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A virada pragmática do Wittgenstein tardio

Tornou-se comum na filosofia contemporânea o uso de classificações como: “primeiro Wittgenstein”, “segundo Wittgenstein”, ou, “jovem Wittgenstein”, “Wittgenstein tardio”. Tais divisões se justificam pela radicalidade da mudança do Wittgenstein do Tractatus para o Wittgenstein das Investigações Filosóficas135. Embora permaneça com a mesma temática, ou seja, o

133

APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia 1: filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Op. Cit., p. 76.

134

Ibidem, p. 76.

135

No prefácio as Investigações Filosóficas, Wittgenstein escreve o seguinte sobre a relação entre o

Tractatus e as Investigações Filosóficas: “Há quatro anos, porém, tive oportunidade de reler meu

problema da linguagem, o Wittgenstein das Investigações Filosóficas é profundamente crítico de si mesmo a ponto de abandonar a forma sistemática e precisa do Tractatus, por aquilo que ele chamou de um álbum de “anotações” e “esboços de paisagens”, por vezes, saltando rapidamente de um tema a outro se afastando completamente da idéia de ordenamento sistemático. Seguramente, essa foi a maneira encontrada pelo próprio Wittgenstein de permanecer fiel ao espírito de suas Investigações Filosóficas e poder apresentá-las em uma roupagem apropriada, com um rico repertório de exemplos, imagens e metáforas.

Wittgenstein pretende, através das Investigações Filosóficas, realizar uma crítica ao modelo dominante na lógica da linguagem desde Aristóteles, segundo o qual as palavras ganham significado por “designarem algo”, isto é, por serem “nomes” para “coisas existentes” ou “objetos”. O próprio Aristóteles percebeu que a linguagem não pode ser reduzida à mera função designativa de objetos, pois ao lidar com determinados termos tais como “ser”, “categoria”, “unidade”, etc., Aristóteles negou que eles designassem algo objetivo. Mas toda polêmica em torno dos universais que esteve no centro dos debates filosóficos durante a Idade Média, demonstra que o problema do significado das palavras era concebido fundamentalmente em termos do esquema nocional da “designação”. Wittgenstein encontra no Teeteto de Platão a origem do erro nominalista de interpretar todas as palavras como nomes136, que levou inclusive

ao atomismo lógico dos “individuais” de Russell e aos “objetos” do próprio Wittgenstein no Tractatus. Em determinado momento do diálogo Sócrates apresenta a seguinte hipótese:

Se não me engano, assim ouvi de alguns: para os elementos

primitivos – para assim me expressar – dos quais nós e tudo o mais somos compostos, não há qualquer explicação; pois tudo que é em si e por si pode ser apenas designado com nomes; uma outra determinação não é possível, nem que é nem que não é... Mas o que é em si e por si

me dever publicar juntos aqueles velhos pensamentos e os novos, pois estes apenas poderiam ser verdadeiramente compreendidos por sua oposição ao meu velho modo de pensar, tendo-o como pano de fundo.” WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 8. Coleção Os Pensadores. Nas citações seguintes vamos nos referir as

Investigações Filosóficas por “IF”, seguida pelo parágrafo correspondente segundo a tradução de José

Carlos Bruni.

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“... Os nominalistas cometeram o erro de interpretar todas as palavras como nomes, portanto não descrevem realmente seu emprego, mas, por assim dizer, dão apenas uma indicação formal para tal descrição” (IF, §383).

deve ser... denominado sem todas as outras determinações. Mas, com isso é impossível falar explicativamente de qualquer elemento primitivo; pois para este nada existe a não ser a mera denominação; tem, na verdade, apenas seu nome. Mas assim como aquilo que se compõe desses elementos primitivos é ele próprio um conjunto emaranhado, assim também suas denominações tornaram-se discurso explicativo neste emaranhado; pois sua essência é o emaranhado de nomes (IF, § 46).

O erro nominalista que o próprio jovem Wittgenstein teria cometido foi o de restringir o problema do significado “a uma fórmula clara, segundo a alternativa: ou a palavra possui um significado, e então ela tem o caráter de um nome que denomina um objeto em sentido amplo (...) ou a palavra não possui significado nenhum...” 137. Assim, cada palavra teria que se remeter

invariavelmente a um objeto, segundo o critério de verificação do positivismo lógico. Os nomes comporiam as unidades simples das quais são tecidas as afigurações do mundo, sua estrutura lógica. Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein coloca esse modelo em xeque ao se perguntar sobre quais são as partes simples de que se compõe a realidade, por exemplo: quais seriam as partes constituintes simples de uma poltrona?138 A resposta, naturalmente,

dependeria do contexto em que surgiu a pergunta, se ela parte de empregados de uma transportadora interessados em desmontar a poltrona para transportá- la, ou de um cientista interessado em analisar os riscos de combustão dos materiais, etc. Ou seja, o que é “simples” ou “composto” é completamente dependente do jogo de linguagem que se está jogando. Dessa forma, Wittgenstein adota uma visão pragmática da linguagem, caracterizando-a como uma atividade humana. É a partir da atividade de uso da linguagem que esta realiza o seu significado. Percebo que alguém compreende uma palavra se observar que a emprega corretamente. Wittgenstein ilustra essa tese partindo de um exemplo de Santo Agostinho nas Confissões, em que este afirma que o aprendizado original de uma língua se dá pela relação de nomes a objetos. Diz ele:

137

APEL, Karl-Otto. Wittgenstein e Heidegger. In: ______. Transformação da Filosofia 1: Filosofia

analítica, semiótica, hermenêutica.. Op. Cit., p. 299.

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Se os adultos nomeassem algum objeto e, ao fazê-lo, se voltassem para ele, eu percebia isto e compreendia que o objeto fora designado pelos sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indicá-lo. Mas deduzi isto dos seus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e da linguagem que, por meio da mímica e dos jogos com os olhos, por meio dos movimentos dos membros e do som da voz, indica ou foge. Assim, aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar repetidamente nos seus lugares determinados em frases diferentes. E quando habituara minha boca a esses signos, dava expressão aos meus desejos139.

Nesse exemplo, Agostinho parte da visão clássica de que as palavras denominam objetos, mas isso é apenas um sistema de comunicação e não tudo aquilo que chamamos de linguagem. É fácil compreender a linguagem como mera designação de objetos, evitando toda complexidade que esta envolve, mas isso não significa que é a melhor forma de se entender o que é a linguagem. Pois mesmo a criança quando está aprendendo a falar não está aprendendo designações de objetos, mas submetida a “um treinamento” (IF, § 5). Quando vemos o aprendizado original de uma língua pela criança como mera designação, ignoramos que ao aprender uma língua, a criança também é incapaz de entender elucidações indicativas (mímica, jogos com os olhos) justamente por desconhecer o significado daquela palavra que queremos elucidar. Quando mostramos um objeto para uma criança e dizemos: “este é o rei”, essa elucidação só passa a fazer sentido enquanto denominação de uma peça de xadrez se “o que aprende já ‘sabe o que é uma figura do jogo’”. O que pressupõe que ele já tenha jogado outros jogos ou que tenha assistido outras pessoas jogando “com compreensão” (IF, § 31). A compreensão da elucidação envolve, portanto, uma série de pressupostos que são ignorados por Santo Agostinho quando pretende atribuir o aprendizado de uma língua à elucidação indicativa. Para Wittgenstein, isso equivaleria a supor que o aprendizado da língua pela criança fosse “(...) como se a criança chegasse a um país estrangeiro e não compreendesse a língua desse país; isto é, como se ela já tivesse uma linguagem, só que não essa. Ou também: como se a criança já pudesse pensar, e

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apenas não pudesse falar. E ‘pensar’ significaria aqui qualquer coisa como: falar consigo mesmo” (IF, § 32).

Portanto, o aprendizado de uma língua não pode ser visto apenas como mero aprendizado da designação de objetos isolados, este é apenas um ato secundário dentro de um processo em que a criança, ao mesmo tempo em que aprende a língua materna, também se apropria de um determinado entendimento do mundo. Assim, o significado da crítica de Wittgenstein à posição nominalista de Santo Agostinho “só pode ser obtido a partir do contexto da caracterização dos ‘jogos de linguagem’ como unidades do uso da linguagem, da práxis comportamental e da abertura de situações; ou seja: a partir da caracterização dos jogos de linguagem como ‘formas vitais’”140.

Formas de vida e jogos de linguagem constituem, portanto, as categorias centrais da nova imagem da linguagem elaborada por Wittgenstein. Nessa nova imagem, a linguagem é sempre ligada a uma forma de vida determinada, contextualizada dentro de uma práxis comunicativa interpessoal. Diferentes formas de vida apresentam diferentes modos de uso da linguagem, ou melhor, diferentes jogos de linguagem. Wittgenstein pretende acentuar com o conceito141 de jogos de linguagem que de diferentes contextos, seguem-se

diferentes regras de uso das palavras. Tal posição, segundo Manfredo A. de Oliveira, implica em uma mudança de paradigma na Filosofia da Linguagem, antes centrada na Semântica, para Pragmática, pois o sentido das palavras e frases só pode ser resolvido pelo uso que se faz delas em contextos pragmáticos142. Só podemos avaliar se o emprego de uma determinada palavra

é correto ou não dentro do contexto de uma comunidade lingüística que dele

140

APEL, Karl-Otto. Wittgenstein e Heidegger. Op. Cit., pp. 308-309.

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Não se pode falar propriamente de “conceito” em um sentido estrito em Wittgenstein, pois ele procura evitar cuidadosamente de cair em uma concepção essencialista da linguagem. Por isso, não oferece mais do que contornos para as categorias que emprega.

142

Como observa Manfredo A. de Oliveira, se Wittgenstein está correto, “(...) então a Semântica só atinge sua finalidade chegando à Pragmática, pois seu problema central, o sentido das palavras e frases, só pode ser resolvido pela explicitação dos contextos pragmáticos. Uma consideração lingüística que não atinge o contexto pragmático é, nesse sentido, essencialmente abstrata, como é o caso da teoria da significação no pensamento tradicional, para quem a linguagem é, em última análise, puro meio de descrição do mundo, sem a percepção de que a significação de uma palavra resulta das regras de uso seguidas nos diferentes contextos de vida. Saber usar corretamente as palavras significa saber comportar-se corretamente”. OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. Op. Cit., p. 139.

faz uso, pois é justamente o acordo da comunidade que torna a comunicação possível. “Correto e falso é o que os homens dizem, e na linguagem os homens estão de acordo. Não é um acordo sobre as opiniões, mas sobre o modo de vida” (IF, § 241).

O modo de vida se assenta em hábitos determinados, intersubjetivamente válidos, que constituem os jogos de linguagem. Já que, como diz Wittgenstein, não se pode seguir uma regra apenas uma vez, ou seja, aprendo o significado de um signo porque fui treinado “para reagir de uma determinada maneira a este signo e agora reajo assim” (IF, § 198). A comunidade que participa de um jogo de linguagem constitui determinados hábitos compartilhados por seus participantes.

Não pode ser que apenas uma pessoa tenha, uma única vez, seguido uma regra. Não é possível que apenas uma única vez tenha sido feita uma comunicação, dada ou compreendida uma ordem, etc. – Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (costumes, instituições).

Compreender uma frase significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica (IF, § 199).

A linguagem é resultado da interação social historicamente determinada, na qual os sujeitos se inserem, não sendo, portanto, um fenômeno puramente natural. Ela é dependente da capacidade de criação e liberdade humanas, sempre aberta à invenção e modificações como qualquer outra instituição social. O fato de nos apropriarmos do uso da linguagem como quem domina uma técnica, não significa que o fazemos de um modo puramente mecânico. Cada participante é capaz de interpretar a regra de um modo inovador e assim provocar mudanças na significação das expressões lingüísticas. Afinal, as regras são apenas “indicadores de direção”, nada mais que isso. O emprego que fazemos dos indicadores de direção permanece aberto a interpretações, pois, “cada interpretação, justamente com o interpretado, paira no ar; ela não pode servir de apoio a este. As interpretações não determinam sozinhas a significação” (IF, § 198). É por isso que Wittgenstein usa a expressão “jogos de linguagem”, pois é no jogo que os sujeitos elaboram consensos sobre as regras a serem seguidas e, eventualmente, as modificam (IF, §§ 84, 85).