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Da virada lingüística à virada pragmática

5. SEMIÓTICA TRANSCENDENTAL COMO PRIMA FILOSOFIA

5.1 Da virada lingüística à virada pragmática

Em nosso percurso até aqui acompanhamos, em linhas gerais, a trajetória do problema da validade na filosofia a partir de Kant. Nesse percurso estivemos as voltas com o problema de uma fundamentação transcendental da filosofia, ou seja, uma fundamentação que respondesse a questão das condições de possibilidade da argumentação válida. Um primeiro momento dessa trajetória é marcado pela virada semântica do Tractatus de Wittgenstein que substitui o “princípio supremo dos julgamentos sintéticos” de Kant, pelas “condições lógico-transcendentais da linguagem pura como sendo as condições de possibilidade dos fatos como elementos de um mundo descritível”197.

Wittgenstein marca o primeiro momento da mudança do eixo das questões do conhecimento centradas nas faculdades de conhecimento do sujeito (transcendental, no caso de Kant) para o eixo semântico das relações lógicas entre linguagem e mundo. Wittgenstein acreditava que sob a superfície da linguagem corrente estaria oculta a forma lógica da linguagem universal que torna possível a figuração dos estados de coisa por proposições elementares. Carnap simplesmente ignora esse problema e se concentra nas questões referentes à verificação empírica das teorias. Seu âmbito de investigação se refere à forma lógica das proposições elementares que representam estados de coisa através da construção de linguagens artificiais isentas de qualquer interpretação e ao problema da verificação indutiva das teorias científicas. O que o leva novamente a se deparar com o problema referente aos critérios de

197

APEL, Karl-Otto. The ‘pragmatic turn’ and transcendental semiotics: the compatibility of the ‘linguistic turn’ and the ‘pragmatic turn’ of meaning theory within the framework of a transcendental semiotics. In: ______. Selected Essays volume one: towards a transcendental semiotics. Op. Cit., p. 133.

cientificidade pressupostos pela comunidade científica. Na estrutura lógica semântico-sintática de Carnap transparece a carência de um terceiro elemento que serve de pressuposto para os outros dois: a pragmática. Nesse ponto, a contribuição de Charles W. Morris em sua obra Foundations of the theory of signs foi fundamental para distinção entre os campos específicos da sintaxe, semântica e pragmática198. Mas Morris não integrou a dimensão pragmática à

estrutura quase-transcendental da semântica e da sintática de Carnap, ao invés disso, a concebeu apenas como um possível objeto da ciência empírica. Em Morris, isso está ligado “ao fato de o uso da linguagem não ser apreendido como um acontecimento entendível e que se entende a si mesmo, mas sim como um ‘behavior’ de estímulo e resposta, descritível de modo puramente objetivo”199.

Contudo, Morris não chegou a realizar completamente a virada pragmática da filosofia da linguagem, que encontrará sua maior expressão na teoria dos jogos de linguagem do Wittgenstein tardio.

Em sua teoria dos jogos de linguagem ligados à determinadas formas de vida, Wittgenstein postula que todo comportamento humano, inclusive o falar, por exemplo, precisa ser entendido por meio da participação em um jogo de linguagem, sem o qual sequer podemos descobrir se os seres humanos orientam-se a si mesmos segundo uma regra. Por outro lado, Wittgenstein renuncia a pretensão de uma fundamentação universalmente válida, já que toda validade é circunscrita a jogos de linguagem contingentes. Ou seja, como cada jogo de linguagem está ligado a uma forma de vida, não se poderia estabelecer uma meta-cognição que transcenda ao próprio jogo de linguagem e ao contexto social a que ele está ligado. Mas, argumenta Apel, o fato de podermos estudar os jogos de linguagem de diferentes culturas e até compará-los entre si, demonstra que somos capazes, por meio da auto-reflexão filosófica de uma auto-transcendência rumo à reflexão filosófica sobre a linguagem e rumo à crítica filosófica da sociedade através da comunicação entre diferentes formas

198

Detalharemos a teoria semiótica de Morris um pouco mais adiante ao tratarmos da semiótica transcendental de Apel.

199

APEL, Karl-Otto . “A linguagem como tema e instrumento da reflexão transcendental”. In: APEL, Karl-Otto . Transformação da Filosofia 2: o a priori da comunidade de comunicação. Op. Cit., p. 363.

de vida200. Isso revela a insuficiência da noção de um pluralismo de jogos de

linguagem quase auto-suficientes para fundamentar uma filosofia da linguagem válida, a menos que ela abandone o pressuposto de que nada “faz senão descrever jogos de linguagem visíveis no todo como fatos empíricos”201.

Por outro lado, a possibilidade de tradução entre línguas tão distantes quanto as européias e asiáticas e a construção de expressões equivalentes para quase todas as idéias essenciais da civilização científico-tecnológica, não pode ser explicada, segundo Apel, pela gramática gerativa comum a todos os seres humanos competentes lingüisticamente (no sentido de Chomsky) mas, a despeito disto, de uma pragmática universal.

A dependência dos jogos de linguagem em relação a uma meta-cognição prévia já estava enunciada na filosofia lingüístico-hermenêutica desenvolvida a partir de Heidegger e H-G. Gadamer. Do ponto de vista hermenêutico, a relação comunicativa intersubjetiva entre os seres humanos já se revela na mais primária abertura lingüística de mundo, ou seja, “se com a linguagem, ao se aproximarem do mundo, desde o início os seres humanos não trouxessem consigo um auto-entendimento, então jamais seria possível que ‘algo como algo’ viesse a deparar-se com eles”202. Ao significar algo como algo, o ser-no-mundo

do homem expressa não apenas qualidades ou relações que devem ser predicadas a um objeto, mas “expressa-se a si enquanto auto-entendimento [Selbstverständnis] e enquanto entendimento do mundo [Weltverständnis]” 203. O

pré-entendimento que se encontra acobertado pelo conceito designativo da linguagem é a “dimensão transcendental-hermenêutica do acordo mútuo e intersubjetivo quanto ao sentido...”204. Tal dimensão compõe uma unidade

dialética:

idealmente, o pré-entendimento lingüístico do mundo deveria partir do

acordo mútuo quanto ao sentido, como conquista de uma comunidade de comunicação; mas na realidade esse pré-entendimento já desde o início terá se externado, alienado e instituído a longo prazo (no sentido do

200 Cf. Ibidem, p. 365. 201 Ibidem, p. 366. 202 Ibidem, p. 366-367. 203 Ibidem, p. 367. 204

APEL, Karl-Otto. O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem. In: ______. Transformação

“espírito objetivo”) nos sistemas sintático-semânticos da língua natural.205

O uso comunicativo bem-sucedido pelos seres humanos se deve a reflexividade da razão humana que trabalha com a ajuda da linguagem na interpretação do mundo que, por sua vez, contribui na construção de um sistema semântico da linguagem. Tal sistema não poderia ser constituido apenas através da convenção humana na designação de objetos no mundo, tampouco, poderia explicar como o sistema da língua se conserva na comunidade no decorrer da história. Como demonstrou Wittgenstein nas Investigações Filosóficas, o aprendizado de uma língua envolve muito mais que a mera função designativa de objetos, cujo sentido só pode ser apreendido a partir das regras de um jogo de linguagem ligado a uma forma de vida. Portanto, é preciso postular, segundo Apel, como uma inferência direta da abertura lingüística de mundo, um “jogo de linguagem transcendental” – com, contra e além de Wittgenstein –

que é antecipado, por todo aquele que cumpre uma regra, como uma

possibilidade real do jogo de linguagem ao qual ele está vinculado – e isso de maneira implícita, por aquele que age de maneira sensata, segundo seu anseio, e de maneira explícita, por aquele que argumenta; ou seja: tal jogo de linguagem é pressuposto como condição de possibilidade e de

validade da atuação como uma atuação sensata.206

Apel afirma que tal jogo de linguagem transcendental é uma conseqüência da tese de wittgensteiniana da impossibilidade de uma “linguagem privada”. Segundo essa tese, “um indivíduo” não pode seguir uma regra “uma única vez”, ou seja, o seguimento de uma regra pressupõe a pertença a um jogo de linguagem, do contrário, não teria como justificar qual o critério de sentido ou validade que está sendo seguido. A validade dos critérios de sentido pressupõem já um acordo mútuo que está “a priori vinculado a regras que não podem ser fixadas só por ‘convenções’, mas que vêm, na

205

Ibidem, p. 384.

206

verdade, possibilitar as convenções (...)”207. Exemplo disso é que não se pode

mentir o tempo todo, pois isso tornaria impossível qualquer jogo de linguagem e agir com sentido. Portanto, haveriam meta-regras que seriam as condições de validade das regras que regem os jogos de liguagem fáticos. “Essas meta-regras de todas as regras que podem ser estabelecidas de maneira convencional não pertencem a determinados jogos de linguagem ou a determinadas formas de vida, mas ao jogo de linguagem transcendental da comunidade ilimitada de comunicação”208.

As considerações críticas do Wittgenstein tardio e a radicalização hermenêutica de Heidegger e Gadamer levaram a convergência na direção de uma transformação da filosofia transcendental. De Wittgenstein, Apel extraiu o conceito de pragmática transcendental como meta-regras da comunidade ideal de comunicação que são a condição de possibilidade e validade das regras dos jogos de linguagem concretos. Da radicalização da hermenêutica, o conceito de hermenêutica transcendental como “condição de possibilidade e de validade do acordo mútuo e do acordo consigo mesmo, e, portanto, também de uma condição de possibilidade e de validade do pensamento conceitual, da cognição objetual e do agir com sentido”209. A pragmática semiótica de C. S. Peirce via J.

Royce, com sua idéia de comunidade de interpretação sígnica, pôde fornecer a chave que faltava para formação de uma semiótica transcendental como paradigma de uma fundamentação filosófica ou prima philosophia. A semiótica transcendental engloba as três perspectivas em uma só, possibilitando que cada perspectiva ilumine e complemente a outra.

Assim, da perspectiva de uma semiótica transcendental, que inclui a

pragmática e a hermenêutica transcendentais, só se pode concluir que as noções chaves de intenção subjetiva, convenção lingüística e referência as

coisas (em sentido amplo) são de igual importância para a compreensão do significado.210

207

APEL, Karl-Otto. A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais. In: ______. Transformação da Filosofia 2: o a priori da comunidade de comunicação. Op. Cit., p. 280.

208

Ibidem, p. 280.

209

APEL, Karl-Otto. O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem. In: ______. Transformação

da Filosofia 2: o a priori da comunidade de comunicação. Op. Cit., p. 379.

210

APEL, Karl-Otto. Intentions, conventions, reference to things. In: ______. Selected Essays vol. I:

Esse paradigma seria capaz não só de fundamentar a filosofia da linguagem como também servir de modelo reconstrutivo para o próprio desenvolvimento da filosofia em seus momentos paradigmáticos principais.

5.2 A relação triádica dos signos e sua implicação a luz da semiótica