• Nenhum resultado encontrado

A “Crônica da casa assassinada”: o terror da existência

Em sua obra mais célebre, a “Crônica da Casa Assassinada”, há uma espécie de apelo à transgressão da moralidade comum de uma fazenda típica de Minas Gerais, na qual atitudes limites, como o suicídio, a transexualidade ou mesmo o incesto advêm como contrapartida ao véu da moralidade e da passividade com relação ao destino. Mas o que mais chama a atenção é a impossibilidade de julgamento das atitudes desviantes por parte da condicionalidade comum, já que ambas são violentas à sua maneira; e, pelo fato de não haver uma causa impossível para a doença da relação familiar retratada, a lei e a transgressão não são antagônicas, mas complementares, chegando mesmo a uma exaustão entre as fronteiras de normal e anormal. Eis que há uma indecibidilidade entre a virtude e o pecado.

A religião e a heresia se fazem presentes, a princípio como opostos; mas progressivamente o limite dá lugar a uma indiferenciação em que a paz é o pecado e o conflito a virtude, e já não há mais fronteira entre santo e profano, mas apenas um limiar entre aquilo que é chocante (e que, portanto, serve como motivo à mudança) e aquilo que é sacro.

Sobre uma fala de Lúcio Cardoso, comenta Moutinho:

Não posso imaginar Deus afastado do amor, de qualquer amor que seja, mesmo o mais pecaminoso. O primeiro membro da frase se encontrará sob a pena dos místicos do cristianismo; contém a essência mesmo da palavra evangélica. A ortodoxia do escritor é aí absoluta. A seqüência, porém, o desterraria de chofre à mais radical heterodoxia, à plena marginalidade herética, não sendo difícil adivinhar nela eco longínquo mas indisfarçável da demoníaca pretensão barbelonita de atingir o divino no fundo dos desregramentos os mais abjetos e aberrantes. (MOUTINHO, 1996, p. 715).

De forma rápida, pode-se resumir a trama da “Crônica” da seguinte forma: na chácara da família Menezes, uma das mais respeitadas da sua

162 || || Novas contribuições à pesquisa em direito e literatura

região, onde convivem três irmãos igualmente herdeiros de uma mansão já bastante deteriorada pelo passar do tempo, Valdo, o irmão do meio, casa- se com Nina, mulher cheia de vida e vaidosa que provoca uma agitação na família ao vir morar com o marido. Tal mudança que ela traz fica muito visível se comparada a sua cunhada Ana, a qual é uma mulher tímida e sem graça submissa ao marido Demétrio, o mais velho e o mais moralista e supostamente patriarca dos três irmãos. Por fim, o terceiro é um travesti rechonchudo, recluso em seu quarto, e que logo faz amizades com Nina, pela alegria e pelo espírito de mudança que ela representa.

Contudo, a mudança de Nina não deixa de ser também uma ameaça. E tão logo essa virtude destrutiva se aprofunda, a jovem carioca se vê acusada de adultério por um suposto caso com o jardineiro. Valdo, seu esposo, tenta suicídio, e Nina, então, abandona ainda grávida, a mansão. Pouco tempo depois, a ciumenta cunhada Ana, apaixonada pelo jardineiro, mas rancorosa por nunca tê-lo tido, vai ao Rio de Janeiro buscar a criança de Nina, supostamente filho de Valdo, André, para levá-lo para ser criado junto à fazenda dos Menezes. Quinze anos após esses fatos, quando Nina já está acometida por uma doença fatal, ela é aceita novamente na casa, onde tem uma relação incestuosa com o seu filho André, que foi criado longe da suposta mãe.

A trama nas páginas do livro não é contada de ordem cronológica e muito menos em uma narrativa única, mas é apresentada por relatos – normalmente confissões ou anotações pessoais – parciais e fragmentados. O que marca no livro, no entanto, são os detalhes que se sobrepõem à rotina angustiante, que sufoca cada um dos personagens bem como o leitor. Aliás, a repetição e a inércia da fazenda são entendidas pelo padre do enredo, como o inferno, a desordem e a incerteza, presentes na transgressão da lei e da moral, já são os momentos de respiro que trazem um mínimo de beatitude.

Nesta Crônica da Casa Assassinada são os fantasmas da transgressão que assediam as personagens de um drama montado a partir de uma paixão subjetivamente incestuosa (que é o que moralmente conta); e em torno da violação fundamental se consumam o adultério e a perversão. [...] O retorno a motivos apocalípticos e, sobretudo, ao “temor e tremor” da danação eterna nutriu-se dos mesmos elementos subversivos que, em uma ótica programadamente oposta, as vanguardas radicais tinham multiplicado em suas obras. (BOSI, 1996, p. xxii).

Da beatitude à perversão || || 163 A lentidão e a repetição dão à obra um ar de pesadelo, em que a única possibilidade de afirmação de algo maior e mais profundo somente se dá no exagero por parte do perturbador. Em tal contexto, o patriarca Valdo tenta sempre trazer a família de volta à Lei, mas já não se sabe se ele é o anjo ou o maior dos demônios por tais ações. Tal se dá porque diante da situação de desespero em que se encontram, os personagens nem mesmo estão sujeitos a uma lei absurda ou uma injustiça plena. Seus desesperos são da própria impossibilidade de ver justiça em lugar algum; é a consciência da impossibilidade de apelo a um Deus que os põe perante si mesmos como condenados a suas próprias misérias e a seus próprios caprichos. Diz o amigo de Lúcio Octavio Faria (1996, p. 665-666):

Trata-se de um desespero de tipo nitidamente kierkegaardiano e, não, kafkiano. Nele, não enfrentaremos os mistérios do absurdo e do ilógico, mas o próprio tumulto da alma humana alvoroçada contra Deus – e é toda A Luz no Subsolo que surge diante de nossos olhos. Nem chegaremos ao desespero pela injustiça ou pela hostilidade do mundo, mas pela ausência de Deus que condenará esse mundo à condição do próprio inferno – e é toda a Crônica

da Casa Assassinada que temos ante nós. Nem depararemos com

personagens inadaptados, expulsos do convívio social ou da própria condição humana, mas seres plenamente vivos e plenamente conscientes das suas possibilidades, seres que, pelo contrário, se se consomem no desespero, é por excesso que o fazem e disso têm perfeita consciência – e temos diante de nós toda uma série de “heróis”: André, Pedro, Inácio, Nina, Timóteo, Assur, Ida, etc.

Octavio de Faria, portanto, fala do trágico e se questiona acerca da possibilidade de limitar o mal em um mundo ausente de Deus. Em uma das passagens da Crônica, o padre dirige a palavra a uma das personagens e pode-se notar o seguinte de suas palavras:

No fundo, temos horror do que realmente somos. Imagine, para facilitar as coisas, que o céu não deva ser nada tranqüilo, que o contrário de uma mansão em repouso, seja um terreno de querela e de angústia. Imaginemos, se puder, um céu diferente de nossas limitadas possibilidades. Porque se ele fosse assim, que iriam lá fazer os que a vida inteira desfrutaram o repouso do bem? (CARDOSO, 1996, p. 337).

A salvação, portanto, não deixa de se dar pelo próprio pecado. Contudo, essa possibilidade redentora, acaba sendo impossibilitada na

164 || || Novas contribuições à pesquisa em direito e literatura

medida em que os personagens institucionalizam seu gozo, de sorte que se aproximam de uma perversão tornada ordinária,3 como se sofressem

por ocupar o lugar que ocupam; como se tomassem consciência de sua condenação e passassem a administrá-la. Tão cedo aparecesse alguma figura ameaçadora, tentar-se-ia podá-la. Assim havia sido com uma ancestral homossexual de longa data e agora era com o travestido Timóteo, mas sobretudo com a expulsão de Nina em razão da vontade destruidora que ela apresentava:

E precisamente como essas plantas, que num terreno árido se levantam ardentes e belas, viria mais tarde a florescer sozinha, mas num terreno seco e esgrouvinhado pela faina da morte. E era inútil esconder: tudo o que existia ali naquela casa, achava-se impregnado pela sua presença – os móveis os acontecimentos, a sucessão das horas e dos minutos, o próprio ar. O ritmo da chácara, que eu sempre conhecera calmo e sem contratempos, achava-se desvirtuado: não havia mais um horário comum, nem ninguém se achava submetido à força de uma lei geral. A qualquer momento poderia sobrevir um acontecimento extraordinário, pois vivíamos sob um regime de ameaça. (CARDOSO, 1996, p. 280).

Por mais que a perversão em Lúcio tenha seu lugar de honra, ela não necessariamente triunfa como redenção, pois, por medo ou por comodidade, a moralidade as corta, como ocorreu com a expulsão de Nina; ou os personagens a cristalizam, como a reclusão do irmão travestido. Assim, o irmão Demétrio, o patriarca, contenta-se em tornar a vida de todos um inferno regulado à custa da ocultação de sua paixão adúltera pela cunhada que logo expulsa, ao passo que as mulheres de cada um desses irmãos se contentam em encontrar no ciúme ou na crueldade o único sentido possível

3 O psicanalista Jean-Pierre Lebrun estabeleceu o conceito de perversão ordinária, na

tradução brasileira, perversão comum. O que fica evidente neste conceito é uma capacidade de a sociedade contemporânea se estabelecer por laços de gozo, sem, portanto dar lugar ao Outro. Não que os indivíduos sejam necessariamente perversos, mas a sociedade em si acaba sendo quando já não é mais possível dizer não, ou seja, dar limite. Diz o autor: “O neosujeito manifestamente se agarra à prevalência da imagem, mas uma imagem sem além. Esta não serve de ‘degrau’ rumo à fala, mas antes de proteção contra ela. [...] Logo, é fácil compreender que o golpe aplicado no trabalho de subjetivação na sociedade atual tem como conseqüência a prioridade deixada à imagem e mais particularmente à imagem saturadora.” (LEBRUN, 2008, p. 223)

Da beatitude à perversão || || 165 de sua existência. Nem por isso, uma outra possibilidade de limite4 não deixa

de espreitar toda a narrativa: a própria morte.