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Cruzamentos de fronteiras, complexidades e identidades

O meu contacto com os autores que se debruçaram sobre estes (outros) conceitos foi sendo feito à medida que os sentia como pertinentes por me fazerem sentido através da

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via experiencial que, simultaneamente, é via reflexiva, “matéria-prima e viva” que me alimenta em permanência, orientando o meu olhar e a minha escuta sobre a realidade sentida, vivenciada e/ou observada. Ou seja, foi se estabelecendo um “casamento amoroso” entre a ideia induzida pela realidade que construía o(s) conceito(s) e a busca de autores que compartilhassem comigo o mesmo olhar. Alex Mucchielli (2009:16) também reforça esta ideia quando afirma que o quadro conceptual deveria ser o que fica da literatura depois do seu confronto com a realidade empírica. Esse caminhar “metodológico” na busca de ecos na literatura científica foi sendo percorrido desde cedo. Por vezes existem efectivamente encontros “amorosos” entre as minhas ideias prévias e os conceitos explicitados por outros, e como esses conceitos foram escritos de forma criativa e brilhantemente sentida, me descubro inábil para os traduzir melhor, daí reproduzi-los, ainda que se traduzam em longas citações, ao longo do presente estudo.

Fronteiras

Por exemplo, no que toca ao conceito de fronteira, descobri esta autora Susan Stanford Friedemann (2001:9), que traduziu primorosamente o que sinto e penso acerca dele, em relação a mim e na minha relação com as pessoas e os grupos ciganos.

«As fronteiras, com as suas linhas de demarcação, simbolizam a ideia de impermeabilidade, se bem que seja de permeabilidade a realidade com que convivem. As fronteiras separam ao mesmo tempo que ligam. Remetem para noções de pureza, distinção e diferença, mas por outro lado propiciam a contaminação, a mistura e a crioulização. As fronteiras fixam e demarcam, mas são, em si mesmas, linhas imaginárias, fluidas, e em permanente processo de mutação. As fronteiras prometem segurança, estabilidade, a sensação de se estar “em casa”, ou “na sua terra” – ao mesmo tempo que forçam a exclusão e que impõem a condição de estranho, de estrangeiro e de apátrida. As fronteiras são a materialização da Lei, policiando as divisões; mas, por isso mesmo, elas vêem-se constantemente atravessadas, transgredidas e subvertidas. As fronteiras são usadas para exercer o poder sobre os outros, mas também para ir buscar o poder que permite sobreviver contra uma força dominante. Regulam os movimentos migratórios e de quem viaja – os fluxos de pessoas, bens, ideias, e das formações culturais de toda a espécie. Ao fazê-lo, no entanto, contrariam as práticas de regulação,

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na medida em que promovem os encontros interculturais e a concomitante produção de hibridações e de heterogeneidades sincréticas. As fronteiras são lugar de ódio e mortandade, mas são também lugares onde moram o desejo utópico, a reconciliação e a paz. O cruzar de fronteiras de toda a espécie é algo que acontece a toda a hora; mas a experiência desse cruzar constante depende, antes de mais, da própria existência de fronteiras. Acima de tudo, as fronteiras são uma zona de contacto onde convergem diferenças fluidas, onde o poder circula de forma complexa e multidireccional, onde a capacidade de acção existe de ambos os lados desse fosso permanente mutável e permeável.»

Assim como estes trechos de Boaventura Sousa Santos (2000) se enquadram também no meu “esquema” mental de uma “maneira de viver na fronteira”:

1) O uso selectivo e instrumental das tradições, levando a escolher do passado aquilo que deseja reter, esquecer ou modificar, induzindo a criação e o oportunismo, como quem vive no desespero, recorrendo a tudo o que pode salvar. A tradição é imaginada para se converter no que é preciso aqui e agora. 2) A invenção de novas formas de sociabilidade, vivendo a sensação de estar a

participar na criação de um novo mundo, em que as experiências e a memória que cada pessoa ou grupo social leva consigo para a situação da fronteira transformam-se profundamente quando aplicadas em novos contextos, induzindo futuras transformações.

3) Hierarquias fracas induzem a construção paulatina de identidades de fronteiras, resultando do manejo dos parcos recursos, dos poderes, dos direitos e dos conhecimentos da periferia, reproduzindo uma sociedade local periferizada. 4) Pluralidade de poderes e de ordens jurídicas, obrigando a repartir as lealdades

por diferentes fontes de poder, aplicando a sua energia de diferentes formas, criando contrapoderes e múltiplas fontes de autoridade.

5) Fluidez das relações sociais, inerente a limites instáveis, próprios de espaços provisórios e temporários, onde as raízes se deslocam com o solo pisado.

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6) Confluência de estranhos e íntimos, de herança e invenção, induzindo uma acuidade especial para o novo, reconhecendo na diferença as oportunidades para enriquecimento mútuo, facilitando novas sociabilidades, podendo converter-se em novas heranças, alimentando sucessivas identificações.

Com estas características, Boaventura Sousa Santos avança também com outras figuras que vivem das/nas fronteiras, tais como os migrantes e os que vivem no exílio, fazendo das fronteiras espaços geográficos onde se constroem sociabilidades:“A sociabilidade da fronteira é, em certo sentido, a fronteira da sociabilidade. Daí a sua complexidade e precariedade. Está assente em limites, bem como na constante transgressão dos limites. Na fronteira, todos somos, por assim dizer, migrantes indocumentados ou refugiados em busca de asilo, mas não é um exílio (um território de não pertença, uma solidão experienciada). O poder que cada um tem, ou a que está submetido, tende a ser exercido no modo abertura-de-novos-caminhos, mais do que no modo fixação-de-fronteiras.” (Santos, 2000:325).

E porque de fronteiras culturais e étnicas se trata no que diz respeito aos grupos ciganos, Ahmed Boubeker (2010:168) considera que “são as fronteiras e não os conteúdos culturais que permitem melhor dar conta da etnicidade”, perspectiva reveladora de que os conteúdos culturais podem, efectivamente, mudar muito mais do que as fronteiras étnicas. Este estudo visa desocultar as mudanças organizacionais e culturais ocorridas no interior das zonas fronteiriças da etnicidade cigana. Olga Magano (2007b:) também reforça a ideia de fronteira nas comunidades ciganas afirmando que “produzem ou reforçam os limites das fronteiras, fixando limites para os membros do grupo em que os não cumpridores das regras serão considerados desviantes perante o próprio grupo”(p.7). “Os espaços de fronteira são locais de encontro, de interacção e de troca. Normalmente zonas difíceis, onde existe conflitualidade, mas também onde se torna possível desenvolver uma consciência mestiça” sendo a mestiçagem encarada como “um enriquecimento, em que o enfrentamento de duas culturas surge como um novo tipo de personalidade” que tenta “circular entre diferentes universos e espaços sociais, várias pertenças, referências, ou diversas maneiras de se definir” (p.13). As fronteiras sociais entre os grupos definem quem lhes pertence ou não. No entanto, a comunicação entre grupos permite a delimitação de fronteiras simbólicas entre “nós” e os “outros”

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(Magano, 2008:10). No caso das pessoas ciganas, apesar dos marcadores culturais, sociais e simbólicos, parece existir uma “negociação de fronteiras identitárias, num processo de mestiçagem, em que os indivíduos ciganos circulam entre as lógicas ditas tradicionais e as lógicas ditas modernas” facultando a “construção de um eu mestiço ou plural, no sentido em que o indivíduo cigano combina tradição e modernidade19, dando origem a novos tipos de identidades que se afastam das imagens mais reproduzidas socialmente” (Magano, 2007a:11).

Complexidades

Para poder compreender / entender e dar sentido ao meu “caos” interior quando me deparo com dissonâncias cognitivas e emocionais ao longo da minha vida, tanto pessoal como profissional, vivendo nas diversas zonas fronteiriças, incluindo as interpretações que tenho vindo a fazer da(s) cultura(s)(s), socorro-me do pensamento de Edgar Morin (2002). Pode dizer-se, sucintamente, que o paradigma da complexidade, bebendo das abordagens sistémica e construtivista20, move-se pela vontade de “produzir conhecimentos específicos às ciências humanas e sociais através de uma atenção particular sobre os atores e as significações”, assentando em três princípios (Muccchielli, 2009:23):

- O princípio dialógico que envolve o entrelaçar coisas que aparentemente estão separadas (razão e emoção, sensível e inteligível, real e imaginário, razão e mitos, ciência e arte). Não se trata apenas de uma síntese, mas de um diálogo permanente entre as várias dimensões, que visa ultrapassar antagonismos na construção do conhecimento.

19 Segundo Boutinet (2001:190), a partir dos anos 80, entrámos na cultura pós-moderna, passando de uma

sociedade centrada nos processos de produção para uma sociedade preocupada em valorizar os intercâmbios comunicacionais. Esta tende a gerar uma incerteza radical no adulto sobre o seu futuro, uma confusão dos referenciais de identidade; preso num redemoinho de mudanças, sem solução facilmente identificável, o adulto é deixado só face a si mesmo, tendo de enfrentar conflitos, crises, transições.

20 Segundo Muchielli (2009), a abordagem sistémica assenta em alguns princípios epistemológicos: os

fenómenos isolados não existem, estando em interacção com outros e são contextualizados; existe uma causalidade circular; é homeostático; existe a emergência de paradoxos; é comunicacional, logo assente nos jogos interactivos (p.273). Por sua vez, a abordagem construtivista assenta em alguns princípios: a construção do conhecimento é inacabada; é conveniente o conhecimento ser plausível, consonante e em relação; é teleológico; o conhecimento é construído pela interacção e é recursivo (p.30-35).

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- O princípio recursivo, em que a causa produz um efeito que, por sua vez, produz uma causa, isto é, os efeitos circulares que afectam todo o fenómeno humano.

- O princípio hologramático, colocando em evidência que a parte está no todo, assim como o todo está na parte.

Ou seja, é necessário juntar coisas que estão separadas, fazer circular o efeito sobre a causa, e não dissociar a parte do todo. Edgar Morin (2002:41-43) define a complexidade do pensamento articulando a relação dialógica entre diferentes paradigmas epistemológicos, diferentes saberes disciplinares, construindo um saber interdisciplinar e transversal, isto é global. Sendo o global um conjunto contendo partes diversas ligadas inter-retroativa ou organizacionalmente, tem qualidades, ou propriedades, que não se encontram nas partes isoladas umas das outras, e qualidades (ou propriedades) das partes que podem ser originadas pelo todo. Deste modo, a sociedade como um todo está presente no interior de cada indivíduo (na sua linguagem, no seu saber, nas suas obrigações, nas suas normas). Complexidade significa, então, o que é tecido em conjunto, não separando os diferentes elementos (económico, político, sociológico, psicológico, afectivo, mitológico), numa acção interdependente, interactiva e inter- retroativa entre o objecto de conhecimento e os seus contextos, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre elas. A complexidade é, portanto, a ligação entre a unidade e a multiplicidade, em que a unidade existe na textura dos diferentes elementos que constituem o todo. Torna-se, pois, “pertinente conceber uma unidade que assegure e favoreça a diversidade, uma diversidade que se inscreva numa unidade. O duplo fenómeno da unidade e da diversidade das culturas é crucial. A cultura mantém a identidade humana no que ela tem de específico; as culturas mantêm as identidades sociais no que elas têm de específico” (p. 61).

Esta visão da indissociabilidade do todo e das partes, assim como da existência de unidade na diversidade consegue explicar o que sinto e penso (conhecimento emotivo e experiencial) em relação tanto à minha própria construção identitária articulando as suas diversas identidades (fruto de diversos papéis sociais e processos e instâncias de socialização), assim como explica a unidade na diversidade que encontrei nas comunidades ciganas com que fui trabalhando e convivendo. O que me leva a explicitar o sentido que fui construindo sobre o conceito de identidades plurais ou múltiplas.

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Identidades múltiplas

Este conceito, também abordado por Abílio Amiguinho (2008:209), considera os “indivíduos plurais” ou o “carácter plural dos indivíduos, movendo-se no seio de múltiplos palcos da vida quotidiana, através de lógicas de acção diversa, confrontados com experiências plurais, mobilizando, assim, aspectos diferentes, por vezes contraditórios da sua pessoa.” Conceito também explorado por Bernard Lahire de “homem plural” (2009) ou de “singular plural” (2005), na defesa de uma “sociologia à escala do indivíduo”. Indivíduo complexo que resulta de diversos processos de socialização, obrigando a ver a sua pluralidade interna, a sua “singularidade necessariamente plural”, incorporando esquemas complexos, cuja heterogeneidade permite a coexistência de opostos e contradições, dando, por vezes, lugar a “trânsfugas culturais” (2005:25), que lidam com tensões e dilemas permanentes, encontrando “equilíbrios dinâmicos” na sua gestão, e construindo unicidade assente na estruturação de coerência de sentidos que os diversos processos de socialização lhe imprimem. Apesar de “cada ser ter uma multiplicidade de identidades, uma multiplicidade de personalidades nele próprio, um mundo de fantasmas e de sonhos que acompanham a sua vida” (Morin, 2008:84), “o próprio ser humano é simultaneamente uno e múltiplo” (Morin, 2002:62).

Esta sensação de possuir múltiplas identidades sendo una, foi sendo consciencializada quando me confrontei com diferentes identificações que senti com os diversos meios culturais e modos de socialização com que fui contactando, construindo uma unidade coerente de todas as minhas identificações, papéis sociais e identidades (para mim e para os outros).

A verdade é que me deparei com opções a tomar, direcções a seguir, identificações a fazer entre ser moçambicana, portuguesa e francesa (identidade afectiva, nacional, oficial e jurídica); ser emigrante, imigrante ou migrante (identidade territorial e transitória); ser estrangeira, nacional ou híbrida (identidade compósita, Amin Maalouf 1999), ser lusófona, francófona ou poliglota (identidade linguística e cultural); ser educadora, animadora, formadora, investigadora e artesã social reflexiva (identidade

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praxiológica); ser funcionária pública, profissional, membro de uma associação e cidadã (identidade política e social); ser neta, filha, irmã, prima, mãe, tia, esposa, cunhada, nora e sogra (identidade familiar e social); etc…

E esta multiplicidade de papéis sociais, de identificações e de identidades assente numa complexa rede de relações sociais, culturais e territoriais, não fez de mim uma pessoa esquizofrénica. Fui construindo uma coerência interna (identidade para mim) e externa (identidade para os outros) unitária21 que me torna permeável à diversidade e à possibilidade de articular diversos estares e sentires. Sei, porque o vivi, o que é “estar sentada no meio de duas cadeiras”, em equilíbrio dinâmico, no meio da ponte ou na “terra de ninguém”, entre duas linhas de fronteiras ou com um pé num e noutro lado das fronteiras. Por isso, também me tornei permeável e empática à sensação, algo desconfortável, que as crianças sentem quando confrontadas com a lógica familiar e a lógica escolar; quando as famílias se deparam com as lógicas comunitárias e as lógicas burocráticas das instituições que as enquadram – escola, hospital, município, serviços públicos, etc. – querendo “normalizá-las”, “uniformizá-las”, “domesticá-las” e sobretudo “controlá-las”; quando os profissionais se sentem acossados entre as lógicas de ser-se pessoa e cidadão e a de ser-se funcionário público, a mando de directivas governamentais e burocráticas, etc…

Do mesmo modo, nos grupos ciganos, também fui sensível à tensão que sentia entre a autonomia individual e a pressão colectiva do grupo de pertença (censura social); entre a obediência à tradição e a adesão à modernidade (movimento centrípeto que os próprios designam de “acompanhar a evolução dos tempos” (Formoso, 1986:168) 22

), pressentindo nos indivíduos ciganos os mesmos dilemas que sentia, na conjugação entre o ser cigano (com toda a rede de relações que implica uma socialização comunitária) e ser também português e cidadão europeu (com todas as diferentes lógicas de socialização societária).

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Sobre a unidade da identidade, Dubar (2010:228) afirma que a unidade e a continuidade não são nunca adquiridas mas constituem-se em uma espécie de espaço-tempo virtuais, formas simbólicas mais ou menos identificável. Nesse sentido, a identidade pessoa é como um «lar virtual» (Levi-Strauss, 1977 citado por Dubar) que não existe mas no qual se acredita e que necessitamos de dizer para viver e agir com os outros.

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Bernard Formoso (1986:168), identificou esta expressão na pesquisa que fez com ciganos da zona de Marselha e de Paris, “era preciso acompanhar o seu tempo, era preciso ser moderno, era preciso fazer evoluir os costumes”. Olga Magano (2008:6) também identificou pessoas ciganas que se referiram às mudanças operadas nas práticas culturais ciganas como evoluções: “a cultura tem necessariamente de evoluir no sentido de ser capaz de enfrentar novos desafios e novas oportunidades sociais”.

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Assim, a escolha dos conceitos fronteira, complexidade e identidade múltipla prende-se com a operacionalidade que mostraram ter, para mim, na compreensão da problemática cigana, nomeadamente na desocultação das mudanças culturais no seio das comunidades ciganas sob o impacto da introdução das medidas políticas e organizacionais imprimidas, nas últimas três décadas, pelo Estado Português; bem como para desocultar as influências que a pessoa da investigadora arrasta para a leitura da realidade que pretende observar e analisar.