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A crítica histórica do sentido

2.1 Compreensão e objetividade

2.1.2 A crítica histórica do sentido

Segundo Habermas, a compreensão hermenêutica se distingue das proposições teóricas, isto é, daquelas capazes de serem reduzidas a uma linguagem “pura” em que os enunciados formais foram purificados de todos os elementos que não se articulam no plano das relações simbólicas. Já a compreensão hermenêutica “não pode jamais analisar a estrutura de seu objeto de tal maneira que todas as contingências deste objeto fiquem eliminadas”53.

Isso porque a hermenêutica tem em vista um contexto de significações que são transmitidas por tradição, e como não dispomos de regras para a reconstrução dos conjuntos-de-sentido legados pela tradição, temos que tratá-los como se fossem fatos. Enquanto nas ciências teóricas se busca anular a experiência biográfica individual para que estas possam ser postas em categorias universais da linguagem, as ciências hermenêuticas repousam justamente na especificidade da linguagem ordinária que permite comunicar indiretamente categorias universais dentro das conexões concretas da vida. Dito de outra maneira,, a linguagem ordinária elabora sua própria metalinguagem sem que para isso seja necessário criar uma linguagem artificial, operando como linguagem e metalinguagem ao mesmo tempo.

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A linguagem do cotidiano possui, por certo, uma estrutura que permite exprimir o individual na relação dialógica por categorias genérico- universais. A compreensão hermenêutica é obrigada a servir-se desta mesma estrutura; sua função é a de disciplinar metodicamente a experiência comunicativa cotidiana da autocompreensão e da compreensão dos outros. Não se pode, sem dúvida, transformar a hermenêutica em um método explícito do proceder analítico, senão quando se tem sucesso em elucidar a estrutura da linguagem em sentido tal que permita o que a sintaxe de uma linguagem pura precisamente proíbe, a saber: tornar comunicável, ainda que indiretamente, o que não se deixa expressar por ser individual.54

Assim, a compreensão hermenêutica visa três classes de manifestações vitais: as expressões verbais, as ações e as expressões vivenciais. As expressões verbais quando dissociadas de uma conexão vital concreta, como no caso das linguagens formalizadas, dispensam uma interpretação hermenêutica. Mas quando à expressão verbal mistura-se algo que é próprio “ao pano de fundo obscuro e à plenitude da vida da alma”, têm início os direitos da hermenêutica. Ela decifra o que de início parece estranho na compreensão mútua entre os falantes, algo que só pode ser comunicado de maneira indireta.

A interpretação seria impossível se as manifestações vitais fossem totalmente estranhas. Ela seria desnecessária, caso nada lhes fosse estranho. [A hermenêutica] se situa, portanto, entre estes dois pólos extremos. Ela é necessária sempre onde há algo de estranho, algo que a arte da compreensão deve assimilar55.

Na linguagem cotidiana há sempre um hiato a ser superado pela interpretação entre os falantes, para evitar situações de pseudocomunicação em que os participantes realmente não se entendem a cerca de algo. Dessa forma, para facilitar o trabalho de interpretação dispomos também de expressões extraverbais, além daqueles empregadas na fala. A ação é uma dessas manifestações extraverbais. Embora a ação não surja de uma intenção de comunicação, mas de uma relação para com um fim, é possível observar uma certa regularidade nas ações e daí depreender seu significado latente.

Uma terceira classe de manifestações são as expressões vitais, que Dilthey considera serem as mais próximas da unidade vital espontânea em

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Ibidem, p. 174.

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relação às expressões simbólicas da linguagem e da ação. Por outro lado, caracterizam-se pela decifração mais difícil por remeterem à intenções não expressas e à relação inexprimível do Eu com suas objetivações e não terem um conteúdo cognitivo, que pudesse ser integralmente explanado por meio de frases e ações. Assim, o seu papel é muito mais de corroborar na interpretação das comunicações manifestas através dos sintomas latentes que podem legitimar e corroborar, ou desmentir e rejeitar, ou indicar a tentativa de enganar um interlocutor, colocando a comunicação sob suspeita. “Pois a simulação, a mentira, o engano rompem a relação entre a expressão e o espiritual expressado.”56

Portanto, a compreensão hermenêutica, deve levar em consideração essas três classes de manifestações vitais, pois na comunicação ordinária uma expressão raramente aparece desacompanhada das outras. Dessa forma, a linguagem ordinária perfaz sua própria metalinguagem na medida em que pode descrever a comunicação extraverbal, ou seja, ela é capaz de se auto- interpretar. Essa auto-interpretação consiste em explicitar os elementos ausentes da linguagem não-verbal tornando-os comunicáveis. De outra parte, a linguagem sempre se apresenta de modo fragmentário, sem o acesso aos elementos não-verbais, essas lacunas seriam insuperáveis. A auto-interpretação se opera, como já dissemos, através da metalinguagem ao interior da própria linguagem Portanto, decifrar esta auto-interpretação é a tarefa da hermenêutica. Temos aqui uma clara demarcação entre as ciências do espírito e as ciências naturais. Por perfazer sua própria metalinguagem, a interpretação hermenêutica jamais pode ser demonstrável. “Pois, uma ‘prova’ para as chamadas interpolações só seria possível, caso pudéssemos retraduzir um texto, legado por tradição, por ‘dentro’ da práxis vital de sua época, uma práxis que um dia completou texto e discurso” 57. Na tentativa de se aproximar da

interpretação, as ciências do espírito incorrem no denominado círculo hermenêutico, como pode ser ilustrado a partir dessa exposição de Dilthey:

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Idem. El Mundo Histórico. Op. Cit., p.230.

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Sempre que o pensamento científico empreende a formação conceitual, a determinação das características a constituir o conceito pressupõe a constatação dos estados de fato, os quais devem ser aglutinados ao conceito. E a constatação e a escolha destes estados de fato exigem características tais que permitam constatar, nelas mesmas, sua pertença ao âmbito do conceito. Para determinar o conceito da poesia devo abstraí-lo daqueles estados de fato que perfazem a extensão deste conceito; e para constatar que obras pertencem à literatura poética devo já possuir uma característica na qual a obra possa ser reconhecida como sendo poética. Esta relação é, assim, o traço mais genérico da estrutura das ciências do espírito.58

Mas essa circularidade da hermenêutica não necessariamente é viciosa, podendo ser bastante frutífera se a hermenêutica não se reduzir exclusivamente à lingüística ou a uma análise puramente empírica. Pois, nesse caso, tratar-se-ia sim de um círculo vicioso. Entretanto, essa circularidade é evitada graças ao fato

das ciências do espírito usufruírem de um status duplo sui generis: os conteúdos semânticos, legados por tradição e objetivados em palavras e ações – as quais perfazem o objeto da compreensão hermenêutica – não são menos símbolos do que fatos. É por isso que a compreensão deve combinar a análise lingüística e a experiência. Sem esta coação para tal combinação peculiar, o desenvolvimento circular do processo interpretativo permaneceria preso em um círculo vicioso59.

Assim, se parte de um esquema exegético provisório, antecipando de saída o resultado do processo exegético. Ao se aplicar a chave interpretativa ao material esse a modifica levando a modificação das hipóteses antecipadas provisoriamente.

O fato das ciências do espírito estarem mais presas ao contexto vital torna mais clara a sua perseguição de interesses cognitivos, mas tanto as ciências do espírito quanto às ciências naturais perseguem interesses cognitivos. O interesse das ciências empírico-analíticas é um interesse técnico e instrumental de aplicação desses conhecimentos à realização de novas tecnologias. O interesse cognitivo das ciências do espírito está em evitar a ruptura na comunicação, ou seja, em conservar o entendimento intersubjetivo. O interesse prático do conhecimento que domina a gênese das ciências do

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DILTHEY, W. Gesammelte Schriften, VII, p.153. In: HABERMAS, J. Op. Cit., p.181.

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espírito determina, também, o contexto de aplicação do saber hermenêutico. Mas ao constatar isso Dilthey não se contenta com o resultado e acaba recaindo na tentação objetivista e, sorrateiramente, deixa o positivismo invadir sua epistemologia.