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Socialização, processos educativos e formativos

Capitulo 3 – Processos de construção das identidades: socialização, aprendizagem

3.2. Socialização, processos educativos e formativos

«Vimos cá para aprender e não para ensinar!»95

Ainda que esta expressão possa revelar antes uma atitude defensiva do que uma determinada concepção de ensino e de aprendizagem, interpelou-me profundamente, obrigando-me a repercorrer alguns dos conceitos fundadores da formação de adultos e da estruturação do conhecimento ancorados nos processos da construção dos saberes experienciais, os quais ocorrem “numa multiplicidade de contextos e de situações de vida das pessoas, sendo os contextos espaços de interacção da pessoa consigo própria, com os outros, com as coisas, com a vida em sentido lato”. O facto de a aprendizagem experiencial ser um elemento chave no processo de aprendizagem, “constituindo a base para a reflexão, problematização e formação de conceitos”, e contribuindo “para a transformação da pessoa, em termos pessoais e identitários, promovendo a sua emancipação” (Pires, 2007:10), a sua articulação com os processos de socialização no seio dos grupos ciganos é central para a compreensão dos processos de mudança sociais endógenos e exógenos aos grupos ciganos.

A mudança social e cultural, para uma sociedade, tem duas causas: a dinâmica interna dessa sociedade, isto é, o conjunto de factores endógenos e a dinâmica externa daquela sociedade, ou seja, o conjunto de factores exógenos. Trata-se de uma distinção puramente operativa que permite, de um modo claro, a análise das fontes da mudança, porque é evidente que os dois tipos de dinâmicas agem um sobre o outro e que a mudança é o resultado não de uma dinâmica ou da soma das duas, mas da sua combinação (Liégeois, 1976:107-108).

As mudanças sociais podem ser olhadas de modo plural e aquela que é aqui adoptada é do tipo endógeno, exógeno ou ambas em simultâneo. Assim, as mudanças além de serem determinadas por factores internos ou externos a um sistema, também podem assumir formas distintas: lineares, evolutivas, cíclicas, contínuas ou descontínuas. As formas evolutivas (mencionadas pelos entrevistados) podem ser mudanças transformadoras, de 2º nível ou estruturais que, por vezes, também podem ser fruto de conjunções complexas de elementos formadores de um sistema. Neste caso, nem

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Expressão dita por uma pessoa cigana no âmbito de uma formação, referida na nota de campo 1 transcrita anteriormente, no capítulo 2.

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sempre são previsíveis. As formas reprodutivas podem ser as de manutenção do sistema, de 1º nível. As mudanças evolutivas podem contudo trazer disfunções e, por retroacção, deteriorar o processo de mudança. Mas também podem acontecer mudanças que ocorrem por factores exógenos e endógenos, de modo misto, caso sejam observados numa temporalidade longa: “desenvolvendo-se, produzem resultados que podem afectar não apenas as regras de funcionamento de um sistema no qual aparecem, mas também o meio envolvente do sistema, provocando uma reacção neste” (Boudon e Bourricaud, 2004:75). O tipo misto, podendo implicar inovação no meio envolvente, é, geralmente, incompatível com uma visão determinista.

Gérard Vergnaud (2001:212-213) explica algumas das componentes da experiência para a construção das competências e saberes-fazer, decompondo-a em dois elementos: - a actividade desenvolvida composta por gestos, as actividades intelectuais e técnicas, a verbalização e o diálogo, a interacção social e a afectividade;

- o esquema, composto por um objectivo e antecipações, regras de acção e de controlo, conceitos em ato e teoremas em ato, frequentemente tácitos e implícitos, possibilitando recolher informações pertinentes, referem-se aos conhecimentos linguístico, à interacção social e ao conteúdo, e possibilidade de inferências (ou retroacção) que permite a adaptação a diferentes situações.

Assim, para este autor, sendo a experiência incontornável, porque “não se domina um campo de actividade e não é possível tornar-se especialista sem experiência directa dessa actividade”, será a complementaridade entre a formação inicial, que fornece os instrumentos para interpretar a experiência, e a formação contínua que tira proveito da experiência dando sentido ao transmitido.

Por seu lado, Guy Jobert (2001:230-233) aborda a inteligência prática, ou inteligência em acção, adquirida na e pela acção, enquanto pensamento em ato, como sendo um conjunto complexo e coerente de atitudes mentais que combinam “o tino, a sagacidade, a previsão, a flexibilidade mental, a representação, o desembaraço, a atenção vigilante, o sentido da oportunidade, habilidades diversas, uma experiência longamente adquirida” (p.231). Esta descrição, sintetizada de “astúcia”, encontra a sua raiz no corpo e seria a “métis” grega, ou seja, a noção métier ou ofício, no qual se adquire a mestria. Assim, esta forma de inteligência prática é criativa porque, num mundo em mudança e instável,

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é movimento incessante e polimorfo. Enraizada no corpo porque se transmite através de movimentos, de gestos, de mímicas nas trocas com os outros, numa interacção indissociável entre as dimensões sensoriais, emocionais e cognitivas da pessoa, consubstanciando a noção de saber-fazer que enforma a concepção de competência enquanto produto da interacção entre o sujeito, o outro e o meio, na senda de Pineau sobre os três agentes educativos da pessoa: auto, hetero e ecoformação.

A competência é a capacidade de resolver problemas de maneira eficaz num dado contexto, sendo que a eficácia não existe em si mas determinada, entre outros, pelo contexto. A competência não é apenas aquilo que se faz mas como se faz de maneira satisfatória. Está, portanto, subjacente à própria acção. A competência responde à pergunta “como é que as pessoas resolvem problemas em contextos particulares?” Integra as estratégias de resolução de problemas, sendo estas o centro da competência e explicativas de como se consegue agir. São procedimentos intelectuais, da ordem dos conhecimentos processuais, que guiam a acção e permitem integrar outras competências em função do contexto. Na resolução dos problemas está subjacente um procedimento intelectual ainda que se trate de um problema de ordem relacional ou material. Por vezes, esses procedimentos são espontaneamente transferidos, no caso de uma mobilidade ou mudança de contexto, por serem, em parte inconscientes e automatizados ou por serem construídos na acção pela experiência. Esta noção de competência integra os saberes-referenciais (conhecimentos declarativos ou formais ou explicitados), a relação com o espaço (contexto físico ou geográfico) e o tempo (perspectiva temporal) e a interacção social (contexto social) (Bellier, 2001: 254).

O conceito de saberes experienciais conduz-me a revisitar o conceito de ecoformação (Montenegro, 2003), como resultado do processo de educação informal enquanto processo de socialização primária e secundária, que sintetiza os vários contextos de vivências, físicos e sociais. Esta modalidade de educação/formação é particularmente determinante no seio dos grupos ciganos. Nos grupos ciganos a educação/formação, sendo realizada em contextos informais, por impregnação, encarados enquanto processo de “educogenia”96

, a consciencialização dos seus efeitos formadores apenas aparece

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O conceito de “educogenia” e a acção educativa dos diversos contextos de vida do sujeito, que nos remete para a noção da ecologia da acção de Morin (2002: 93) em que “a acção é decisão, escolha mas também aposta. E na noção de aposta, existe a consciência do risco e da incerteza. (…) A ecologia da acção é, em suma, ter em conta a sua própria complexidade isto é, risco, acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto, consciência das derivas e das transformações”

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quando os indivíduos são questionados e interpelados nesse sentido. A sua tomada de consciência pode resultar quando “as coisas não funcionam como era suposto”97

, quando as regras e normas da cultura e da lei cigana são infringidas – vertente informal da cultura, retomando os trabalhos de Edward T. Hall (1994:79-114) – ou quando as pessoas são inquiridas nesse sentido. Assim, este estudo pretendeu, através da entrevista compreensiva ou em profundidade, saber “o que torna uma qualquer criança numa pessoa cigana”, questão utilizada para desencadear a conversa no guião de entrevista anteriormente apresentado (no capítulo 1).

A noção de aprendizagem, na cultura cigana, é indissociável do processo de socialização, iniciada já na sua socialização primária e é radicalmente diferente da utilizada nas instituições de educação formal. Como nos afirma Lalueza e al. (2001), as práticas socializadoras dos ciganos são baseadas na participação das crianças no mundo social dos adultos e “em técnicas de aprendizagem guiada”, que são diferentes das da escola, na qual se adquirem conhecimentos de forma descontextualizada. Efectivamente, nos grupos ciganos “valoriza-se o conhecimento social e a aquisição de habilidades que lhes permitam manejar adequadamente o mundo social. O mundo social dentro do grupo, através de uma lei transmitida oralmente e que regula de maneira precisa as relações entre gerações e géneros. E o mundo social das relações com exterior ao grupo, mediante o desenvolvimento de ferramentas eficazes que lhe permitiram sobreviver a quinhentos anos de perseguições”. Deste modo, as actividades de “aprendizagem guiada” através das quais a mãe cigana ensina a sua filha são as tarefas domésticas ou a venda no mercado; ou o “tio” e o ancião ensinam o jovem “os segredos da mediação”, são apresentadas ao aprendiz como uma oportunidade para participar no mundo dos mais velhos, dos que detém a experiência. A aprendizagem não seria tanto uma actividade em si mesma mas antes a consequência de uma actividade mais ampla, visando a reprodução, a sobrevivência ou o prestígio do grupo. Assim, as metas que o aprendiz deve alcançar não estão desligadas das do grupo familiar e são a obtenção de um rendimento económico ou a legitimização dos laços comunitários. Há, portanto,

97 Esta expressão é utilizada também por Pouillon (2008, in Bonte e Izard, p.712) quando define o

paradoxo da tradição afirmando que esta apenas vive porque ignorada por aqueles que a seguem. Isto é, interrogamo-nos sobre a tradição quando as coisas não funcionam como seria suposto funcionarem. “De uma tradição viva não se fala. Inconsciente mas operante, não aparece se não ao estranho e depois então a si próprio e graças a ele quando nos interroga sobre as razões do que se faz sem pensar. A tradição da qual se tem consciência é aquela que não se respeita mais, ou pelo menos, aquela da qual se pretende afastar.” Nesse sentido, “deixar cair uma parte da sua herança é escolher, conscientemente ou não, manter uma outra. As sociedades que se dizem modernas não se desfazem do seu passado: elas renovam”.

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uma coincidência entre as ferramentas utilizadas na “aprendizagem guiada tradicional” e as utilizadas na actividade produtiva, sendo os seus resultados palpáveis tanto na riqueza que criam como no prestígio para o grupo que as utilizam. E os que transmitem os saberes são sensivelmente os mesmos que executam essas mesmas tarefas, possuindo alguma relação família e/ou comunitária com o aprendente: “a mãe ensina a sua filha o trabalho do mercado, o pai ensina ao seu filho os procedimentos do negócio e o tio ensina ao membro da comunidade como mediar famílias enfrentadas” (Lalueza, 2001:11-12).

Efectivamente, o conceito de “aprendizagem guiada” revela ser muito próxima do conceito de “zona de desenvolvimento proximal” de aprendizagem de Vigotsky em que, de acordo com o antropólogo Ingold (in Bonte e Izard, 2008:764-765), se trata de um processo em que o novato aprende com os mais experimentados, apropriando-se de conhecimentos e técnicas por via de uma “ajuda apropriada”, consubstanciando-se numa “compreensão pela prática”. De acordo com este autor, este modelo de aprendizagem assenta em quatro pontos importantes, os quais deveriam ser válidos independentemente do modo como o ensino e a formação é institucionalizado numa qualquer sociedade:

1) Os aprendizes não são percepcionados como receptáculos passivos de um saber cultural que lhe seria fixado a partir de uma fonte de autoridade. Participam activamente e de modo criativo no processo de aprendizagem, influenciando o contexto no qual se desenvolve e no qual o conhecimento é gerado. Consequentemente, os contextos de aprendizagem são lugares onde o saber não é transmitido mas sim constituído e renovado.

2) O meio ambiente do aprendiz oferece um apoio decisivo à aquisição de conhecimentos; contexto em que os aprendizes podem facilmente resolver, em circunstâncias familiares, problemas para os quais não encontrariam soluções se colocados descontextualizadamente, ainda que a estrutura lógica seja idêntica nos dois casos.

3) Os aprendizes entreajudam-se mutuamente em função dos níveis relativos da sua experiência, não sendo os únicos a aprenderem uma vez que o “mestre” também aumenta o seu saber-fazer à medida que guia os iniciados na actividade.

4) O facto de a aprendizagem não ser separada da acção ou a aquisição do saber da sua aplicação, os quadros da aprendizagem são indissociáveis da vida corrente.

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A transformação por via experiencial assume, para mim, entre outras, duas grandes virtudes, retomando a classificação feita por Francine Landry (1989:13-21), no que diz respeito às suas grandes tendências, tais como a formação prática, a formação experimental supervisionada, o reconhecimento dos adquiridos, as ciências da acção, a autoformação, a formação existencial, a formação experiencial em grupo, e, por fim, a formação visando a acção política e social. Perante esta classificação, a minha escolha assenta na junção de duas tendências complementares e que, no caso das comunidades ciganas, me parecem ser as mais pertinentes, como sejam a autoformação, na senda de Pineau, Josso e Finger, e a formação experiencial visando uma acção política e social, na senda de Paulo Freire e Illich.

Na autoformação, existe um processo de transformação e de integração da experiência pessoal, sendo que esta deverá passar pela linguagem, através de algumas estratégias narrativas que facilitem o processo de transformação, nomeadamente a produção e análise (que pode ser em grupo), de uma narrativa de vida, de um balanço de vida ou de uma autobiografia relatando as experiências determinantes da vida pessoal e social. Na formação experiencial visando a acção política e social, a análise e a interpretação devem partir da experiência das pessoas e levá-las a nomear, analisar e interpretar atribuindo-lhe um sentido crítico, na qual a experiência colectiva vivida pode ser mobilizada em direcção da acção social e política.

Neste estudo, a escolha da entrevista compreensiva (Kaufmann, 2008) ou em profundidade (Guerra, 2008) pretende ser, simultaneamente, um dispositivo de formação, isto é, um dispositivo que induza a reflexão sobre questões que são do foro do habitus, da rotina ou do inconsciente, obrigando as pessoas a explicitarem modos de fazer e de pensar, processo indutor da conscientização. Trata-se de uma posição epistemológica e de uma opção estratégica de intervenção socioeducativa, que assumo como investigadora comprometida com a intervenção social ou melhor como interventora social reflexiva. Por outro lado, o facto de me posicionar como uma pessoa comprometida com o Outro não impede que deseje retirar deste estudo também ensinamentos tanto pessoais como profissionais, num processo contínuo de aprender fazendo e de aprender com os outros.

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