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O a priori da comunidade de comunicação e a fundamentação da ética

5. SEMIÓTICA TRANSCENDENTAL COMO PRIMA FILOSOFIA

6.1 O a priori da comunidade de comunicação e a fundamentação da ética

Com a fundamentação semiótico-transcendental da filosofia, Apel tem em vista resolver também o problema da validade da ética. Como vimos anteriormente, com a transformação semiótica da filosofia transcendental operada por Peirce, a diferenciação kantiana entre razão prática e teórica também desaparece. Em Peirce, a conseqüência mais imediata é o compromisso ético da comunidade ilimitada de comunicação de sacrificar os interesses individuais em nome da busca coletiva pela verdade. Com a semiótica transcendental também temos conseqüências éticas importantes. Uma delas é que quem argumenta reconhece implicitamente “todas as reivindicações possíveis de todos os membros da comunidade de comunicação que se podem justificar por meio de argumentos racionais”251. Ou seja, tem que aceitar o

direito dos outros de argumentarem racionalmente como pressuposto do seu próprio reconhecimento pela comunidade. E ainda mais: “também estão obrigados a levar em consideração todas as virtuais reivindicações de todos os virtuais membros da comunidade – ou seja: todas as ‘carências’ humanas, desde que seja possível para elas apresentar quaisquer reivindicações para os demais seres humanos”252. Ao tomar uma “carência” ou reivindicação objeto de

deliberação ética da comunidade ela perde seu caráter pessoal como ocorre na imposição egoísta de interesses. Temos aqui o equivalente ao self-surrender exigido por Peirce. Isso não significa a negação de nenhum direito ou interesse individual, apenas que as carências e anseios vitais devem “se transformar em

251

APEL, Karl-Otto. O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética. In: ______.

Transformação da Filosofia 2: o a priori da comunidade de comunicação.. Op. cit., p. 480.

252

uma aspiração da comunidade de comunicação, de modo que sejam conciliáveis com as carências de todos os demais, pela via da argumentação”253.

A diferença entre a ética do discurso e os princípios da democracia liberal ou das normas da consciência moral subjetiva da tradição cristã é que agora a relação é mediatizada a priori e não fruto de uma decisão individual, nem tampouco de um acordo ou “pacto social” convencionalmente estabelecido pelos participantes. Ou seja, cada indivíduo reconhece “já de antemão a argumentação pública como sendo uma explicação de todos os critérios possíveis de validação, e de todos os critérios possíveis de formação racional da vontade”254. Para que a ética do discurso tenha não apenas validade

reconhecida, mas também efetividade, ela precisa cumprir duas tarefas de longo prazo: “primeiro, desenvolver o método da discussão moral (do ‘aconselhamento’ prático em geral) e, segundo, institucionalizar esse método de modo eficaz, sob condições finitas e político-jurídicas”255.

Até aqui se tratou da comunidade de comunicação em termos idéias sem considerar os conflitos de interesses e as assimetrias entre os membros da comunidade real de argumentação. Daí que a aplicação pura e simples da ética do discurso seria irresponsável se não se levar em consideração a situação privilegiada de alguns e a de exclusão e opressão de muitos outros e os possíveis efeitos colaterais da aplicação de normas. Por isso, a ética do discurso deve ser mediada, como diria Max Weber, pela “ética da responsabilidade”. Nisso o a priori da comunidade de comunicação se diferencia do a priori da filosofia transcendental tradicional. Pois não se trata de um seguimento cego de normas como no imperativo categórico kantiano em que o sujeito age segundo a norma sem levar em consideração os efeitos práticos de sua ação. No a priori da comunidade de comunicação deve-se sempre supor uma relação dialética entre a comunidade de comunicação ideal e a comunidade de comunicação real.

Pois, quem argumenta, sempre já pressupõe duas coisas: Primeiramente, uma comunidade de comunicação real, da qual ele mesmo se tornou membro através de um processo de socialização; e, em segundo lugar,

253 Ibidem, p. 481. 254 Ibidem, p. 482. 255 Ibidem, p. 482.

uma comunidade de comunicação ideal que, em princípio, estaria em condições de entender adequadamente o sentido de seus argumentos e de avaliar definitivamente sua verdade. O notável e dialético dessa situação reside, no entanto, no fato de ele pressupor, de certa forma, a sociedade ideal na real, ou seja, como possibilidade real da sociedade real; embora ele saiba que (na maioria dos casos) a comunidade real, incluindo ele próprio, está longe de poder igualar-se à sociedade ideal de comunicação. Para a argumentação, porém, com base em sua estrutura transcendental, não resta outra alternativa, senão encarar esta situação simultaneamente esperançosa e desesperadora.256

Tal relação dialética não é marcada por uma contradição formal, mas como uma dialética histórica cuja solução só se pode esperar “caso ela venha a ser proveniente da realização da comunidade ideal de comunicação na comunidade de comunicação real; é preciso mesmo postular moralmente a solução dessa contradição”257. Desse postulado, surge o problema da realização

de mediações históricas que possibilitem a efetivação da comunidade ideal na comunidade real de comunicação.

6.1.1 Comunidade ideal e comunidade real de comunicação

A relação entre a comunidade ideal e a comunidade real de comunicação, levou Apel a pensar o problema da mediação histórica ou da mediação da ética do discurso. Assim do a priori da comunidade de comunicação, Apel deriva o princípio U ou parte A da ética do discurso: “Toda norma válida deve satisfazer a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que previsivelmente resultam de sua observação universal para a satisfação dos interesses de cada indivíduo devem poder ser aceitas sem constrangimento por todos os afetados”258.

256

Ibidem, p. 485. Com base no original em alemão, preferimos alterar o final da tradução de “continua não tendo outra escolha senão a de estar frente a frente com essa situação desesperada e desesperadora”, para: “não resta outra alternativa, senão encarar esta situação simultaneamente esperançosa e desesperadora”, por entender que dessa forma nos mantemos mais fiéis ao texto.

257

Ibidem, p. 487.

258

APEL, Karl-Otto Apel. Kann der postkantische Standpunkt der Moralität noch einmal in substantielle Sittlichkeit “aufgehoben” werden?. In: ______. Diskurs und Verantwortung – Das Problem des

Mas como as condições sociais para aplicação do princípio U ainda não estão dadas, sua aplicação não pode ser exigida como se tratasse de uma “ética da convicção”. Isso implica que os discursos práticos tenham que ser mediatizados também de maneira estratégica até que essas condições sejam cumpridas. Assim, a fundamentação de uma ética do discurso da comunidade ideal de comunicação (parte A) deve ser complementada por uma parte B que responda ao problema histórico da antecipação do ideal. Tal aproximação não pretende realizar a pretensão hegeliana de uma substituição da “eticidade social” (Sittlichkeit) concreta pela “moral formal” (Moralität), mas buscar mediações históricas de superação dos obstáculos à realização de uma ética universal, o que corresponde a uma ética da responsabilidade ou parte B da ética do discurso com seus dois princípios regulativos:

Primeiro, é preciso, em toda a ação ou omissão, assegurar a sobrevivência da espécie humana enquanto comunidade real de comunicação; e, segundo, realizar a comunidade ideal na comunidade real de comunicação. O primeiro é a condição necessária do segundo; e o segundo, dá ao primeiro o seu sentido – o sentido que já é antecipado em cada argumento.259

Da diferença entre nossa situação real e a antecipação da comunidade ideal de comunicação deriva-se o dever moral de “suprimir ao menos aproximativamente a diferença refletida: em outros termos, contribuir para tornar a palavra ‘contrafactual’ que figura na caracterização da sempre já necessária antecipação do princípio (U) possa perder cada vez mais sua significação ética e prática no domínio da vida”260.

Apel discorda de Habermas ao afirmar que o indivíduo não pode renunciar ao agir estratégico por ter que responder de maneira responsável as suas obrigações para com a família, Estado, etc., pois não basta que a ação seja válida é preciso que ela seja responsável em relação aos efeitos intencionais e não-intencionais da ação. Ora, se não é a parte A que leva a efetivação da ação moral, mas sim a parte B, cabe perguntar: qual é o papel da parte A da ética do discurso? Como faz Apel, se poderia argumentar que é a comunidade ideal de

259

Ibidem, p. 141.

260

comunicação que dá sentido à exigência da sobrevivência da espécie humana. Mas qualquer sentido que se possa atribuir à vida humana é igualmente dependente da existência de seres humanos que atribuam sentidos a ela (exceção feita ao suicídio cujo sentido se realiza com a destruição do sujeito e, consequentemente, da possibilidade de sentido). Portanto, garantir a sobrevivência da espécie humana é condição necessária para realização de sentido, mais que isso, para delimitação dos projetos possíveis, já que determinados sentidos estão em contradição, em maior ou menor grau, com a sobrevivência da espécie humana e da vida no planeta Terra como um todo. Apel acaba reconhecendo isso inconscientemente ao defender o agir estratégico. Diz ele:

Assim, não podem renunciar às mentiras, ao engano e inclusive à violência no caso de um confronto com um criminoso ou com uma organização como a Gestapo, mas devem agir de uma maneira adequada à situação, de tal modo que a máxima de sua ação possa ser considerada como uma norma suscetível de consenso, mas não em um discurso real, e sim em um discurso fictício ideal de todos os afetados bem intencionados.261

Ora, como sei quem são os bem intencionados e os mal intencionados e criminosos? Obviamente não é o discurso ideal que estabelece isso, mas uma situação real, em que estão em conflito interesses que ameaçam a sobrevivência de uns em nome do poder e da riqueza de outros. Do ponto de vista ideal, ambos os grupos estão mentindo, enganando e sendo violentos, logo é de se perguntar: qual o papel do critério ético nesse caso?

Apel sustenta que a constatação da distância entre a situação real e a ideal nos obriga a “colaborar na eliminação a longo prazo, aproximativamente, dessa diferença”262. Com isso, Apel pretende superar a ética puramente deôntica que

faz abstração da história. Resta saber se também a ética do discurso não faz abstração da história ao estabelecer uma meta historicamente impossível de se cumprir. Nesse caso, seria uma “ilusão transcendental” em que a razão projeta ideais para além das condições históricas de factibilidade.

261

APEL, Karl-Otto. La ética del discurso como ética de la responsabilidad: una transformación posmetafísica de la ética de Kant. In: APEL, Kart-Otto, DUSSEL, Enrique, BETANCOURT, Raúl Fornet Betancourt. Fundamentación de la ética y filosofía de la libertación. México: Siglo XXI, 1992, p. 42.

262

Apel procura diferenciar-se do historicismo (na terminologia de Popper) e de qualquer utopia social concreta. Afirma que a ética do discurso se refere apenas as “condições ideais de uma possível formação de consenso sobre normas, dependente, portanto, da formação concreta da sociedade de acordos falíveis e corrigíveis dos que estão envolvidos em cada caso”263. Por outro lado, a própria

realização das condições ideais de comunicação não é senão uma “idéia regulativa”, “cuja implementação (seguindo Kant) não é nem sequer imaginável no mundo espaço-temporal da experiência”264. Imaginável é, já que Apel supõe

que possa realizar a comunidade ideal na comunidade real como afirmou antes. A questão é que talvez ela não seja realmente possível, nesse caso, qual seria o seu papel enquanto ideal regulativo?