura absorvida. Esta versão do fenómeno de aculturação é mais consentânea com o que designo por “aciganar” e “apayonar”, mostrando que pode nascer uma nova cultura miscigenada, desses movimentos centrífugo e centrípeto também designada de reconfiguração identitária por Maria José Casa-Nova, Manuela Mendes e Olga Magano.

Reforçando a ideia de escolha selectiva, José Luís Lalueza e al. (2001:10-11) afirmam que as comunidades e os grupos ciganos negoceiam as suas identidades em contextos de dominação, verificando-se que as mudanças respondem ao contexto particular em que vivem, seguindo uma evolução sinuosa, circunstancial e conjuntural, negociando “estrategicamente os seus elementos críticos de identidade, com os outros grupos com quem convivem e se relacionam, devendo-se pois, analisar essas mudanças como efeitos de legitimação e de empowering. Só analisando tais diferenças culturais, como fruto das relações de dominação a que os ciganos forem sendo sujeitos, é que podemos entender a sua dinâmica histórica e suas transformações”.

Em Manuela Mendes (2005:39-40) o conceito de assimilação enquanto processo que “implica a perda dos traços e elementos culturais específicos e consequente diluição do grupo étnico na formação social dominante” assemelha-se ao conceito depreciativo de aculturação; ao passo que o conceito de incorporação, enquanto processo de “adaptação

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à formação social maioritária mediante a transformação selectiva de alguns dos traços culturais específicos, sendo uma das possíveis vias para alcançar um novo equilíbrio entre grupo maioritário e grupo minoritário, mantendo-se assim a sua identidade étnica”, revela uma concepção mais positiva e semelhante à ideia de apropriação activa dos empréstimos e das trocas culturais que defendo e à ideia de “segurança para a acção” (Casa Nova, 2008).

Pertinente é conhecer e saber, tal como Manuela Mendes, “situar os limites a partir dos quais desaparece a diferença ou seja a identidade étnica” ou o “núcleo central da etnicidade”.

Manuela Mendes (2005:40), retomando conceitos de Barth (2008), distingue conteúdo étnico como o “depositário cultural cigano, isto é, a trama que compõe a sua cultura” e a identidade étnica como uma concepção construída pelos membros do grupo e pelos outros grupos enquanto categoria de pessoas com uma identidade própria por oposição a outras categorias. A identidade étnica seria o “núcleo central da etnicidade” o qual não pode existir sem um determinado conteúdo étnico; no entanto, este pode ser reduzido a níveis simbólicos sem que aquela desapareça. Segundo esta autora, as transformações ocorrem no conteúdo étnico (cultura de superfície) e não tanto na identidade étnica (cultura profunda). Para Manuela Mendes, se a identidade étnica for posta em questão, pode-se entrar num processo de assimilação, de diluição, pode desembocar no seu desaparecimento enquanto grupo étnico. Contudo, convém não esquecer que mesmo a identidade étnica pressupõe a manifestação e âncora em conteúdos étnicos. Isto é, que existe uma relação complexa e dialógica73 entre os conteúdos étnicos (cultura de superfície) e identidade étnica (cultura profunda).

É preciso, pois, realçar o esforço empreendido pelos grupos ciganos para se adaptarem criativamente aos contextos político, sociais e económico; desmontar a ideia comum de que são um povo “arcaico, monolítico, imutável”. Como refere o jornalista Albert Garrido (1999:63-65), “toda a sociedade adapta-se constantemente ao envolvimento e a outras sociedades para sobreviver; no caso dos ciganos não se tem apreciado este comportamento como sendo algo saudável e conveniente; considera-se que tem sido até agora insuficiente e convoca-se, com frequência, o mundo cigano a uma confusa

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Segundo Edgar Morin (2008:106-107) “o princípio dialógico permite-nos manter a dualidade no seio da unidade. Associa dois termos ao mesmo tempo complementares e antagónicos.”

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cerimónia entre assimilação oficiada com roupagem de paternalismo. (…) As situações de marginalização indubitável que os ciganos têm sofrido durante décadas motivaram que a nossa cultura tenha sido mais espelho que janela, porque a marginalização bloqueia a evolução”.

Olga Magano (2007b) baseando-se noutros autores74, identificou alguns dos aspectos da especificidade cultural cigana que atravessa os vários grupos “a ideia de uma origem e passado comum, uma língua própria, a força da família e sua estrutura, a valorização da tradição, da experiência e da idade como princípios estruturantes do status, o respeito e o culto que consagram aos seus mortos, a coesão e a diferenciação assumida face aos não ciganos, os casamentos endogâmicos, o valor da palavra dada, a ideia do presente, a protecção das crianças e a solidariedade”(p.7-8). Contudo, defende que o contacto com outros grupos e círculos sociais “pode afectar vigorosamente a sua visão do mundo, estilo de vida e interacção com as redes mais abrangentes e diversificadas”, fazendo com que o indivíduo possa fazer opções, “mesmo em culturas totalizantes ou muito hierarquizadas” (p. 9). Esta autora considera que serão os ciganos urbanizados os mais expostos às influências culturais e comportamentais da sociedade dominante, revelando um sistema de dupla referência justapondo os padrões ciganos e não ciganos, “reconhecendo a importância da escola, a necessidade de habitar numa casa, o desejo de terem estabilidade económica, e, devido às necessidades de consumo, submeterem-se lentamente a actividades assalariadas apesar de permanecerem ciganos de alma e coração” (p.10). Comportamentos que revelam poder existir formas distintas de ser cigano das tradicionais, “sendo possível conciliar aspectos da modernidade com alguns traços culturais ciganos” (p.12), e que os próprios designam de “evolução” natural para acompanhar os tempos (também mencionado pelos entrevistados).