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os pressupostos apresentados na novela “Na Colônia Penal”

Em meados de outubro de 1914, Kafka saiu em férias com a intenção de dar continuidade à escrita de “O Processo” – seu mais célebre romance. Em vez disso, acabou produzindo a novela “Na Colônia Penal” – texto no qual são apresentados alguns pressupostos que facilitam a compreensão da obra kafkiana como um todo. Aqui, cabe destacar especificamente dois desses pressupostos: a certeza da culpa e a necessidade da punição.

Nessa pequena novela, tem-se um estrangeiro – designado como “o explorador” – que chega a uma colônia penal e recebe do novo comandante da colônia um convite para assistir à execução de um soldado condenado, que é logo descrito pelo narrador como

é essa única possibilidade de dizer e exprimir o que realmente sinto e o quanto é forte. Mas eis aí justamente por que eu não quero saber como você está vestida, pois o fato de não poder viver me transforma, e eis por que eu não quero saber se você está esperando por mim, pois então por que razão, louco que sou, fico no meu escritório ou na minha cama ao invés de me jogar num trem com os olhos fechados e só abri-los quando estiver diante de você? Oh, tenho uma boa razão para não fazer tal coisa, e em breve: terei saúde suficiente para mim, mas não o suficiente para me casar e muito menos para ter filhos. Quando li sua carta, fechei os olhos sobre mais coisas do que há para se perder de vista”.

A culpa de Josef K. || || 73 [...] uma pessoa de ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho, e [...] parecia de uma sujeição tão canina que a impressão que dava era a de que se poderia deixá-lo vaguear livremente pelas encostas, sendo preciso apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse. (KAFKA, p. 29-30).

O oficial da colônia penal recebe o explorador − um homem esclarecido, de origem europeia − no local de execução dos apenados. Ali, o próprio oficial é o encarregado de executar as sentenças. Imediatamente, ele começa a apresentar ao visitante a máquina incumbida de realizar o serviço de execução. O aparato, invenção do comandante anterior, é uma espécie de “carrasco mecanizado” que “trabalha” no apenado por um período de doze horas ininterruptas. É ela quem realiza a execução do infrator, através da escrita da lei em seu corpo. Segundo o oficial, trata-se de “um aparelho singular” (KAFKA, p. 29):

– [...] Como se vê, ele se compõe de três partes. Com o correr do tempo surgiram denominações populares para cada uma delas. A parte de baixo tem o nome de cama, a de cima de desenhador e a do meio, que oscila entre as duas, se chama rastelo. (KAFKA, p. 32-33). A explicação do oficial da Colônia Penal, quanto ao funcionamento da máquina punitiva, é precisa:

– [...] O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição nas costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. Nesse ínterim as partes feridas pela escrita entram em contato com o algodão, o qual, por ser um produto de tipo especial, estanca instantaneamente o sangramento e prepara o corpo para novo aprofundamento da escrita. Então, à medida que o corpo continua a virar, os dentes na extremidade do rastelo removem o algodão das feridas, atiram-no ao fosso e o rastelo tem trabalho outra vez. Assim ele vai escrevendo cada vez mais fundo durante as doze horas. (KAFKA, p. 43-44).

Na ocasião, executar-se-ia um soldado pelo fato de ele ter desobedecido e insultado o seu superior hierárquico. O crime cometido pelo condenado render-lhe-ia a escrita “Honra o teu superior!” na parte de trás de seu corpo. O próprio condenado nem sabia, ao certo, qual crime tinha cometido, se havia sido condenado, ou qual era a sua sentença, mas

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o narrador kafkiano logo esclarece que o verdadeiro “crime” do soldado havia sido simplesmente dormir em serviço.

O “julgamento” do acusado, conforme se depreende da leitura da história, foi recheado de arbitrariedades. De acordo com o oficial, apenas as palavras do acusador foram suficientes para que ocorresse o “esclarecimento” da questão:

– [...] Faz uma hora o capitão se dirigiu a mim, tomei nota das suas declarações e em seguida lavrei a sentença. Depois determinei que pusessem o homem na corrente. Tudo isso foi muito simples. Se eu tivesse primeiro intimado e depois interrogado o homem, só teria surgido confusão. Ele teria mentido, e se eu o tivesse desmentido, teria substituído essas mentiras por outras e assim por diante. Mas agora eu o agarrei e não o largo mais. (KAFKA, p. 38-39).

Em “Na Colônia Penal”, os procedimentos formais, tais como inquéritos, julgamentos ou condenações, são mera burocracia. Servem apenas para dar um toque de legitimidade à cerimônia penal. Decisivo mesmo é o princípio segundo o qual o oficial toma as suas decisões:

– [...] O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais podem não seguir este princípio, pois são compostos por muitas cabeças e além disso se subordinam a tribunais mais altos. Aqui não acontece isso, ou pelo menos não acontecia com o antigo comandante. (KAFKA, p. 37-38).

Se, como visto no tópico anterior, a culpa advém do exercício de poder, então, sob a ótica kafkiana, o princípio proclamado pelo oficial, além de prático, é coerente e, em certo sentido, justo, embora soe estranho e ofenda o senso comum. Muitos podem achar que a execução de um soldado que dormiu em serviço é arbitrária e desproporcional, mas, ainda que dormir em serviço não fosse formalmente um crime, o soldado seria culpado de qualquer jeito, pois ele é, evidentemente, um “praticante” do poder, ainda que seja caracterizado no início do texto como uma pessoa simplória. Para ficar mais claro, ele é culpado por, pelo menos, duas razões: por exercer poder sobre os civis enquanto soldado; e por ceder ao poder enquanto militar hierarquicamente subordinado a um chefe.

Com efeito, num local onde a culpa seja indubitável, a máquina punitiva não erra. Qualquer argumento em favor do réu é vazio e desprovido de sentido. Cabe ao processado, nesse contexto, apenas aceitar a sua culpa e a consequente punição. Aliás, em “Na Colônia Penal”, fica

A culpa de Josef K. || || 75 estabelecida não só a necessidade da punição, mas também a necessidade de uma punição pública e legitimada por aquele que sofrerá as suas consequências. Em outras palavras: não basta que ocorra a punição, é necessária a participação quase voluntária do apenado; é necessário que aquele que sofre a punição a entenda e que, em certo sentido, também a deseje.

E é justamente por isso que a execução na colônia penal tem contornos de espetáculo. A própria sentença que será inscrita no corpo do condenado é baseada em desenhos cuidadosamente preparados pelo antigo comandante. O oficial os guarda, com extremo cuidado, em uma carteira de couro, como uma espécie de relíquia. São desenhos complexos, supostamente com inscrições de mandamentos legais, mas o explorador não consegue decifrá-los. Percebendo a dificuldade na leitura das inscrições, o oficial resolve explicar ao explorador o porquê dos adornos na escrita.

Chega até a dizer que é comum que não se consiga entender, de imediato, a escrita:

– [...] Não é caligrafia para escolares. É preciso estudá-la muito tempo. Sem dúvida o senhor também acabaria entendendo. Naturalmente não pode ser uma escrita simples, ela não deve matar de imediato, mas em média só num espaço de tempo de doze horas; o ponto de inflexão é calculado para a sexta hora. É preciso portanto que muitos floreios rodeiem a escrita propriamente dita; esta só cobre o corpo numa faixa estreita; o resto é destinado aos ornamentos. (KAFKA, p. 42-43).

A escrita “não deve matar de imediato”, pois a lei precisa se inscrever no homem com calma, eficazmente. É necessário que ele consiga decifrar, através de seus ferimentos e sofrimentos, aquilo que está sendo inscrito em suas costas. Mais ainda, é preciso que ele entenda que sua participação no ritual punitivo é essencial. Para produzir os “efeitos necessários”, é preciso todo um “processo”:

– [...] Nas primeiras seis [horas] o condenado vive praticamente como antes, apenas sofre dores. Depois de duas horas é retirado o tampão de feltro, pois o homem já não tem mais força para gritar. Aqui nesta tigela aquecida por eletricidade, na cabeceira da cama, é colocada papa de arroz quente, da qual, se tiver vontade, o homem pode comer o que consegue apanhar com a língua. Nenhum deles perde a oportunidade. [...] Só na sexta hora ele perde o prazer de

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comer. [...] Mas como o condenado fica tranqüilo na sexta hora! O entendimento ilumina até o mais estúpido. Começa em volta dos olhos. A partir daí se espalha. Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo. Mais nada acontece, o homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os seus ferimentos. Seja como for exige muito trabalho; ele precisa de seis horas para completá-lo. Mas aí o rastelo o atravessa de lado a lado e o atira no fosso, onde cai de estalo sobre o sangue misturado à água e o algodão. A sentença está então cumprida, e nós, eu e o soldado, o enterramos. (KAFKA, p. 44).

É lá pela sexta hora da execução, como descreve Kafka, que o condenado desiste de lutar. O condenado entende a sua situação, “encarna” a sua sentença e aceita a sua “culpa”. Ele entende a lei, o que ela quer dizer, no exato momento em que ela é inscrita em seu corpo.

Mas a explicação do procedimento, em vez de agradar, choca o explorador e, ao perceber isso, o oficial sente-se incapaz. Apostara suas últimas fichas em sua demonstração prática e agora tudo caía por terra e, em certo sentido, por culpa sua. Ora, não havia conseguido convencer um “simples” explorador. Era, por certo, o fim desse método de punição na colônia, porque, depois de ouvir a opinião do explorador, certamente o novo comandante dispensaria o oficial de suas funções na colônia penal. Afinal, o explorador tinha uma visão mais “humana” sobre as punições e identificava-se, portanto, de pronto, com a nova administração da colônia penal, que vinha tentando implantar um novo método punitivo, mais “civilizado”, já há algum tempo.

Diante desse cenário, o oficial libera o condenado. De que adiantaria promover o espetáculo punitivo se o espectador principal – o explorador – não fosse adepto do suplício que estava para acontecer? A possível negligência do oficial na explicação o consome, a ponto de fazê- lo acreditar que talvez tenha falhado em seu serviço. Não conseguiu convencer o explorador. Fracassou no seu ofício, que é o de promover o espetáculo punitivo – que mantém acesa a crença dos indivíduos na lei. Ao não ser capaz de convencer o explorador, então, talvez, a técnica de punição defendida por ele realmente esteja começando a ser posta de lado por todos. A proclamada beleza e sutileza da máquina já não estariam mais evidentes, como antes, ao grande público; permaneciam evidentes apenas para o oficial. E, se as pessoas já não mais se convencem da eficácia,