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A filosofia entre a autocrítica e a auto-superação

Como vimos, Wittgenstein dá respostas bastante diferentes nas Investigações Filosóficas para as questões trabalhadas no Tractatus Logico- Philosophicus. Basicamente, há uma ruptura com o atomismo lógico e o pressuposto de uma homologia estrutural entre a linguagem e o mundo. Mas, em sua última resposta à pergunta quanto ao critério de sentido da linguagem filosófica, que percorreu praticamente toda trajetória da Filosofia Analítica, sua resposta é a mesma do Tractatus. Ou seja, ele confirma sua suspeita sobre a falta de sentido das questões metafísicas e filosóficas em geral:

Se há alguma continuidade entre as filosofias do Wittgenstein da fase inicial e da fase tardia, ela reside no conseqüente desdobramento da suspeita de absurdidade lançada contra qualquer filosofia que pretenda, tal como a ciência, formular proposições ou teorias sobre o mundo (...)143.

Embora Wittgenstein dedique um tratamento bem mais amplo às questões sobre o “sentido” e o “compreender”, chegando a ocupar um lugar central nas discussões das Investigações Filosóficas; as proposições do Tractatus continuam sendo o ponto de partida para a sua “terapêutica” que trata as questões filosóficas tal como “de uma doença” (IF § 255). Recordemos que no Tractatus, Wittgenstein afirma que:

A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações.

O resultado da filosofia não são “proposições filosóficas”, mas é tornar proposições claras. (4.112)

O método correto da filosofia seria (...) sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições. (6.53)

A diferença é que no Tractatus os problemas metafísicos surgem pela dissociação entre o termo e o objeto que deveria designar. Tal resposta é agora vista como insuficiente, já que o critério de verificação não é mais a referência a

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APEL, Karl-Otto. Wittgenstein e o problema do compreender hermenêutico. In: ______.

um objeto empírico, mas o uso que dele fazemos em um jogo de linguagem. Assim, nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein pretende demonstrar como caímos em questões metafísicas por não entendermos direito a função da linguagem, sucumbindo a sua falsa aparência metafórica (IF, § 112). Semelhante erro ocorre de modo quase desapercebido quando uma metáfora é incorporada às formas de nossa linguagem. Quando fazemos, por exemplo, a famosa pergunta cartesiana “o que é o pensamento?”, estamos tentados pela forma gramatical da pergunta a postular que o “pensamento” é algo como uma entidade ou uma res cogitans, do mesmo modo que para a pergunta: “o que é isso?”, responderíamos: “isso é uma pedra”.

Outra transposição semelhante e aparentemente inocente para uma questão metafísica absurda, Wittgenstein encontra novamente em um exemplo de Agostinho (Confissões XI, 14) em que o filósofo se pergunta sobre o tempo. Quando Agostinho se pergunta: “Quid est ergo tempus?”, ele é tomado pela aparente necessidade de que o tempo precise ser “algo”, uma substância com uma essência determinada, para poder responder a questão sobre o “quê”. Santo Agostinho percebe que sabe o que é o tempo dentro de seu uso prático, mas não quando pretende defini-lo: “Si nemo ex me querat scio, si quaerenti explicare velim néscio”. Para Wittgenstein, o erro da filosofia está justamente aí, se ao pretender responder a questão sobre o tempo, o filósofo se voltasse para o modo normal de utilizar a palavra “tempo”, o problema filosófico simplesmente se dissolveria. “Nisso, segundo Wittgenstein, consiste de certa maneira a verdade da doutrina platônica da anamnese, que também é apropriada para descartar o ‘profundo contra-senso’ de toda a metafísica da essência”144.

Os problemas filosóficos começam quando nos alienamos do uso comum na linguagem cotidiana, comprovado pela prática, e os hipostasiamos com uma pergunta pela “essência” desse termo desvinculado de um jogo de linguagem.

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APEL, Karl-Otto. A radicalização filosófica da “hermenêutica” proposta por Heidegger e a pergunta quanto ao “critério de sentido da linguagem”. In: ______. Transformação da Filosofia 1: filosofia

Tal hipostasiação é o que há de comum nas demais perguntas ontológicas essenciais da filosofia:

Quando os filósofos usam uma palavra – “saber”, “ser”, “objeto”, “eu”, “proposição”, “nome” – e quando tratam de apreender a essência da coisa, então é preciso sempre perguntar: essa palavra é realmente usada assim, na língua em que ela se sente em casa? – Nós é que acabamos por reconduzir as palavras de seu uso metafísico a seu uso cotidiano. (IF, § 116).

Wittgenstein pretende aqui dar uma resposta radical à discussão da teoria tradicional do conceito, proposta desde Sócrates, com a pergunta pela essência definível de todo e qualquer significado vocabular. “(...) Como se a significação fosse uma espécie de halo que a palavra leva consigo e que fica com ela em qualquer emprego” (IF, § 117). Para tanto, procura demonstrar que a suposição de uma essência que seja passível de uma fixação unitária independente do jogo de linguagem que se esteja jogando não só é indemonstrável como totalmente desnecessária para se entender a função das palavras. Pois para se entender a função das palavras basta que exista uma “semelhança de família” entre as inúmeras “maneiras de aplicação” de uma palavra, condicionadas pelo contexto situacional:

Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a expressão “semelhanças de família”; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanças que existem entre os membros de uma família (...). Da mesma forma, poder-se-ia dizer: algo percorre inteiramente o fio, – a saber, o traçado sem lacunas dessas fibras (IF, § 67).

Aqui caberia perguntar, segundo Apel, se o próprio Wittgenstein não sucumbe à sugestão de uma imagem. Ou seja, para usar uma expressão de W. Spaniol, em sua luta contra o enfeitiçamento de nosso entendimento, não teria Wittgenstein erigido “algo semelhante a um enunciado teórico e universalmente válido sobre a essência do significado das palavras – tendendo, inclusive, a que essa essência se mostre na respectiva ‘aplicação’ de cada palavra em um contexto lingüístico e situacional”145? Não seria absurdo

concluir que ao afirmar que o que há de comum na expressão “significado da

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APEL, Karl-Otto. Wittgenstein e o problema do compreender hermenêutico. In: ______.

palavra” é o fato de que isso só se mostre no uso das palavras, Wittgenstein teria encontrado a essência universal dessa expressão.

A dificuldade com essa interpretação, entretanto, é que Wittgenstein se recusa a atribuir para si mesmo o reconhecimento de que, através do conceito de “jogo de linguagem” tenha encontrado algo como a essência unitária da linguagem. Ao abordar a questão no parágrafo 65 das Investigações Filosóficas, Wittgenstein nega que seus próprios enunciados tenham o caráter de teoria, pois o objetivo de seus exemplos é simplesmente o de provocar no leitor “(...) uma aplicação ad hoc, isto é, elas devem ajudá-lo, caso a caso a aquietar a atividade filosófica, à medida que seus questionamentos se diluem”146.

(...) A verdadeira descoberta é a que me torna capaz de romper com o filosofar, quando quiser. – A que acalma a filosofia, de tal modo que esta não seja mais fustigada por questões que colocam ela própria em questão. – Mostra-se agora, isto sim, um método por exemplos, e a série desses exemplos pode ser interrompida. – Resolvem-se problemas (afastam-se dificuldades), não um problema.

Não há um método da filosofia, mas sim métodos, como que diferentes terapias (IF, §133).

Nesse sentido, segundo Apel, a tematização unilateral e insatisfatória de Wittgenstein sobre a especificidade do jogo de linguagem filosófico coincide com a também unilateral análise de Heidegger (o esquecimento do logos) da facticidade do ser-no-mundo, pois ambas “tenderam a promover uma confusão generalizada a respeito do auto-entendimento da filosofia, e provocaram uma era de inconsistência pragmática das afirmações filosóficas”147. Segundo Apel, a

interpretação que Wittgenstein dá à sua própria filosofia poderia não conduzir necessariamente a um relativismo, mas pode ser fundamentada em termos de uma pragmática transcendental, como pode ser ilustrado a partir do argumento de Wittgenstein contra a possibilidade de uma linguagem privada. Tal argumento postula que não é possível falar significativamente sobre uma pessoa “S” estar seguindo uma regra – por exemplo, falar uma língua – sem que haja o controle de uma comunidade sobre o seguimento da regra baseado em

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Ibidem, p. 422.

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APEL, Karl-Otto. Wittgenstein and Heidegger. In: APEL, Karl-Otto e PAPASTEPHANOU, Marianna (ed.). From a transcendental-semiotic point of view. Op. Cit., p. 147.

um critério público que torne possível, por exemplo, comunicar-se com a pessoa “S”. Por outro lado, a pessoa “S” precisa conectar-se com um procedimento já existente de seguimento da regra para que possa ser verificado se ela está realmente seguindo uma regra. Nesse sentido, o postulante da possibilidade de uma linguagem privada cairia em contradição performativa ao ter que admitir estar sujeito a uma facticidade a priori historicamente delimitada.

O problema com o argumento de Wittgenstein é que fornece apenas um critério para se saber se a pessoa “S” está seguindo uma regra, mas não para saber se ela a está seguindo corretamente ou não. Entretanto, Wittgenstein parece satisfeito em apenas assinalar que “(...) se esgotei as justificações, então atingi a rocha dura e minha pá entortou. Estou então inclinado a dizer: ‘é assim que eu ajo’” (IF, § 217). Ao suspender as investigações, chegamos à rocha dura da facticidade contingente. Como observa Apel:

Parece-me que nenhuma outra resposta pode ser achada no trabalho de Wittgenstein que uma referência aos hábitos concretos de seguimento de regras em situações concretas de uma comunidade determinada - da mesma maneira como a sua teoria do significado confia, em última análise, em usos lingüísticos concretos sob circunstâncias pragmaticamente determinadas.148

Todavia, tal posicionamento deixa uma série de lacunas. Por exemplo, se a criança aprende uma regra como que submetida a um treinamento, isso não é capaz de explicar o desenvolvimento da capacidade de interpretar e refletir sobre as regras que ela própria manifesta e que não se resumem à competência de usar uma língua materna, mas consiste, por exemplo, na habilidade de traduzir uma língua para outra. Ou mesmo explicar como um cientista ou filósofo poderia convencer que ele está certo sobre sua própria concepção do segmento de uma regra e os outros errados. Nesse caso, a questão é: qual o critério para se chegar a um consenso sobre qual procedimento de seguimento de uma regra é correto?

Apoiando-se nas idéias de Charles Peirce, Apel encontra uma solução pragmático-transcendental para esses problemas a partir de uma concepção

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normativa de um consenso ideal estabelecido dentro de uma comunidade ideal e ilimitada de comunicação no qual se trabalha:

(...) na concepção de um ideal regulativo referente à construção de um consenso sobre o seguimento de regras. Essa conexão também conduz a um ideal regulativo sobre o significado normativamente correto de conceitos (como por exemplo, sobre a simultaneidade de dois eventos ou sobre justiça ou verdade) que, conforme a “máxima pragmática” de Peirce, tem que ser testado primeiro em experiências de pensamento e portanto, não tem que ser redutível ao uso lingüístico existente de fato, embora tenha que estar em relação com ele. Assim, devemos enfatizar que teria que haver um critério publicamente acessível para o estabelecimento de um consenso em qualquer situação pós-convencional na qual um consenso tivesse que ser estabelecido (evidência experimental, coerência e incoerência lógicas ou, até mesmo, exigências ou interesses que pudessem ser transformados em reivindicações moralmente válidas), e isto seja se estivermos falando sobre o domínio da linguagem científica ou extensões de conhecimento ou sobre uma matéria de fundo prático ou aplicação de normas149.

Mas essa alternativa não é reconciliável com a filosofia de Wittgenstein. Isso porque Wittgenstein tende a confundir seu próprio jogo de linguagem filosófico com a descrição objetivante e contingentemente relativizável dos jogos de linguagem concretos, juntamente com as formas de vida que lhes servem de suporte. Dessa forma, recusa deliberadamente sua própria reivindicação de validade filosoficamente universal em favor de uma terapia da linguagem caso a caso, ou em termos heideggerianos, de uma hermenêutica da facticidade do ser-no-mundo que conduz a paralisia pós-moderna do pensamento filosófico em sua busca de uma “alternativa para razão”. Segundo Apel, o desafio está justamente em encontrar uma fundamentação da filosofia que, ao mesmo tempo em que supere a metafísica, não tenha que necessariamente dar adeus ao logos. Tal caminho já foi iniciado pela transformação semiótica da lógica transcendental operada por Charles S. Peirce e constitui um paradigma capaz de fundamentar intersubjetivamente as condições de validade e possibilidade do conhecimento, como veremos a seguir.

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CAPÍTULO 4

A FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA

ATRAVÉS DA SEMIÓTICA

A superação da metafísica que estava na base dos projetos de Heidegger e Wittgenstein levou não só à destruição da metafísica como também da filosofia transcendental, por considerar que o projeto kantiano de construção de uma fundamentação válida para todo conhecimento devesse ser abandonado como ilusório. Heidegger e Wittgenstein tiveram sucesso em demonstrar como pressuposições transcendentais eram desnecessárias para a constituição de suas próprias filosofias, assentando-as na contingência da “história do ser” ou nos infinitamente plurais e diferenciados “jogos de linguagem” e “formas de vida”. Essa “destranscendentalização” da filosofia (Rorty) em favor de um filosofar pós-metafísico ou pós-sistemático levaram à crise da filosofia contemporânea, incapaz de fornecer bases consistentes para responder aos problemas macro- éticos de nosso tempo. Contudo, segundo Apel, é possível fundamentar a filosofia crítica em geral de modo pós-metafísico através da semiótica transcendental, cujo precursor foi Charles S. Peirce.

Peirce, como Heidegger e Wittgenstein, também partiu de uma transformação da filosofia de Kant, mas ao contrário de ambos os filósofos continentais, reconstruiu a filosofia transcendental sem abandonar a pressuposição das condições necessárias e universais de possibilidade do conhecimento válido intersubjetivamente. Explicando melhor, Peirce demonstrou que o “transcendentalismo” realmente é algo dispensável, mas isso significa que toda tradição da filosofia do sujeito estava errada ao postular que o fundamento de toda cognição possível encontra-se na consciência e não que a fundamentação do conhecimento não seja possível. Poderíamos dizer que Peirce provocou uma “mudança de paradigma” ao deslocar o problema do conhecimento centrado na relação sujeito-objeto para a relação sígnica intersubjetiva que precede todo conhecimento empírico e falível. Com isso,

segundo Apel, Peirce “prefigurou, pelo menos para filosofia teórica, uma alternativa para toda ‘superaração’ da metafísica e filosofia transcendentais que hoje sugerem uma total destranscendentalização e portanto, uma relativização de todas as condições imagináveis de validade intersubjetiva – inclusive das normas éticas”150. Essa alternativa constitui a base fundamental sobre a qual

Apel construiu sua própria fundamentação da filosofia e, particularmente, da ética do discurso. Seu contato com a obra de Peirce nos anos 60 foi decisivo para a formulação do conceito de comunidade ilimitada de comunicação como fundamento a priori de todo conhecimento, inclusive da filosofia. Por isso, faz-se necessário uma cuidadosa análise da interpretação de Peirce realizada por Apel em seu processo de assimilação e crítica em relação à obra de Peirce151 como

condição para uma exata compreensão do que constitui a ética do discurso que, a nosso ver, não pode ser reduzida simplesmente a uma ampliação do princípio de contradição já presente em Aristóteles152.