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Pragmática transcendental e racionalismo crítico

5. SEMIÓTICA TRANSCENDENTAL COMO PRIMA FILOSOFIA

5.3 Semiótica transcendental e Primeira Filosofia

5.3.3 Pragmática transcendental e racionalismo crítico

A tese da impossibilidade de uma fundamentação última da filosofia foi elaborada por Karl Popper em sua obra A lógica da pesquisa científica, no que ficou conhecido através de seus discípulos, W. W. Bartley e Hans Albert como “racionalismo crítico”. O racionalismo crítico se opõe ao racionalismo clássico de Kant e pretende substituir o programa filosófico de uma fundamentação última por uma crítica racional ilimitada. Hans Albert explicou as teses do racionalismo crítico em seu Tratado da razão crítica em que explica logicamente a impossibilidade de uma fundamentação última da filosofia através do que ele denominou de “Trilema de Münchhausen”. Segundo ele, toda tentativa de uma fundamentação última da filosofia no sentido de um princípio de razão suficiente, conduziria inevitavelmente a uma destas três alternativas:

1. um regresso infinito, que parece resultar da necessidade de sempre, e cada vez mais voltar atrás na busca de fundamentos, mas que na prática não é passível de realização e não proporciona nenhuma base segura;

2. um círculo lógico na dedução que resulta da retomada, no processo de fundamentação de enunciados que já surgiram anteriormente como carentes de fundamentação, e o qual, por ser

logicamente falho, conduz do mesmo modo a nenhuma base segura, e finalmente,

3. uma interrupção do procedimento em um determinado ponto, o qual, ainda que pareça realizável em princípio, nos envolveria numa suspensão arbitrária do princípio da fundamentação suficiente.236

Albert associa o princípio de evidência da epistemologia cartesiana à terceira possibilidade do trilema. Segundo Albert, “o processo é completamente análogo à suspensão do princípio de causalidade através da introdução de uma causa sui”237. Toda tentativa de fundamentação baseada no princípio de

evidência leva inevitavelmente, segundo Albert, ao dogmatismo, isto é, em “uma afirmação cuja verdade é certa e por isso não carece de fundamentação, ou seja, um dogma”238. A única maneira de evitar o dogmatismo seria através da

decisão em favor de um método que não toma nenhum conhecimento como certo, mas sim, passível de crítica. Para podermos realizar isso, temos certamente que sacrificar a aspiração subjacente à certeza na teoria clássica e suportar a permanente incerteza quanto à confirmação de nossas convicções e a sua manutenção no futuro. Tal alternativa é chamada de falibilismo, cuja adoção tem também conseqüências políticas e morais, como o combate a toda pretensão de fundamentação da ética em nome de um criticismo que reexamina incessantemente as alternativas morais que se apresentam, a exemplo do que é feito com as teorias científicas, levadas a teste em laboratório. Desse modo, nem a filosofia nem a ética são passíveis de uma fundamentação racional e a única atitude crítica que se pode tomar em relação a elas é o abandono de qualquer pretensão fundamentá-las abrindo “a oportunidade de malograr frente à resistência do mundo real”239 em um processo de constante reexame. Não fazê-

lo implicaria automaticamente em assumir uma postura dogmática.

Para responder às críticas de Albert, Apel examina se a própria teoria de Albert é capaz de sobreviver às teses do racionalismo crítico. A começar pelo postulado de que o apelo à evidência é uma interrupção da busca pela verdade por uma decisão arbitrária. Tal tese só seria legitima se fosse possível

236

ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, pp. 26-27.

237 Ibidem, p. 27. 238 Ibidem, p. 27. 239 Ibidem, p. 50.

demonstrar que o postulado de evidência cai sob a terceira premissa do “trilema de Münchhausen” por via puramente lógica. Mas, questiona Apel, como é possível tal demonstração? Pois, “tal demonstração não deve ela própria pressupor, paradoxalmente, que o recurso a ‘evidência’ não implica uma decisão arbitrária, mas sim que ela é indispensável à argumentação filosófica?”

240.

Apel concorda com Popper e Albert de que as convicções de uma consciência individual não são suficientes para dar suporte à verdade das asserções. Mas, apoiado no fato de que só o discurso crítico da comunidade científica pode decidir sobre a validade intersubjetiva dos resultados científicos, Apel postula, contra Popper e sua escola, que o problema de uma teoria da verdade não pode ser tratado de modo apropriado reduzindo-o a uma questão de simples questão de semântica ou sintaxe lógica. O próprio Albert reconhece que a superação do problema clássico da fundamentação envolve a dimensão pragmática: “a escolha entre o princípio da fundamentação suficiente e o princípio da avaliação crítica é uma escolha no campo pragmático”241. Se ele

levasse essa afirmação suficientemente a sério perceberia que a pragmática “deve tornar-se uma disciplina filosófica que trata das condições subjetivas e intersubjetivas de acordo de sentido e formação de consensos na comunidade científica idealmente ilimitada”242. Por conseguinte, o postulado clássico de uma

fundamentação suficiente pelo recurso à evidência deveria ser examinado do ponto de vista de uma pragmática transcendental. Ou seja, o “trilema de Münchhausen” concernente a fundamentação suficiente só pode ser logicamente deduzido dentro de um sistema sintático-semântico de enunciados, abstraindo completamente a dimensão pragmática do uso argumentativo da linguagem e com ela, do sujeito que percebe e que submete suas dúvidas e convicções ao exame da comunidade.

240

APEL, Karl-Otto. Das Problem der philosophishen Letzbegründung im Lichte einer transzendentalen Sprachpragmatik. Versuch einer Metakritic des “kritischen Racionalismus”. In: ______.

Auseinandersetzungen in Erprobung des tranzendentalpragmatischen Ansatzes. Frankfurt am Main:

Suhrkamp, 1998, p. 42.

241

ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica. Op. Cit., p. 57.

242

APEL, Karl-Otto. Das Problem der philosophishen Letzbegründung im Lichte einer transzendentalen Sprachpragmatik. Versuch einer Metakritic des “kritischen Racionalismus”. Op. Cit., p. 46.

Do ponto de vista da pragmática transcendental, o processo dedutivo pelo qual os enunciados são deduzidos de enunciados (nesse sentido, de modo completamente “axiológico”) só será considerado como um meio (objetável) ao interior do contexto de uma fundamentação argumentativa de asserções consideradas sob a base de evidências cognitivas243.

A dedução lógica é apenas um momento de mediação no processo argumentativo de fundamentação que tem como base a priori a evidência intersubjetiva de experiências sem a qual nenhum jogo de linguagem poderia funcionar. “Nós não poderíamos nos entendermos se nós já não estivéssemos sempre de acordo sobre uma evidência de experiência comum à partir da qual todos devem proceder244”. A validade do conhecimento repousa, portanto,

sobre essa evidência intersubjetiva e sobre as regras a priori que regem o discurso argumentativo. Esses dois elementos estão imbricados de tal forma que não é possível se pensar um discurso argumentativo sem pressupor que seus participantes partilhem sobre certas evidências cognitivas que lhes servem de critério de verdade no processo de formação de consensos. Mesmo a confirmação ou falseamento de teorias científicas é dependente das evidências cognitivas que tornam a confirmação ou rejeição de teorias possível. Assim, embora o falibilismo (no sentido de Peirce) seja fundamental para o avanço da ciência empírica, também o é o princípio da evidência enquanto acordo mútuo. Daí que o dictum de Albert de que “é fundamentalmente possível duvidar de tudo” deve ser examinado com cuidado para se verificar se ele próprio não se contradiz.

O fundador do “falibilismo”, Ch. S. Peirce, polemizando com Descartes, argumenta que não se pode duvidar de tudo sob o risco de transformar a dúvida em uma “paper doubt”, vazia de sentido e de conteúdo (Cf. CP 5.265 e 6.376). Wittgenstein nas Investigações Filosóficas chega a uma posição semelhante ao afirmar que “aquele que não tem certeza de fato algum não pode nem mesmo estar certo do significado de suas palavras” (Investigações Filosóficas, §

243

Ibidem, p. 48.

244

114). Como ilustra Apel, a convicção de que a Terra é uma esfera que gira em torno do seu próprio eixo e opera rotações em torno do Sol, serve de “paradigma” do jogo de linguagem para todas as questões dotadas de sentido possível em aeronáutica ou meteorologia. Ou seja, em situações reais de argumentação na vida cotidiana, assim como na ciência, recorremos às evidências que são pressupostas em cada jogo de linguagem determinado. Desse modo, “o ‘recurso a evidência’ não pode de modo algum ser equivalente a um ‘recurso a um dogma’ ou ‘recurso a uma decisão arbitrária’”245. Pois a

própria crítica, para ser dotada de sentido deve estar articulada a um jogo de linguagem fundado sobre certas evidências partilhadas pelos seus participantes. Dessa argumentação, Apel conclui, a partir da crítica do sentido iniciada por Peirce e Wittgenstein, que as teses do “racionalismo pan-crítico” de Albert são incontestavelmente insustentáveis. Por outro lado, permanece em aberto a questão de como conciliar o pressuposto de uma evidência indubitável com o princípio falibilista de que todo conhecimento deve ser submetido à crítica. Tal questão pode ser respondida, segundo Apel, se partirmos de uma distinção entre os graus de reflexão dos jogos de linguagem científico e pré- científico e o grau de reflexão próprio à pragmática transcendental sobre a estrutura dos jogos de linguagem em geral. Essa distinção permite estabelecer “de uma parte, a possibilidade da pretensão à universalidade, implicitamente auto- referencial das asserções filosóficas e, de outra parte, a possibilidade da pretensão à validade das asserções não filosóficas que são singulares ou empiricamente gerais”246.

Do ponto de vista da reflexão filosófica, os jogos de linguagem não podem duvidar de tudo sob o risco de se tornarem autocontraditórios ao atacar sua evidência paradigmática que lhe dá sustentação. Mas pode estar aberto à dúvida meta-científica da filosofia. Essa dúvida universal não é uma “paper doubt”, uma dúvida puramente formal no sentido de Peirce, tampouco pretende

245

Ibidem, p. 55.

246

duvidar de uma asserção científica empírica por razões empíricas, mas pretende deixar aberta a possibilidade de fazê-la.

A evidência pressuposta em um jogo de linguagem específico de argumentação deve ser considerada por princípio como revisável, mas a

crítica permanente, pressuposta em todo recurso particular à evidência, guarda – assim parece – a última palavra, enquanto reflexão filosófica transcendental, sobre todos os jogos de linguagem particulares247.

O jogo de linguagem filosófico não é apenas mais um entre os outros jogos de linguagem, mas a instância a partir da qual se pode discutir todos os jogos de linguagem. Tal condição exige que o jogo de linguagem filosófico deva ele próprio poder recorrer à evidências que não podem ser em princípio equivalentes àquelas dos paradigmas empiricamente revisáveis dos jogos de linguagem científico e pré-científico. Dessa forma, o princípio do racionalismo crítico é invertido por Apel, que coloca o princípio de uma fundamentação última sobre o princípio da crítica permanente.